Elda Bussinger fala violência sofrida por Mariana Ferrer em audiência e da importância da mulher não ter medo de denunciar o agressor
Elda Bussinger fala violência sofrida por Mariana Ferrer em audiência e da importância da mulher não ter medo de denunciar o agressor
Elda Bussinger

"Todo estupro é doloso. Em todo estupro existe a intenção de cometer aquele crime", diz advogada

A doutora e escritora reflete sobre os detalhes do julgamento do caso Mariana Ferrer, que geraram revolta na redes sociais após uma sentença inédita no código penal brasileiro: estupro sem intenção de estuprar, que foi chamado de culposo

Tempo de leitura: 2min
Elda Bussinger fala violência sofrida por Mariana Ferrer em audiência e da importância da mulher não ter medo de denunciar o agressor
Vitória
Publicado em 05/11/2020 às 06h01

O movimento "Estupro culposo não existe" se espalhou pela internet nesta terça-feira, dia 3 de novembro, após reportagem publicada pelo The Intercept Brasil que trouxe ao conhecimento público um vídeo que expõe o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, da defesa de André de Camargo Aranha, questionando a acusação de estupro com fotos da catarinense Mariana Ferrer. Na audiência virtual a promotora de eventos foi ofendida e humilhada. E um novo tipo de crime, inédito na justiça brasileira, apareceu na decisão: estupro sem intenção de estuprar, que foi chamado de estupro culposo. 

O estupro, segundo Mariana, teria ocorrido na noite de 15 de dezembro de 2018, na festa de abertura do verão no Music Sunset do beach club Café de la Musique, em Jurerê Internacional. Em seu depoimento à polícia, Mariana afirmou que teve um lapso de memória entre o momento em que uma amiga a puxou pelo braço e a levou para um dos camarotes do Café em que o empresário Aranha estava e a hora em que desce uma escada escura. Ela acredita ter sido dopada. A única bebida alcoólica anotada na comanda do bar em seu nome foi uma dose de gim. Mariana era virgem até então, o que foi constatado pelo exame pericial.

Nesta entrevista, Elda Bussinger, que é pós-doutora em Saúde Coletiva (UFRJ), doutora em Bioética (UNB), mestre em Direito (FDV) e coordenadora do doutorado em Direito da FDV, fala da violência sofrida por Mariana durante a audiência. E da importância da mulher não ter medo de denunciar o agressor. "É preciso que essas questões venham à tona, que se fale todos os dias. As mulheres não podem ter medo de saírem às ruas, de encerrarem relacionamentos amorosos. As pessoas dizem que o grande sonho das mulheres é casar e ter filhos, mas não é. O grande sonho de todas é andar tranquilamente sem serem violentadas". Confira a entrevista.

Na sentença de André de Camargo Aranha, que se espalhou pela internet nesta terça-feira, dia 3 de novembro, um novo tipo de crime, inédito na justiça brasileira, apareceu na decisão: estupro culposo. O que a senhora pode explicar sobre esse termo estupro culposo?

Na realidade não existe esse tipo penal. Nós falamos em culpa e dolo em outras situações. Todo estupro é doloso, em todo estupro existe intenção de cometer aquele crime. A diferença do doloso pro culposo é que no culposo não existe a intenção do agressor. Mas em caso de estupro não existe esse tipo penal. Todo estupro é doloso.

O que aconteceu naquela sala de audiência é o que geralmente acontece com mulheres vítimas de violência nas delegacias e nos tribunais?

Isso é mais comum do que nós imaginamos. A única diferença entre o que acontece e o que ocorreu ali é que por ser a vítima quem é - uma mulher branca, de classe médica e com influência social -  o vídeo veio à tona. Mas, na realidade, na nossa sociedade existe uma cultura do machismo e do estupro. O estupro é naturalizado. E nesse processo de naturalização, os homens que estavam ali presentes - todos - foram coniventes com um segundo estupro. Porque a gente não consegue compreender isso, mas aquela mulher sofreu um segundo estupro naquela sala de audiência. Ela foi violentada de novo.

Que segundo estupro é esse?

Ela foi estuprada novamente. Porque nós tratamos o estupro sendo uma violência sexual, no caso dela, simbolicamente, ela foi novamente violentada. Porque o juiz que deveria acolher, tratar as partes de maneira igual, não fez isso. Ele colaborou com a violência do advogado, o membro do Ministério Público (MP) da mesma forma. Todos os homens fizeram uma grave violência com a Mariana. Ela foi criminalizada quando ela era a vítima. O culpado ficou tranquilo, sendo defendido por um dos maiores advogados de Santa Catarina. Tivemos uma situação grave que violentou essa mulher, o juiz e o membro do MP foram coniventes. Até o advogado da vítima, na sua função, tinha que ter se posicionado. Ele deveria ter defendido sua cliente, porém foi conivente com aquela situação. Isso é a cultura do estupro naturalizada e precisa ser denunciada. E isso é comum de acontecer e com mulheres pobres e negras é muito mais grave e jamais vem à tona. Precisamos repudiar o que os órgãos do sistema de justiça se posicionem, o MP precisa apurar os fatos e o promotor responder. A Ordem dos Advogados do Brasil precisa punir esse advogado. Esses homens cometeram um grave crime de violência. Eles atingiram a dignidade dessa mulher, o emocional e o psicológico. Os fatos que foram expostos não tinham sentido ali.

