É lei: toda gravidez em meninas de até 14 anos é fruto de estupro. Essa violência obrigou 300 crianças e adolescentes do Espírito Santo a crescer antes do tempo, abdicando da infância, da educação e, muitas vezes, da própria saúde física e mental. No mesmo período, apenas três conseguiram acesso ao aborto, que é previsto na legislação nesses casos.
Os dados são do Datasus, o sistema de informação do Ministério da Saúde e se referem a 2020, de quando são as informações consolidadas mais recentes. Em 2021, em levantamento preliminar, foram 299 bebês nascidos de crianças e adolescentes até 14 anos. Neste ano, foi feito um aborto legal nessa faixa de idade.
O medo, a vergonha, a falta de informação e o despreparo dos agentes públicos forçam anualmente milhares de meninas brasileiras de até 14 anos a seguirem com gestações, terem bebês e a conviver para sempre com a marca e as consequências de uma gravidez nessas condições.
“Qualquer gravidez em meninas de até 14 anos é uma gravidez de risco. Elas não têm maturidade hormonal, física, emocional e psíquica para assumir uma gravidez. Crianças não foram feitas para engravidar”, aponta a pós-doutora em Saúde Coletiva Elda Bussinguer.
O aborto, mesmo em situações de estupro de vulnerável, carrega um estigma tão grande que obter acesso a esse serviço de saúde pública é uma via crucis que muitas não estão dispostas ou não têm condições de atravessar.
“Essas meninas que conseguiram aborto legal tiveram que lutar contra uma muralha. Elas têm dificuldade com família, com as igrejas, com a sociedade, e até na própria categoria dos profissionais da saúde. Há mesmo a dificuldade jurídica, pois apesar de ser um direito, o estado se manifesta contra o direito”, diz Elda, em referência ao caso da menina de 11 anos de Santa Catarina que virou notícia nacional na última semana.
Uma juíza e uma promotora tentaram induzir a criança, na época com 10 anos, e a família dela a seguirem com a gestação para que o bebê fosse entregue para adoção.
A coordenadora da infância e juventude da Defensoria Pública do Espírito Santo, Adriana Peres, explica que a lei atual garante que meninas e mulheres acessem o abortamento legal em caso de estupro independentemente de terem feito um boletim de ocorrência, de decisão judicial e da idade gestacional do bebê.
“Muitas meninas chegam (aos serviços públicos) em estado avançado de gravidez, aí surgem questões familiares, religiosas e sociais e e elas acabam não optando pelo abortamento. Mas elas têm direito não só ao aborto legal mas também de ter atendimento social e psicológico”, esclarece.
Adriana chama a atenção para a subnotificação dos casos de estupro de meninas de até 14 anos. Ela lembra que toda gravidez que ocorre nesse público deve ser obrigatoriamente notificada ao Ministério da Saúde como violência sexual.
“Quando a gente pega dados de violência e de partos, muitas vezes eles não batem. Há um número menor de notificações de gravidez por violência sexual do que de partos em meninas de até 14 anos. Isso é uma coisa muito grave.”
A subnotificação é ainda maior considerando que, provavelmente, muitas crianças e adolescentes são estupradas e não engravidam. Como esses casos acontecem principalmente dentro de casa, há o medo de denunciar o agressor e as ocorrências acabam nunca entrando nas estatísticas, nem nas de saúde nem nas policiais.
Para além do medo e do estigma social e religioso, muitas famílias de meninas estupradas não buscam os serviços de saúde para fazer o aborto por desconhecerem que esse é um direito da mulher e da criança vítima de violência.
A defensora pública afirma que o órgão tem cobrado do Estado e dos municípios que capacitem os profissionais que trabalham nas unidades de saúde, desde a recepcionista até o médico. A atenção básica de saúde costuma ser o primeiro local que essas famílias procuram quando descobrem a gestação nas meninas. Por isso, é tão importante que eles prestem informações corretas e de forma empática.
"Há a obrigação legal prevista, o Ministério da Saúde orienta sobre como proceder e é importante que os profissionais de saúde tenham formação adequada. Se ele não tiver formação, se prestar orientação errada ou agir com preconceito pode estar incorrendo de violência institucional", aponta a Adriana.
A Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) confirma que geralmente a unidade básica de saúde é a porta de entrada das meninas e mulheres em busca da interrupção legal da gestação. Alguns municípios têm ambulatórios especiais para esse tipo de atendimento.
"Nas situações de urgência, a mulher pode ser acolhida por um serviço de Pronto Atendimento ou Pronto-Socorro, sendo posteriormente transferida para uma maternidade de referência", diz a nota.
Em relação aos hospitais que fazem o aborto nas condições previstas em lei, a secretaria afirma que há unidades especializadas em diferentes partes do Espírito Santo.
As portas de entrada do sistema de saúde para o acesso à essa assistência compreendem os serviços de: Atenção Primária à Saúde, atenção especializada, atenção de média e alta complexidade e atenção às urgências e emergências. Cada município é responsável por organizar sua rede assistencial de forma a contemplar a indicação dos profissionais responsáveis por cada etapa da atenção e o compartilhamento dos fluxos em âmbito municipal, regional e estadual, de modo que todos os profissionais de saúde estejam aptos a acolher e atender as pessoas que acessarem o serviço de forma ágil, humanizada e respeitosa.
A Unidade Básica de Saúde geralmente é a porta de entrada da mulher, no serviço de saúde, em busca de interrupção legal da gestação, sendo que alguns municípios contam também com ambulatório especializado para esse tipo de atendimento. Nas situações de urgência a mulher pode ser acolhida por um serviço de Pronto Atendimento ou Pronto Socorro, sendo posteriormente transferida para uma maternidade de referência.
Em relação à assistência hospitalar para a mulher que almeja a interrupção legal da gestação, a Rede de Atenção à Saúde Materna e Infantil do Espírito Santo se organiza levando em consideração a regionalização. Assim, o Hospital São José localizado de Colatina é referência para o atendimento da Região Central Norte de Saúde. A Região Metropolitana possui dois serviços de referência, em Serra, com o Hospital Estadual Dr. Jayme dos Santos Neves - que atende os casos de mulheres com gestação de anencéfalos e aquelas com risco de morte por patologia complicada pela gravidez - e em Vila Velha, no Hospital Estadual Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves que é referência para o atendimento à mulher com gestação decorrente de violência sexual, sendo que, nesses casos, conta-se ainda com o apoio do Hospital Universitário Cassiano Antônio de Morães, que atende preferencialmente, moradoras de Vitória, oferecendo assistência ambulatorial e hospitalar. O Hospital Infantil Francisco de Assis, de Cachoeiro de Itapemirim, é referência para o atendimento às mulheres que buscam pela interrupção legal da gestação e que residem na Região Sul de saúde.
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