Publicado em 15 de dezembro de 2025 às 06:44
A cena de jornalistas e parlamentares agredidos na última terça-feira (9/12) na Câmara dos Deputados assustou a cientista política Beatriz Rey, doutora em Ciência Política pela Syracuse University e pesquisadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. >
Agentes do Departamento de Polícia Legislativa tentaram a remoção, à força, do deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ) da Mesa Diretora da Casa. Ele ocupava a cadeira do presidente em protesto contra a tentativa de cassação de seu mandato.>
A Associação Brasileira de Imprensa anunciou que vai acionar a Procuradoria-Geral da República para investigar um possível crime de responsabilidade do presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB).>
A pesquisadora, que há 15 anos estuda o fortalecimento do Congresso e prepara um livro sobre a presidência da Câmara, afirma que o tumulto expõe um processo mais profundo. >
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"O que chamo de desinstitucionalização da Câmara ocorre justamente quando o Congresso está imponderado, causando transtorno ao sistema político", disse. "Mas isso não começou agora.">
Para Rey, o cenário é agravado pelo acirramento da tensão entre Legislativo e Supremo Tribunal Federal (STF). A aprovação, na madrugada de 10 de dezembro, do projeto que altera a dosimetria aplicada aos crimes de tentativa de golpe de Estado, é um exemplo. >
Outro ponto de atrito é o caso de Carla Zambelli (PL-SP). >
A Primeira Turma do Supremo decidiu, por unanimidade, confirmar a ordem do ministro Alexandre de Moraes que determinou a perda automática do mandato da deputada — que anulou a decisão de quinta-feira (11/12) da Câmara, que havia optado por mantê-la no cargo, apesar da condenação criminal. >
Ela renunciou ao cargo neste domingo (13/12).>
"O caso da não cassação de Zambelli é um exemplo primoroso de como a Câmara não está cumprindo seu papel. Ela está perdendo a capacidade de se autogovernar", afirmou. >
Ela também liga essa dinâmica à disputa de 2026. Na avaliação da pesquisadora, apenas o bolsonarismo compreendeu a centralidade da eleição legislativa. "Quem não entendeu ainda foram outros campos ideológicos.">
Abaixo, confira a entrevista. >
BBC News Brasil – Você publicou que as imagens de violência da Polícia Legislativa na semana passada, que agrediu jornalistas e removeu o deputado federal Glauber Braga à força do plenário, não é um episódio isolado, mas sintoma de um processo profundo de desinstitucionalização da Câmara. O que significa essa desinstitucionalização?>
Beatriz Rey – Esse termo, na verdade, quem usou primeiro foi a [a cientista política] Magna Inácio. Eu já tinha isso na cabeça, sem dar ao fenômeno o nome de desinstitucionalização. E, já há algum tempo — eu diria que nos últimos quatro anos — vejo esse fortalecimento se dando de maneira institucionalizada em um sentido, e desinstitucionalizada em outro.>
Por exemplo: quando pensamos que o Congresso vem se tornando um ator cada vez mais importante na proposição e aprovação de normas jurídicas, isso é um processo institucionalizado. >
Os parlamentares propõem projetos de lei e os conduzem ao longo do processo legislativo. Eles têm mais condições de fazer isso ao longo dos anos, a ponto de, em 2009, termos o primeiro ano em que o Congresso aprova mais leis e leis complementares de autoria parlamentar do que do Executivo. >
Esse é um processo institucionalizado, porque tudo ocorre nas instituições formais: apresentação de projetos de lei, decisão coletiva de aprovação no plenário ou nas comissões.>
Outro processo institucionalizado é a profissionalização da consultoria legislativa. Temos cientistas políticos que estudam isso e mostram que, ao longo dos anos, ela se profissionaliza.>
O que chamo de desinstitucionalização da Câmara ocorre justamente quando o Congresso está imponderado, causando transtorno ao sistema político e ficou evidente nos episódios da semana passada. Mas o processo não começou agora; os últimos dias apenas revelaram a parte visível do problema.>
Quando o presidente da Câmara, fortalecido politicamente, mas sem controle sobre o próprio plenário, decide recorrer à força; quando um deputado — a meu ver equivocadamente — sobe na Mesa Diretora e se recusa a descer; e quando, diante dessa perda de controle, o presidente entende que precisa reagir e escolhe a violência como saída… Sempre que a força vira instrumento para resolver conflitos sociais, é sinal de que as instituições falharam em cumprir seu papel.>
Foi a primeira vez que me senti tão frustrada, porque nunca vi uma cena assim: a Polícia Legislativa sendo acionada para tirar um deputado do plenário, para retirar jornalistas, policiais socando repórteres. >
É a volta, de certa maneira, ao estado de natureza de Hobbes. Saímos do contrato social criado para mediar relações sociais e voltamos à violência.>
