Publicado em 3 de abril de 2025 às 05:39
"Por que tu não esquece isso, Marisa Monte? Deixa isso para lá, Marisa Monte!", dizia Tim Maia à cantora, que queria cantar uma música... dele. >
Era Que Beleza, faixa que Marisa Monte queria incluir no álbum Barulhinho Bom, de 1996. Mas Tim Maia insistiu tanto que a cantora desistiu da ideia, segundo ela contou em uma entrevista ao jornal Estadão em 2000.>
A música, também conhecida como Imunização Racional, é uma das 20 canções de Tim gravadas no período em que o artista se tornou adepto do grupo religioso Universo em Desencanto. >
A fase rendeu dois discos: Tim Maia Racional Vol. 1 e Vol. 2, lançados, respectivamente, em 1975 e 1976. >
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A gravação do volume 1, em fevereiro de 1975, completou 50 anos.>
O posterior desencanto com o grupo religioso, porém, fez com que Tim Maia fizesse de tudo para que os dois álbuns caíssem no esquecimento. >
Não conseguiu: cultuados por colecionadores e fãs de música, no Brasil e no exterior, os LPs chegaram a ser vendidos por fortunas em sebos.>
Foi também com esses álbuns que Tim Maia se tornou o primeiro artista vindo do mainstream (segmento mais popular ou dominante do mercado) a se tornar verdadeiramente independente, fundando sua própria gravadora. >
Liderada pelo médium Manoel Jacintho Coelho, a congregação Universo em Desencanto prometia colocar os devotos em contato com seres de outros planetas. >
Para isso, os fieis precisavam cumprir à risca a cartilha de deveres e rituais impostos por Jacintho, como não comer carne, não beber álcool, acordar e dormir cedo e vestir apenas roupas brancas.>
Foi um amigo de Tim Maia, o também músico Tibério Gaspar, quem apresentou ao cantor ao grupo religioso.>
Em 1974, Tim estava no auge da carreira musical: havia gravado três grandes discos nos três anos anteriores e, com eles, ganhou o merecido título de rei da soul music brasileira. >
Tim também estava bebendo e cheirando cocaína como nunca. >
Preocupado com os excessos do amigo, Tibério Gaspar decidiu levá-lo para assistir um culto da Universo em Desencanto em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.>
O que Manoel Jacintho pregava, argumentou Tibério, podia fazer sentido para Tim: uma vida de purificação, preparo espiritual e desapego material que colocaria os habitantes da terra dispostos a esses sacrifícios em contato com seres de outro planeta.>
Há tempos Tim sonhava em embarcar numa viagem sideral pelo espaço, de preferência a bordo de um disco voador.>
Mas, para chegar ao céu, Tim enfrentou um inferno particular. Tão duro quanto largar imediatamente o álcool e as drogas, foi se desfazer da geladeira e tudo que tinha dentro. Foi-se também o fogão e o ar condicionado. >
Obrigado a se desfazer de qualquer bem material, Tim só não jogou fora a cama king size. Dormir no chão já seria demais.>
A fase messiânica permitiu algo que muitos achavam pouco provável naquele momento: transformar Tim Maia, um grande intérprete da música popular brasileira, num cantor ainda melhor. >
Proibido de cair na farra, por conta da cartilha moral imposta por Jacintho, o cantor parou de beber, fumar e cheirar. Os famosos graves chegaram à potência máxima.>
Serginho Trombone, que trabalhou nos dois discos Tim Maia Racional, relatou ao site Cliquemusic, em 2000, o martírio enfrentado pelo cantor para cumprir todos os rituais. >
"Foi uma fase muito doida. O Tim vivia olhando para o céu procurando discos voadores. O pior de tudo é que ele convenceu a banda inteira a entrar para a seita. Pintamos todos os instrumentos de branco, até a bateria", lembrou Serginho, que morreu em 2020. >
"Ele acabou sendo o grande prejudicado, pois teve de se livrar de todos os produtos materiais de seu apartamento. Jogou fora fogão, geladeira e até o carpete da sala.">
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De branco da cabeça aos pés, com uma bíblia debaixo do braço, o recém-convertido fiel da Universo em Desencanto enlouqueceu os engenheiros de som e produtores da gravadora Polydor. A ordem era mudar tudo, dos arranjos às letras das músicas. >
A direção da Polydor não gostou do que viu e ouviu. >