Elda Bussinger

advogada

"Porque a gente não consegue compreender isso, mas aquela mulher sofreu um segundo estupro naquela sala de audiência. Ela foi violentada de novo."

Elda Bussinger

advogada

"A situação na qual o juiz pergunta se ela quer beber uma água é de absoluta escarnia. Ele deveria ter interrompido a fala do advogado, a audiência e responsabilizado o advogado pelo crime que cometeu."

O que a senhora sentiu ao assistir à audiência?

Repulsa. Como jurista e uma professora de Direito Constitucional eu tive vergonha. Coordeno mestrado e doutorado em Direitos e Garantias Fundamentais, e tive vergonha por ver de perto os princípios constitucionais sendo violados por aqueles que deveriam guardar e valorizar os princípios. Mariana foi violentada coletivamente. A situação na qual o juiz pergunta se ela quer beber uma água é de absoluta escarnia. Ele deveria ter interrompido a fala do advogado, a audiência e responsabilizado o advogado pelo crime que cometeu.

Essa decisão, de estupro culposo, coloca em risco muitas outras mulheres? No sentido de que homens estupradores podem se valer dessa brecha...

Na realidade essa expressão 'estupro culposo' não consta no autos. Mais isso não é o que importa. O que importa é o que foi feito. Hoje, as estatísticas apontam que 75% dos crimes sexuais não são denunciados. 

Porque as mulheres não denunciam?

Por medo, vergonha e porque elas sabem que o que aconteceu com aquela moça, acontece com todas as mulheres que denunciam crimes sexuais. Elas são transformadas em culpadas, humilhadas, culpabilizadas e a vida se transforma num inferno. Não denunciam porque sabem que pela Justiça está sustentado também numa cultura machista e do estupro. Elas não acreditam no sistema de justiça.  Muitas vezes pais e família pedem para não denunciarem para não serem expostos. Essa é a forma do patriarcado, machista, estuprador, violador, que silencia as mulheres. Para que os corpos delas possam continuar sendo usados pelos homens como se fossem um objeto.

A vítima muitas vezes é tão – ou mais – julgada pela sociedade do que o próprio criminoso?

No nosso país a vítima é sempre criminalizada. Especialmente se foram pobres, mulheres e negras. A tentativa é de transformá-las em culpados e isso precisa ser denunciado. Na audiência, aquela vítima teve todos os direitos violados. O agressor ficou tranquilo, para ele parecia que estava tudo bem. Isso não pode acontecer, ela pediu clemência.

Quatro homens vendo o advogado humilhar a vítima. Qual o papel do homem no combate a cultura do estupro?

A questão é que essa luta não pode ser somente das mulheres. Ela deveria também ser uma luta dos homens. As mulheres protagonizam, mas homens de bem precisariam se indispor contra uma situação dessa. Os homens deveriam denunciar, os juízes e promotores de todo país deveriam se indispor contra isso. Esse advogado deveria responder a processo ético- disciplinar pela OAB. Ela foi humilhada e culpabilizada e ficou claro que a justiça não exerceu seu papel.

É comum decisões judiciais absolverem homens acusados de estupro?

É frequente demais e é sempre uma tentativa de dizer que há falta de provas. Usa-se essa história da falta de provas na tentativa de fazer os homens com direito sobre o corpo das mulheres. A justiça contra a Mariana, ela fere toda a sociedade. A vítima nunca é culpada, isso tem que ficar claro.

Como sair do sistema que oprime e violenta as mulheres?

A gente precisa denunciar. Esse juiz precisa ser punido exemplarmente pela sua postura. O advogado também. Há a necessidade de que seja apurado e de que as pessoas sejam punidas, porque as provas estão todas ali. O video é uma prova do que aconteceu. É preciso que as mulheres se organizem nesse momento, num grande movimento nacional, e denunciem essa situação. O ideal é que nesse momento mulheres de todo Brasil fossem para as ruas denunciando o crime desses homens presentes que permitiram aquela situação. Porque todas as provas estavam lá.  Não importa, uma mulher que vende o seu corpo, no momento que ela dizer que não quer, é não. Não é sempre não, independente de qualquer situação. E não era o caso daquela menina. Mulheres de todo o país foram violentadas por aqueles homens. Agora é a hora das mulheres se unirem. A justiça precisa cumprir a sua missão, que é fazer justiça e não proteger a elite, porque foi o que aconteceu. 

O que fazer em caso de estupro?

É preciso denunciar imediatamente e se fortalecer em grupos de mulheres. Porque elas não terão apoio da família - a maioria orienta para não denunciar, não querem ser expostos. É preciso reverter esse percentual de 75%. Precisamos ter apoio da sociedade para que tenham condições de aguentar.

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