Thatiany Rodrigues tem realizado alguns sonhos. O mais recente é a oportunidade de empreender na área de maquiagem. Criada na zona rural próximo de Montanha, no Espírito Santo, ela veio morar na Grande Vitória em busca de oportunidades. Primeiro morou em Jardim Carapina, na Serra. "Nesse período trabalhei num salão de beleza como manicure. Nunca fiz um curso, aprendi no dia a dia e era com esse trabalho que levava o sustento para casa".
Grávida do filho Heitor, hoje com oito anos, ela começou a trabalhar fazendo maquiagens e penteados. Thatiany não tinha dinheiro para fazer cursos, mas tinha vontade. "Assistia vídeos de maquiagens na internet. Pesquisava, via o que estava em alta e reproduzia nas minhas clientes que atendia na Grande Vitória. Eu ia de ônibus, com a minha maletinha, até a casa delas".
Já vivendo em Morada da Barra, em Vila Velha, ela começou a caminhar pelo mundo do empreendedorismo. Fez a sobrancelha de inúmeras clientes até se dedicar totalmente aos pincéis. "As minhas clientes são principalmente da região de Terra Vermelha. É a moça que trabalha no pet shop, na farmácia, são as amigas e vizinhas, uma vai falando para outra. É o marketing do boca a boca", conta Thatiany, de 27 anos.
O dinheiro que ganha ajuda nos investimentos dos produtos e nas contas de casa. "O trabalho nem sempre é fácil, tem mulheres que chegam muito debilitadas. Então, realçar a beleza e vê-las sorrirem é gratificante demais", conta a empreendedora que está sonhando em abrir um espaço para atendimento exclusivo de noivas.
AUTOESTIMA E LIDERANÇA
Thatiany faz parte da Rede Empreendedora R5 Mulher, grupo de apoio e desenvolvimento para empreendedoras da Grande Terra Vermelha, em Vila Velha. "Essa rede, também conhecida como R5 Mulher, tem como objetivo fortalecer o empreendedorismo feminino, capacitando e incentivando as mulheres a desenvolverem seus negócios", diz a fundadora Sara Pimenta.
A ideia de criar o projeto surgiu em 2021, quando ela vivenciava a maternidade. "Foi nesse período que percebi o quanto mulheres, principalmente das periferias, sentem-se sozinhas e sem apoio ao tentar conciliar os desafios da vida pessoal com o desejo de empreender. Comecei com rodas de conversas em unidades de saúde", conta.
São mais de 26 comunidades interligadas na região cinco de Vila Velha. "O nome também representa os cinco pilares que sustentam o projeto e a jornada de transformação das participantes que são ressignificar, reconhecer, recomeçar, reunir e realizar". De acordo com ela, a Rede facilita o networking entre as empreendedoras, criando oportunidades para que elas possam construir parcerias e ampliar a rede de contatos, buscando impulsionar o crescimento econômico local.
Para ajudar outras mulheres - de 17 anos a 62 anos - a realizarem seus planos, diversos profissionais dão aulas gratuitas mensalmente de autoestima, autoconhecimento, empreendedorismo, liderança, finanças e vida digital. "Medimos o impacto do projeto na comunidade pelo número de mulheres atendidas, o desenvolvimento da autoestima e autonomia, além da geração de renda através dos negócios. Também o fortalecimento das redes de apoio e o retorno das participantes sobre as mudanças em suas vidas e famílias", diz Sara Pimenta.
As mulheres atuam em áreas como beleza, estética, higiene e perfumaria. “Chamamos nossa estratégia de Marketing de Comunidade, onde as empreendedoras promovem e apoiam mutuamente seus negócios. Vai além da venda, fortalece redes, gera parcerias, compartilha experiências e cria pertencimento. É uma estratégia baseada em relacionamento, colaboração e propósito, com foco no impacto coletivo", comenta Sara.
Agora, o objetivo é encontrar apoio para estruturar um modelo de Hub de Empreendedorismo Feminino na Periferia, onde as participantes tenham acesso a apoio especializado, aceleração de projetos, eventos e conexões estratégicas. "Será um espaço de fortalecimento da performance, otimização de custos e estímulo à inovação. Queremos criar um ambiente colaborativo, com condições reais para impulsionar negócios ativos, desenvolver ideias e conectar mulheres a novas oportunidades e interesses, transformando a potência da periferia em protagonismo".