BBC News Brasil – Também foi uma semana marcada pela tensão entre STF e Câmara: o PL da dosimetria e a não cassação do mandato de Carla Zambelli contrariando decisões da Corte. Como você avalia essa tensão?>
Rey – Quando a Câmara se recusa a fazer o papel que lhe cabe — cassar o mandato da deputada Carla Zambelli — outro ator terá de aparecer e fazer o que ela não fez.>
Li o relato de um deputado muito frustrado com o presidente da Câmara, dizendo que bastaria o Motta cassar o mandato da Zambelli por faltas, como espero que seja feito em relação a Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem. >
Ou seja, não precisaria ter sido discutida a cassação naquele âmbito: bastaria uma cassação por faltas. Foi uma opção do Motta agir como agiu.>
Ele é um presidente incapaz de costurar acordos antes da votação — algo que Arthur Lira fazia muito bem — e deixou que o mandato não fosse cassado. Quando isso acontece, e lembrando que Carla Zambelli foi condenada pelo STF, o Supremo é obrigado a agir. >
E isso inaugura mais um capítulo da crise entre os poderes. Não é a primeira vez. Continuaremos vendo isso enquanto cada poder não fizer sua parte. >
O caso da não cassação de Zambelli é um exemplo primoroso de como a Câmara não está cumprindo seu papel. Ela está perdendo a capacidade de se autogovernar. E isso fica ainda mais evidente com um presidente como Hugo Motta.>
BBC News Brasil – Hugo Motta e Arthur Lira têm perfis bastantes diferentes. Qual o impacto disso na Câmara?>
Rey – Essa pergunta é interessante porque tenho certeza de que muitos colegas cientistas políticos vão estranhar discutirmos atributos de liderança — geralmente não modelamos isso, é algo muito particular de cada parlamentar. Mas começamos a observar padrões.>
Arthur Lira era muito centralizador, e isso ouvi de muitos deputados. Estou trabalhando em um livro sobre isso, conversando com parlamentares e ex-presidentes da Câmara. Lira era centralizador e truculento. Tratava deputados no dia a dia com gritos. Tinha um poder coercitivo muito grande e também o respeito dos pares. Em raros momentos descumpriu acordos; em geral, cumpria mais do que, por exemplo, o Hugo Motta.>
Ele tinha controle do plenário, baseado no respeito dos pares e na truculência. Quando colocava algo para votar, já sabia o efeito prático. Não levaria a plenário algo cujo resultado não dominasse. >
Isso não acontece com Motta. Ele frequentemente muda o que ele mesmo decidiu. Não tem respeito dos pares, em parte por não ter palavra. Mas é mais aberto, menos autoritário. >
Em tese, esperaríamos isso de um presidente da Câmara: mais abertura, menos autoritarismo. Na gestão Lira, sequer tínhamos acesso ao que acontecia no Colégio de Líderes. Agora temos com Motta.>
Mas vem o lado ruim: a falta total de controle do plenário e dos deputados; falta de prestígio; falta de comando. Lembro do caso Rodrigo Maia: ele não era truculento, mas tinha respeito dos pares — algo que falta a Motta.>
O presidente da Câmara precisa ter controle do plenário. A fonte desse controle varia. No caso de Hugo Motta, ele não é autoritário nem respeitado. Está numa situação muito complicada.>
BBC News Brasil – Parlamentares governistas disseram que Hugo Motta colocou o PL da dosimetria em votação pela demora no pagamento das emendas. E a Polícia Federal apontou indícios de que o "orçamento secreto" ainda existe. Como isso entra neste cenário?>
Rey – A questão das emendas é outro sintoma da desinstitucionalização. Se a votação está atrelada ao atraso nas emendas, então elas não estão cumprindo sua função. >
A função óbvia é ajudar o presidente a formar base, mas isso não está acontecendo porque o governo terá dificuldade de construir base legislativa quando o legislador mediano está muito distante da média ideológica do governo Lula. Sempre será difícil.>
As emendas têm papel na construção de base, mas não estão sendo usadas para isso, e sim para votações específicas, barganhas, inclusive em temas de altíssima relevância, como a responsabilização de quem atentou contra a democracia.>
O jornal O Globo mostrou conversas entre parlamentares mostrando a relação explícita entre emendas e a votação. Quem está pressionando por essas emendas? Para mim, a questão central é o Centrão. É o Centrão que tem essa sede por poder orçamentário, especialmente pelas emendas.>
A votação da dosimetria aconteceu pelas emendas, em parte, mas também porque o Centrão não aceita o nome de Flávio Bolsonaro como candidato. O Centrão atuou nas duas esferas: quer controlar quem será candidato à Presidência, nem que seja indicando um vice, e quer continuar tendo acesso às emendas.>
Os parlamentares têm direito a acessar as emendas. Mas o modo como estão sendo usadas hoje, elas estão servindo apenas para estancar sangria. Isso sem falar na questão de transparência ou legalidade. >
