Publicado em 19 de outubro de 2025 às 08:32
Aviso: este artigo pode ferir a sensibilidade de alguns leitores.>
Touma está dias sem comer. Permanece sentada em silêncio, com os olhos vidrados, enquanto olha sem rumo para a sala do hospital.>
Em seus braços, imóvel e gravemente desnutrida, está sua filha de três anos, Masajed.>
Touma parece alheia ao choro das outras crianças pequenas que a cercam. "Queria que ela chorasse", diz a mãe de 25 anos, olhando para a filha. "Faz dias que ela não chora.">
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O Hospital Bashaer é um dos últimos hospitais em funcionamento em Cartum, a capital do Sudão, devastada pela guerra civil que se estende desde abril de 2023. Muitos percorreram horas para chegar até aqui em busca de atendimento especializado.>
A sala de desnutrição está cheia de crianças fracas demais para combater qualquer doença. Suas mães permanecem sentadas ao lado delas, impotentes.>
Não há como acalmar os choros, e cada um deles dói profundamente.>
Touma e sua família foram obrigadas a fugir quando os combates entre o exército sudanês e as Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês), um grupo paramilitar, chegaram à sua casa, cerca de 200 km a sudoeste de Cartum.>
"As RSF nos tomaram tudo o que tínhamos: nosso dinheiro e nosso gado", relata. "Fugimos com apenas nossas vidas.">
Sem dinheiro e sem comida, os filhos de Touma começaram a sofrer.>
A mãe parece atônita ao recordar sua antiga vida. "Antes, nossa casa estava cheia de bênçãos. Tínhamos gado, leite e tâmaras. Mas agora não temos nada.">
O Sudão atravessa atualmente uma das piores emergências humanitárias do mundo.>
Segundo a ONU, três milhões de crianças menores de cinco anos sofrem de desnutrição aguda. Os hospitais que ainda funcionam estão sobrecarregados.>
O Hospital Bashaer oferece atendimento e tratamento básico gratuitos.>
No entanto, os medicamentos vitais que as crianças na sala de desnutrição precisam devem ser pagos por suas famílias.>
Masajed é gêmea; ela e sua irmã, Manahil, foram levadas juntas ao hospital. Mas a família só podia pagar antibióticos para uma das filhas.>
Touma teve que tomar uma decisão impossível: escolheu Manahil.>
"Queria que ambas pudessem se recuperar e crescer", diz, com a voz entrecortada. "Queria poder vê-las caminhar e brincar juntas como antes.">
"Só quero que as duas melhorem", diz Touma, embalando a filha moribunda.>
"Estou sozinha. Não tenho nada. Só tenho a Deus.">
As taxas de sobrevivência ali são baixas. Para as famílias daquela sala, a guerra levou tudo. Restou-lhes nada, nem meios para comprar os medicamentos que poderiam salvar seus filhos.>
Ao sairmos, o médico responsável afirma que nenhuma das crianças daquela sala sobreviverá.>
Em toda Cartum, a guerra civil reescreveu a vida das crianças.>
O que começou como um confronto entre forças leais a dois generais — o chefe do exército, general Abdel Fattah al-Burhan, e o líder das RSF, Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti — logo se espalhou pela cidade.>
Durante dois anos — até março passado, quando o exército retomou o controle — a cidade ficou imersa na guerra, enquanto combatentes rivais se enfrentavam.>
Cartum, outrora um centro cultural e comercial às margens do rio Nilo, transformou-se em um campo de batalha. Tanques invadiram os bairros. Aviões de combate rugiam sobre as cabeças dos moradores. Civis ficaram presos em meio a fogo cruzado, bombardeios de artilharia e ataques de drones.>
É neste cenário devastado, em meio ao silêncio da destruição, que a frágil voz de uma criança se eleva entre os escombros.>
Zaher, de 12 anos, se desloca em cadeira de rodas entre os destroços, passando por carros queimados, tanques, casas destruídas e balas esquecidas.>
"Vou para casa", canta suavemente para si mesmo, enquanto a cadeira rola sobre vidros quebrados e estilhaços. "Não consigo mais ver meu lar. Onde está minha casa?">
Sua voz, frágil mas determinada, carrega tanto o lamento pelo que foi perdido quanto uma silenciosa esperança de que, algum dia, possa finalmente voltar para casa.>
Em um edifício que agora funciona como abrigo, Habibah, mãe de Zaher, relata como era a vida sob o controle das RSF.>
"A situação era muito difícil", diz. "Não podíamos acender as luzes à noite; era como se fôssemos ladrões. Não acendíamos fogo. Não nos movíamos de jeito nenhum à noite.">
A mãe se senta ao lado do filho em um quarto com camas individuais.>
"A qualquer momento, fosse enquanto dormia ou se duchava, em pé ou sentada, encontrava os paramilitares pisando em nossos calcanhares.">
Muitos civis fugiram da capital, mas Zaher e sua mãe não tinham meios para escapar. Para sobreviver, vendiam lentilhas nas ruas.>
Então, numa manhã, enquanto trabalhavam juntos, um drone os atacou.>
"Olhei para ele e ele estava sangrando. Havia sangue por toda parte", conta Habibah. "Eu estava perdendo a consciência. Mas me obriguei a ficar acordada porque sabia que, se desmaiasse, perderia meu filho para sempre.">