O PODER DAS EMPREENDEDORAS
O mercado de beleza é um dos principais do país. Por dia, aproximadamente 700 novos estabelecimentos são abertos no Brasil, entre microempreendedores individuais (MEI), microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP). São cabeleireiros, manicures e pedicures, atividades ligadas à estética e lojas de cosméticos. O país é o quarto maior mercado do mundo no segmento de beleza — atrás de Estados Unidos, China e Japão.
E são elas que geralmente estão à frente desses negócios. Cerca de 10 milhões de mulheres no Brasil são empreendedoras, segundo o estudo Empreendedorismo Feminino 2022, realizado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Ou seja, são 34,1% do total de donos de negócios próprios no país.
10 MILHÕES
de mulheres no Brasil são empreendedoras
Estudo do Mckinsey Global Institute projetou o impacto financeiro de um cenário com participação plena das mulheres no mundo dos negócios: os ganhos no PIB mundial chegariam a US$ 28 trilhões até 2025.
No Espírito Santo, de acordo com dados do perfil Empreendedoras Capixabas, do Sebrae Delas, são 190 mil empreendedoras no estado, sendo que 55% se consideram pretas ou pardas e 73% são mães. A pesquisa também diz que 57,5% trabalhavam de carteira assinada antes de empreender.
Sobre os empreendimentos, mais de 54% atuam no setor de serviços e seis em cada 10 deles têm até cinco anos. Outro dado é que de sete a cada 10 têm presença digital em sua maioria, através de redes sociais.
+ 48% das empreendedoras
no Espírito Santo são responsáveis pela maior parte da renda familiar
Os principais fatores que motivaram as mulheres a abrirem um negócio foram perceber uma oportunidade, fazer o que gosta, além de ter liberdade e autonomia.
Como a massoterapeuta Monique Glória das Merces Niemeiskchtz. Nascida numa família pobre no Rio de Janeiro, ela foi incentivada desde cedo pela mãe, que era empregada doméstica, a bolar planos para obter o que deseja. Apaixonada pela área da saúde, fez curso técnico em patologia clínica, trabalhou em laboratórios e clínicas, até conseguir uma oportunidade para trabalhar em dois hospitais. "Foi nesses empregos que aconteceu a primeira transição de carreira, estudei e acabei me tornando enfermeira".
Até que Monique se mudou para o Espírito Santo. Chegou em Vila Velha sem conhecer ninguém. "Eu sabia que teria que me reinventar e começar tudo de novo. Tive a oportunidade de fazer o curso de massagista e me apaixonei, porque ia continuar cuidando de pessoas. Eu precisava de um trabalho, de tempo e de qualidade de vida", conta.
Essa é a primeira vez que ela empreende. "Sempre trabalhei com carteira assinada e estou empreendendo. É um desafio muito grande porque requer coragem. E exige muita resiliência e capacidade de lidar com fracasso, porque nem sempre o início dá certo". Boa parte de suas clientes são da região de Riviera da Barra, local onde divide o espaço com outra empreendedora, uma psicanalista clínica infantil.
"Minhas clientes buscam atendimentos para dores e relaxamento. Além das pessoas que procuram um tratamento por exercer atividades que exigem muito do corpo. Aprendi que a minha profissão não toca só o corpo, toca a alma de uma pessoa. Trago alívio e conforto para minha cliente. A massagem é a principal fonte de renda da minha casa", conta ela que tem o sonho de ser uma profissional reconhecida na área.
OS DESAFIOS DAS MULHERES
Josy Santos, especialista em negócios liderados por mulheres, diversidade, equidade e inclusão, inovação e responsabilidade social corporativa, conta que criar oportunidades na periferia é fundamental para promover justiça social e reduzir desigualdades históricas.
"Empreender, nesses territórios, é muitas vezes uma questão de sobrevivência. Ao apoiar esses negócios, especialmente os liderados por mulheres, estimulamos a geração de renda, fortalecemos a economia local e ampliamos a autoestima de comunidades que por muito tempo foram invisibilizadas".