BBC News Brasil – Esse era nosso próximo ponto. Há tensão do Centrão com a pré-candidatura de Flávio Bolsonaro. E também há dúvidas sobre como fica a relação do Centrão com Lula. O Centrão está em atrito com Lula e com o bolsonarismo? >
Rey – Acho cedo para afirmar. Vejo um afastamento do Centrão em relação à família Bolsonaro, e parte do que vimos esta semana vem disso: a tentativa de buscar outro nome. Ontem saiu a notícia de que Gilberto Kassab deixaria o governo de São Paulo nas próximas semanas; hoje cedo, já há notícia de que tenta articular um nome com Ratinho Júnior e Zema.>
Ainda não temos evidência empírica de ideologização do Centrão. Alguns pesquisadores, como Marcos Nobre, defendem que houve; eu ainda não vi evidência científica disso.>
Ideologizado ou não, o Centrão está imponderado. E aqui falo de PP, PSD, União Brasil — não daquela configuração antiga com MDB. Esses partidos querem controle sobre o processo eleitoral que começa no próximo ano.>
É cedo para saber se vão fechar com o governo ou com Flávio Bolsonaro. Vejo um afastamento de Bolsonaro e uma busca por alternativa. Há também a questão de Tarcísio de Freitas em São Paulo — não me surpreenderia se ele fosse candidato com um vice escolhido pelo Centrão.>
A estratégia de Flávio Bolsonaro fez sentido para ele: pautou a agenda da família. A dosimetria estava natimorta até terça-feira [9 de dezembro]; de repente, o clima mudou completamente.>
Mas essa candidatura esbarra no Centrão. Não é à toa que, no domingo, ele já se reúne com Valdemar Costa Neto, Rogério Marinho, Antônio Rueda e Ciro Nogueira para costurar 2026. Mas é cedo, ainda tem muita água para rolar debaixo da ponte.>
BBC News Brasil – Quem são os grandes nomes do Centrão hoje, pré-2026?>
Rey – Tarcísio é um nome de interesse do Centrão. Ratinho Júnior e Romeu Zema também. Algumas pessoas citam Ronaldo Caiado. A candidatura do Flávio fez emergir governadores com mais viabilidade para 2026. Isso já aparece. A notícia sobre Kassab articulando uma chapa Ratinho Júnior–Zema vai nessa linha.>
Flávio pautou a eleição antes da hora. Ao anunciar-se candidato, fez os demais atores se moverem. Não dá para analisar o movimento de um ator sem analisar o movimento dos outros. Tudo o que Bolsonaro pensa depende do movimento do Centrão, do governo, e assim por diante. O fim do ano será atribulado para quem mira 2026.>
BBC News Brasil – Sobre a decisão do ministro Moraes em relação a Zambelli, o deputado federal Nikolas Ferreira disse que isso mostraria uma "ditadura" do STF e ironizou que seria "melhor fechar o Congresso". Como você avalia esse argumento?>
Rey – O simples fato de ele poder falar isso mostra que não há ditadura. Se houvesse uma ditadura, ele nem poderia se expressar. Se fosse "ditadura da toga", alguém do STF o silenciaria. >
O que existe é um desajuste na relação entre os três poderes. O caminho é resolver esse desajuste — nunca fechar o Congresso.>
Há crise entre os poderes? Há instabilidade, sim. Mais uma vez: porque cada poder não está cumprindo o papel que lhe cabe. Quando isso acontece, outro poder entra e faz o que não deveria ter que fazer.>
No caso da Zambelli: como a Câmara não atuou, o STF atuou. Isso está acontecendo repetidamente.>
Não sei se a Constituição dá conta disso. A própria Constituição está sendo usada para movimentar interesses de cada poder. Exemplo: emendas impositivas, distribuição igualitária das individuais e de bancada — tudo isso foi constitucionalizado em 2015 e 2019. A Constituição está sendo remexida para dar conta dessas mudanças no balanço de poder.>
Não estou dizendo que precisamos de uma nova Constituinte. Mas precisamos de uma conversa séria entre os três poderes, e não aquela conversa patética que vimos quando aprovaram a lei complementar para tentar melhorar a questão das emendas — uma lei cheia de buracos.>
É preciso sentar e resolver, pensando em 2026 e além.>
BBC News Brasil – E qual o principal desafio para o Congresso, pensando nas eleições de 2026?>
Rey – O que vimos na Câmara esta semana acontece porque elegemos esses parlamentares. Falta consciência no país sobre a importância da eleição legislativa. Precisamos dedicar um tempo para entender em quem votamos para deputado federal e senador.>
O bolsonarismo já entendeu completamente isso e está tentando formar maioria no Senado. Quem não entendeu ainda foram outros campos ideológicos, como a esquerda e o centro. >
É preciso um esforço cidadão para melhorar o voto no Legislativo. E não estou falando de votar "em alguém do meu campo", mas em parlamentares comprometidos com sua função, que tratem a instituição com seriedade. Isso está faltando. >
Meu sonho é que o Brasil dê tanta importância a essa eleição quanto à presidencial. >
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