A fila vai ganhando cada vez mais corpo. Às 7h15 da manhã, normalmente, a padaria fica bem cheia. São corpos ainda um pouco amassados pela noite ou pelo transporte público na vinda para o trabalho ali no bairro. Rostos desconhecidos, mas que, em sua maioria, demonstram uma expressão bem comum: a de que de fato não estão inteiros ali.
Naquela cena, dentre homens e mulheres, a maior parte adultos ainda jovens (hoje, mais da metade da população brasileira tem mais de 30 anos), alguns - na verdade, muitos - parecem preferir estar ainda na cama, outros já no trabalho, na escola… ou em qualquer outro lugar, menos ali. Padaria é lugar de transição. Mera passagem, assim como as fases da vida!
- Próximo!
Enquanto a ausência dos que esperam é interrompida pelo grito da atendente, do outro lado do salão, entre pacotes e garrafas, perto do refrigerador, diante daquela cena me pergunto:
- Quantos aqui vão chegar inteiros aos 80?
A fila anda, e anda rápido: projeções indicam que um terço da população do país terá 60 anos ou mais em 2060.
O sujeito com o filho pequeno pede 8 pães de queijo, a mulher ao lado escolhe uma bandeja de apresuntado, o moço no caixa compra um maço de cigarros, a moça com roupas de ginástica pega um pacote de pão integral, na minha cesta, bolo formigueiro, pão de batata… sigo observando o que cada um leva, talvez em busca de pistas que respondam a pergunta.
- Quantos aqui vão conseguir, sozinhos, fazer esse tipo de compra depois dos 70? Quantos de nós ali vão se manter funcionais depois da sexta, sétima década de vida?
Funcional? A capacidade funcional diz respeito a manutenção da nossa habilidade em desempenhar as atividades cotidianas e cuidar de si mesmo, mantendo uma vida independente e autônoma e está diretamente ligada à qualidade de vida. Ou seja, manter-se funcionando.
Essas atividades podem incluir tarefas básicas, como se vestir, tomar banho, alimentar-se, caminhar… chegar à padaria… A capacidade funcional é uma medida importante da autonomia e independência de uma pessoa. Qualidade de vida.
A percepção de que se pode fazer (poder fazer = independência) aquilo que se deseja (desejar fazer = autonomia) é um dos melhores preditores da qualidade de vida individual. E à medida que envelhecemos, se nós nos percebemos limitados ante a essa percepção e não desenvolvemos a capacidade de enfrentamento e ajustes adequados para lidar com tais limites, as perdas se tornam fardos.
- A fila cansa!
Sabe o que isso significa? Significa que uma simples ida ao banheiro, sem qualquer tipo de suporte ou cuidador, pode se tornar inviável… amarrar os sapatos, comer. Significa que sair de casa sem apoio, já não é possível, significa… Tudo bem, parei!
- Mas quantos aqui nesta fila estão pensando agora: a velhice ainda está muito longe, não preciso pensar nisso agora. Papo de velho!
Será? Hoje, existem evidências de que doenças cardiovasculares, por exemplo, têm suas raízes um bom tempo antes de seus primeiros sintomas detectáveis. “Mesmo quando alguém tem um ataque cardíaco e morre ‘de repente’, a doença provavelmente passou duas décadas se estabelecendo nas artérias coronarianas” (Attia, 2023).
Por sua vez, doenças neurodegenerativas, assim como a Doença de Alzheimer, que hoje atinge cerca de 50 milhões de pessoas mundo afora, podem também ter início até 20 anos antes dos primeiros sinais. As descobertas nesse sentido, não param por aí. E todos os indícios apontam para um mesmo ponto: grande parte das doenças incapacitantes ou que podem nos levar à morte iniciam muito antes de serem detectadas e se desenvolvem de forma lenta e sorrateira. Da base ao topo, décadas de distância. Vale a pena esperar?
Mas voltando à padaria… me aproximo do balcão com a lembrança do que disse o Dr. Alexandre Kalache: “O envelhecimento tem de ser entendido na perspectiva do curso de vida. Ninguém acorda de repente velho. E as pessoas com 65, 85 ou 20 são o produto dos anos vividos”.
- O processo é lento, mas a fila anda.
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