A especialista ressalta que as mulheres enfrentam múltiplos desafios na hora de empreender, como a sobrecarga com o trabalho doméstico e de cuidados, a falta de acesso a crédito, a ausência de redes de apoio e preconceitos de gênero que questionam sua capacidade de liderar e tomar decisões. "Para mulheres negras e periféricas, esses obstáculos se somam ao racismo estrutural e à falta de representatividade em espaços de poder", explica Josy Santos.
E isso ocorre por fatores como o histórico de exclusão financeira, a falta de garantias exigidas por bancos e o viés de gênero presente até mesmo nos critérios de análise de crédito. "A solução passa por criar linhas de financiamento mais acessíveis, fomentar fundos de investimento voltados para negócios femininos e apoiar programas de capacitação financeira com olhar inclusivo".
Josy, que atua como diretora executiva no Instituto Coria e líder em Inovação Social na Semente, ressalta que é importante lembrar que falar de empreendedorismo feminino é falar de políticas públicas, de acesso à educação, saúde, mobilidade e creche. "Não basta apenas incentivar o empreendedorismo, é preciso criar condições estruturais para que ele floresça. Empreender não deve ser um ato de resistência individual, mas uma possibilidade coletiva de realização com dignidade".
Apesar das dificuldades, ela conta que as mulheres estão à frente de uma verdadeira revolução silenciosa. "Elas empreendem por necessidade, por sonho e por propósito. Estão criando soluções, movimentando a economia local e, muitas vezes, sustentando suas famílias sozinhas. Mesmo com tantos desafios, seguem transformando suas realidades com coragem e criatividade".
PRIMEIRA VEZ
A massagista Camila de Jesus Sousa, de 22 anos, também está transformando a sua vida. Moradora de Cidade da Barra, em Vila Velha, ela trabalhou como cabeleireira, manicure, design de sobrancelhas e cuidadora, até virar massagista em 2023. "Sempre gostei de cuidar das pessoas, e isso me levou a buscar formações na área de terapias e estética".
Camila fez curso profissionalizante de massagista e outros complementares de estética. "Quando eu entendi do que se tratava o toque e do que eu poderia transformar a partir dele, decidi que essa seria minha profissão. Busco proporcionar um atendimento ainda mais completo para os meus clientes". Ela conta que é a primeira vez que empreende. "Sempre atuei como profissional autônoma, mas agora tenho me estruturado como empreendedora, com mais foco e visão de negócio".
A massagista trabalho em casa, em dias alternados, de acordo com a demanda e a rotina com a maternidade. Em média, ela atende quatro clientes por dia, que têm entre 25 a 60 anos e que buscam o alívio de dores físicas, o bem-estar emocional, o relaxamento e os cuidados estéticos. "Muitas vêm em busca de um momento de autocuidado e saem mais leves".
Ela conta que equilibrar o trabalho, a maternidade e a vida pessoal é um grande desafio. "Além disso, muitas vezes enfrento insegurança, falta de apoio e dificuldade de acesso a recursos ou divulgação. Mas tenho o sonho de montar um espaço físico, com uma identidade própria e estrutura adequada para oferecer ainda mais conforto para as minhas clientes".
REDE DE APOIO É FUNDAMENTAL
Suzana Fernandes, analista e gestora estadual do Sebrae Delas no Espírito Santo, diz que é fundamental criar oportunidades para quem empreende na periferia. "Porque a periferia concentra um enorme potencial criativo e produtivo que muitas vezes é invisibilizado. Quando a gente leva oportunidade para esses territórios, não estamos só falando de negócio, mas também de autonomia, de circulação de renda local e de transformação real na vida das mulheres e suas comunidades".
O Sebrae Delas é um projeto voltado para fortalecer o empreendedorismo feminino em todas as suas fases. No Espírito Santo, ele foi aprimorado para ser uma rede viva, com capacitações, conexões e ações de visibilidade que respeitam a diversidade das mulheres, seus contextos e suas potências. "O objetivo é que elas cresçam com propósito, autonomia e apoio real", diz Suzana Fernandes.