As pernas de Zaher ficaram gravemente feridas. Após horas de agonia, conseguiram chegar ao hospital.>
"Não parava de rezar: 'Por favor, Deus, tire minha vida em vez das pernas dele'", relata Habibah, com lágrimas no rosto.>
Mas os médicos não conseguiram salvar as pernas de Zaher. Elas precisaram ser amputadas logo abaixo dos joelhos.>
"Ele acordava e perguntava: 'Por que você deixou cortar minhas pernas?'" Habibah abaixa o olhar, com o rosto cheio de remorso. "Eu não podia responder.">
Tanto Habibah quanto o filho choram, atormentados pela lembrança do que lhes aconteceu.>
A situação se agrava porque Habibah sabe que um par de próteses poderia dar a Zaher a chance de voltar a viver a infância, mas ela não tem como pagar. Para o menino, o trauma do ocorrido é difícil demais para relatar.>
Ele compartilha apenas um sonho. "Queria ter próteses para poder jogar futebol com meus amigos como antes. Só isso.">
As crianças de Cartum não tiveram apenas sua infância roubada, mas também os lugares seguros para brincar e ser jovens.>
Escolas, campos de futebol e parques infantis estão agora destruídos, entre lembranças quebradas de uma vida tomada pelo conflito.>
"Era muito bonito aqui", diz Ahmed, de 16 anos, enquanto observa um parque de diversões e um parquinho destruídos.>
Estampado em sua camiseta cinza e rasgada há um grande rosto sorridente, com a palavra "sorriso" escrita abaixo. Mas sua realidade não poderia estar mais distante desse sentimento.>
"Meus irmãos e eu costumávamos vir aqui. Brincávamos o dia todo e ríamos muito. Mas, quando voltei depois da guerra, não consegui acreditar que fosse o mesmo lugar.">
Ahmed agora vive e trabalha aqui, limpando os escombros da guerra, ganhando o equivalente a 50 dólares por 30 dias de trabalho contínuo.>
O dinheiro ajuda a sustentar a si mesmo, a mãe, a avó e um de seus irmãos.>
Ele tinha outros seis irmãos, mas, como tantas pessoas no Sudão que têm familiares desaparecidos, perdeu o contato com eles. O adolescente olha para os próprios pés enquanto conta que não sabe onde estão — nem se algum deles ainda está vivo.>
A guerra despedaçou famílias como a dele.>
O trabalho de Ahmed o faz lembrar disso quase todos os dias. "Encontrei aqui os restos de 15 corpos até agora", diz.>
Muitos dos restos encontrados já foram enterrados, mas ainda há ossos espalhados pelo local.>
Ahmed atravessa o parque e recolhe uma mandíbula humana. "É assustador. Me faz tremer.">
Ele nos mostra outro osso e, segurando-o com inocência ao lado da própria perna, comenta: "Este é um osso de perna, como a minha.">
Ahmed confessa que já não se atreve a sonhar com o futuro.>
"Desde que a guerra começou, tenho a certeza de que estou destinado a morrer. Então parei de pensar no que faria no futuro.">
A destruição das escolas colocou ainda mais em risco o futuro das crianças.>
Milhões de pessoas já não recebem educação.>
Mas Zaher é um dos poucos sortudos. Ele e seus amigos frequentam a escola em uma sala improvisada, instalada por voluntários em uma casa abandonada.>
As crianças respondem em voz alta, escrevem no quadro, cantam músicas e até há alguns meninos travessos fazendo bagunça ao fundo da sala.>
Ouvir o som de crianças aprendendo e rindo, em um país onde as oportunidades para serem crianças são tão limitadas, é como um néctar.>
Quando perguntamos como deveria ser a infância, os colegas de Zaher respondem com inocência intacta: "Deveríamos estar brincando, estudando, lendo.">
Mas a lembrança da guerra nunca está longe. "Não deveríamos ter medo de bombas nem de balas", interrompe Zaher. "Deveríamos ser corajosos.">
Sua professora, Amal, leciona há 45 anos. Nunca tinha visto crianças tão traumatizadas.>
"A guerra os afetou muito", afirma.>
"A saúde mental, o vocabulário deles… Eles falam a linguagem das milícias. Maldições violentas, até violência física. Andam com paus e chicotes, prontos para bater em alguém. Ficam muito ansiosos.">
O dano causado pela guerra vai além do comportamento.>
Com a maioria das famílias sem renda, a escassez de alimentos é grave.>
"Alguns alunos vêm de casas sem pão, sem farinha, sem leite, sem óleo, sem absolutamente nada", observa a professora.>
E, ainda assim, no meio do desespero, as crianças do Sudão se agarram a momentos fugazes de alegria.>
Em um campo de futebol deteriorado, Zaher se arrasta de joelhos pelo chão, decidido a jogar o esporte que mais ama. Seus amigos o incentivam enquanto ele chuta a bola.>
"O que mais gosto de fazer é jogar futebol", diz, sorrindo pela primeira vez.>
Quando perguntado de qual time é torcedor, a resposta vem imediatamente: "Real Madrid". E o jogador favorito? "Vinicius.">
Jogar de joelhos é extremamente doloroso e pode provocar mais infecções. Mas ele não se importa.>
O futebol e suas amizades o salvaram. Deram-lhe alegria e uma via de escape da sua realidade.>
Ainda assim, ele sonha com próteses.>
"Queria que me dessem para poder voltar para casa andando e ir à escola", diz Zaher.>
Reportagem adicional de Abdelrahman Abutaleb, Abdalrahman Altayeb e Liam Weir.>
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