A gravadora rescindiu o contrato com Tim, recusando-se a gravar um disco gospel com um artista não só identificado com a black music, mas também conhecido pelo estilo ousado e transgressor. >
Seria algo como gravar um disco de punk-rock com Roberto Carlos.>
Tim não desistiu e fundou a própria gravadora, a Seroma — abreviação de seu nome, Sebastião Rodrigues Maia. >
Foi um momento histórico da música brasileira: um grande artista passou a gerenciar sua carreira, sem a ingerência de uma multinacional. Elas dominavam o mercado fonográfico brasileiro.>
Tim se tornou dono da própria obra e história. >
Mas o preço de tanta mudança foi alto. O cantor teve que se virar sozinho, sem respaldo de uma grande gravadora — o próprio artista, com a ajuda dos músicos de sua banda, passou a entregar pessoalmente os discos nas grandes lojas do Rio e de São Paulo.>
Ele também enfrentou o boicote dos canais de divulgação.>
Com exceção de Que beleza, talvez a canção menos doutrinária dos dois discos, nenhuma outra faixa de Tim Maia Racional tocou nas rádios. >
Os fãs também não gostaram. Quando procuravam pelo novo disco do artista e viam aquela capa, com símbolos e mensagens que remetiam à Universo em Desencanto, além do encarte com as letras de louvor, não tiravam nem o LP das prateleiras.>
Mais tarde, Tim deu outro nome à sua gravadora, Vitória Régia Discos, com a qual lançou todos os seus álbuns até a morte, em 1998.>
Em um dado momento, pelo fim de 1976, o cantor percebeu que os discos voadores jamais pousariam em Nova Iguaçu ou em qualquer outro lugar — e Tim Maia reagiu como Tim Maia.>
Primeiro, Tim desejou matar o seu guru, segundo relato de Serginho Trombone. O cantor invadiu a sede da Universo Desencanto, disposto a quebrar tudo — começando com Manoel Jacintho.>
Ele foi juntamente com os músicos de sua banda, igualmente indignados. Serginho Trombone, que havia se desfeito do carro, do freezer e de duas linhas telefônicas, era o mais revoltado. >
Protegido pelos fiéis, o médium escapou da surra, mas não do vexame. >
"O Tim estava possesso. Ele foi para a janela de entrada da Universo em Desencanto e passou a gritar para todos que passavam na rua que aquilo tudo era uma grande farsa, que o Manoel Jacintho era um charlatão, que só queria o dinheiro dos fiéis. Ele gritava: 'Cadê o disco voador? Cadê o disco voador?'", recordou Serginho Trombone.>
O cantor tentou convencer outro famoso fiel a também pular fora. Um dos maiores nomes da música nordestina, o paraibano Jackson do Pandeiro, também recém-convertido à Universo em Desencanto, não quis saber dos apelos de Tim. >
Para ele, tudo que Manoel Jacintho pregava, fazia sentido. >
Nos anos seguintes, Jackson gravaria quatro músicas em homenagem à Universo em Desencanto: Mundo de paz e amor, Acorda meu povo, Alegria minha gente e A luz do saber.>
Já Tim passou a renegar, até o fim da vida, tudo que remetesse a essa fase — incluindo as canções e discos gravados nesse período.>
As letras, realmente, não eram das melhores. >
Olhando para o céu, à procura de discos voadores, Tim compôs coisas como "Já não dependo das loucuras/ Já encontrei o que fazer/ Agora sei outra verdade/ Estou vivendo com prazer" (versos da canção Paz Interior).>
Encantado com os saberes de seu então guru, Tim também compôs uma canção em homenagem a Manoel Jacintho, intitulada O Grão-Mestre Varonil. >
Um trecho: "O grão-mestre varonil/ Manoel, o maior homem do mundo/ Homem sábio e profundo/ Semeou conhecimento/ Missionário da pureza".>
Mas Tim não conseguiu apagar os vestígios de sua conversão à Universo em Desencanto. >
Não só não conseguiu, como viu o culto a essa fase aumentar. Culpa de fãs como Marcelo D2 e Paul Stewart, ex-piloto de corrida e filho do tricampeão mundial de Fórmula 1 Jackie Stewart, que pagaram caro pelos raríssimos LPs de 1975 e 1976.>
Em 2024, após um longo período em que a obra do cantor estava fora de catálogo, uma série de discos de Tim lançados entre 1970 e 1984 foi disponibilizada no Spotify, entre eles os dois volumes da fase Racional.>
Os fãs do cantor e da música brasileira enlouqueceram, menos o próprio autor, que, morto, nada pôde fazer.>
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