A gestora explica que a atuação do Sebrae em relação ao empreendedorismo feminino também pode ocorrer através do apoio na construção e implementação de políticas públicas, na articulação com instituições públicas e lideranças locais, no fortalecimento do ecossistema com dados, além de ações como feiras, rodadas de negócio e educação empreendedora, que beneficiam as mulheres de forma transversal.
E isso inclui o acúmulo de responsabilidades com trabalho doméstico e cuidado, o acesso desigual a crédito, menores redes de contato, além de estereótipos de gênero que desvalorizam a liderança feminina. "Esses fatores formam o que a literatura chama de 'ecossistema desigual de empreendedorismo', no qual as mulheres precisam superar mais obstáculos para acessar as mesmas oportunidades. Não se trata de falta de capacidade, mas de um contexto que ainda não garante as mesmas condições para todas as pessoas empreenderem", ressalta Suzana.
Mulheres empreendedoras ainda recebem menos crédito, pagam juros mais altos e, muitas vezes, nem sabem por onde começar. "A solução passa por educação financeira acessível, parcerias com instituições mais sensíveis à pauta de gênero e preparo para que essas mulheres cheguem prontas para negociar".
Ela ressalta ainda a importância de ter uma rede de negócios que fortalece o empreendedorismo feminino, capacita e incentiva as mulheres a se desenvolverem. "Rede é tudo. Para empreender é necessário apoio, troca, escuta e incentivo", diz Suzana Fernandes.
O RECOMEÇO
Apoio, troca e incentivo foi o que teve a terapeuta capilar Gabriela Ribeiro Moura. Até 2020 a capixaba trabalhava como técnica de enfermagem em plantões de 12 horas por 36 horas em dois hospitais da Grande Vitória. "A rotina era pesada, mas eu gostava muito". Casada, mãe de duas crianças, a vida seguia até acontecer uma reviravolta. E o motivo foi um só: a dor do luto. Em 2021 ela perdeu o filho Theo aos três meses de vida. "Ele nasceu com uma síndrome rara e os médicos disseram que e algum momento ele poderia morrer. Depois que eu perdi o meu filho já não queria mais trabalhar na área de enfermagem, queria fugir da realidade de hospital", conta.
Gabriela viveu o luto e tempos depois renasceu para vida. "Eu quis me descobrir novamente. Fui trabalhar, me especializar e estudar sobre cabelos. Hoje sou apaixonada pelo que eu faço". Começou cuidando do cabelo de uma cliente que tinha um espaço de unhas. A cliente indicou para outras e o boca a boca se espalhou pelas ruas de Terra Vermelha. "Abri uma sala, mas com três meses o negócio quebrou. Hoje vejo que não estava preparada para dirigir um negócio".
A empreendedora voltou a trabalhar em casa. Há mais de um ano surgiu a oportunidade de alugar um novo espaço no bairro João Goulart. O Studio Renovar Therapy tem paredes pintadas de verde, espelho com borda de led e prateleira com dezenas de produtos de beleza. Quatro profissionais parceiras trabalham no local e dezenas de clientes buscam atendimentos para os cabelos, maquiagem, cuidados com as unhas, depilação, penteados e design de sobrancelha.
"Conheci o R5 Mulher naquele momento que eu estava passando, de luto. Fui muito abraçada, acolhida, participei do 'Café com terapia' e também tive o desenvolvimento pessoal. Além do apoio de mulheres, tive consultoria de negócios e participei de palestras. Sou a principal investidora do negócio e também trabalho nele", conta Gabriela.
As principais clientes são outras mulheres empreendedoras da região da Grande Terra Vermelha. "São donas ou funcionárias de supermercado, da padaria, do quilão de verduras ou de outros centros de estética. A gente também atende clientes de Cariacica e Vila Velha".
Além da administração do negócio, ela conta que o desafio é gravar vídeos para redes sociais e também estudar a parte da ciência. "Estou aqui e tenho que aprender tudo", conta a empreendedora que tem trabalhado para realizar a compra da casa própria, do carro e o sonho de viajar para a Disney com os dois filhos.
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