Publicado em 27 de junho de 2025 às 17:39
Em latim, chama-se anulus piscatoris. Em bom português, é o anel do pescador. >
Na joia, há a imagem em baixo relevo de Simão Pedro, o apóstolo, pescando a bordo de um barco.>
De acordo com a tradição católica, o primeiro papa a usar esse símbolo foi Damásio I (305-384), que comandou a Igreja por 18 anos na segunda metade do século 4°.>
A mensagem remonta ao evangelho de São Marcos, mais especificamente à passagem que define os apóstolos — e, por extensão, os religiosos que os sucederam — como "pescadores de homens".>
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Mas o anel também carrega uma certeza histórica. >
Pela tradição católica, o primeiro papa foi o homem que tem sua imagem ali impressa: Pedro, um dos doze homens que foram escolhidos pelo próprio Jesus Cristo para acompanhá-lo e auxiliá-lo em suas andanças repletas de pregações e relatos de milagres.>
O Dia de São Pedro ocorre em 29 de junho, mês em que o santo é celebrado ao lado de São João e Santo Antônio nas famosas festas juninas brasileiras.>
E quem foi esse apóstolo, de fato? Por que é considerado o primeiro papa? Era mesmo um homem simples, um pescador pobre? Não é tão fácil separar biografia de mito no caso de uma figura alçada à santidade há quase 2 mil anos, é claro.>
No fim, os elementos mais detalhados sobre sua vida estão mesmo na Bíblia, salpicados em diversas passagens — Pedro é o apóstolo de Cristo com mais menções no livro sagrado.>
"Tudo o que sabemos, concretamente, sobre Pedro está nos evangelhos", comenta o pesquisador e estudioso da vida de santos José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará.>
"Existem pesquisas posteriores, mas a fonte mais confiável é a Bíblia.">
Segundo o texto sagrado, ele e seu irmão, André, viviam da pesca no imenso lago conhecido como mar da Galileia.>
"Eles teriam sido os primeiros a ouvir o chamado de Jesus", diz Lira. >
Acredita-se que Pedro havia nascido no povoado de Betsaida e, na época, morava na cidade de Cafarnaum.>
De origem simples, ele deve ter impressionado Jesus pelo seu jeito.>
"Os evangelhos deixam claro que era uma pessoa de personalidade forte e espírito de liderança", comenta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.>
"Tanto que o próprio Jesus se hospedou em sua casa quando iniciou sua missão. Talvez por causa desse seu jeito, o Messias o tenha escolhido como seu mais importante colaborador.">
Professor na Faculdade de Teologia São Bento, padre Jorge Luiz Neves da Silva enaltece o fato de ele ter sido um pescador iletrado e, mesmo assim, assumido papel importante na missão cristã.>
"Os evangelhos são unânimes nessa realidade e é preciso ter em conta a lógica da vocação na sagrada escritura: é uma constante que sejam chamadas as figuras que não seriam naturalmente escolhidas sob a perspectiva humana", comenta.>
Antes do encontro com Cristo, ele não era um religioso.>
"Sabe-se que fora casado porque nos evangelhos lemos que Jesus curou a sogra dele. Jesus era de Nazaré e se mudou, em sua vida pública, para Cafarnaum. Morou na casa de Pedro. Não é claro se sua mulher ainda era viva", contextualiza Lira.>
"Em dado momento do evangelho de Mateus, Pedro pergunta a Jesus se é lícito pagar impostos, e o mestre afirma que sim. E pede para que Pedro pagasse seu imposto e o de Jesus também, com uma moeda que encontraria na boca de um peixe que pescaria. É um milagre, mas, se observa a importância do apóstolo. É ele também que reconhece que Jesus é o filho de Deus", acrescenta o hagiólogo.>
"A ele Jesus determina 'apascentar as ovelhas' e diz, 'tu és pedra e sobre esta pedra edificarei minha Igreja', ou seja, sobre sua liderança. O interessante é que o próprio texto bíblico afirma que o apóstolo que Jesus amava era João, mas foi a Pedro que ele confiou a Igreja, mesmo considerando que ele era impetuoso às vezes, aparentemente corajoso, forte", completa.>
A passagem bíblica que justifica o entendimento dele como primeiro papa da Igreja está no capítulo 16 do evangelho escrito por São Mateus. >
Nela, Jesus olha para o apóstolo Simão e afirma: "Pois eu também te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela".>
Quem era Simão torna-se Pedro. E Pedro porque pedra. Daí o entendimento cristalizado, com o passar dos anos, de que ele teria então sido nomeado o primeiro líder da Igreja, a rocha sobre a qual a nova religião seria erguida.>
Baseada em suas pesquisas sobre a história do cristianismo, Medeiros pondera: é preciso compreender o que significava "papa" naquele contexto primitivo.>
"É preciso entender esse título como ele era empregado nos primórdios do cristianismo", explica.>
"A palavra, cujo significado é 'pai', era bastante difundida entre os primeiros cristãos", pontua. Ela lembra que, então, não era apenas "o bispo de Roma" que merecia tal tratamento.>
"Vários bispos eram chamados assim, bem como alguns sábios da própria comunidade", acrescenta.>
"É tão verdade que, até hoje, o líder máximo da Igreja Copta, no Egito, também é chamado de 'papa'", exemplifica.>
"Por isso mesmo, nós, historiadores, preferimos chamá-lo de 'bispo de Roma' quando tratamos do 'papado' dos primeiros séculos do cristianismo.">
Ela ressalta que o papado, enquanto instituição, ainda não existia. O primeiro movimento em direção a reconhecer uma primazia do bispo de Roma sobre os demais data do século 3°, sob o comando do papa Calisto 1° (155-222).>
"Damásio 1° ampliou essa discussão [no século seguinte], pontuando que existia uma autoridade moral da qual o bispo de Roma era revestido, que o distinguiria dos demais", conta Medeiros.>
"A instituição 'papado', que assume um papel jurídico e institucional, só foi acontecer com Leão 1°, no século 5°, e Gregório Magno, no século 6°. No século 8°, essa instituição começou a se consolidar, pois o papa não somente se destacava como uma autoridade religiosa, mas também temporal", argumenta ela.>
Padre Silva ressalta que as escrituras deixam evidente esse papel fundamental de Pedro à frente dos primeiros cristãos.>
"Fica claríssimo que ele era aquele que dava os contornos daquela comunidade nascente", diz.>
Apesar de sua proeminência sobre os demais apóstolos, o papel de liderança exercido por Pedro não foi um privilégio dele.>
Na realidade, todos os primeiros seguidores de Cristo acabaram se espalhando e fundando comunidades em diversas regiões.>
Medeiros conta que, como "coordenador e fundador", atribui-se a Pedro a "organização de um grupo de adeptos da nova religião em Antioquia, na atual Turquia" — isso logo depois dessa dispersão inicial dos primeiros cristãos.>
"Essa organização não ocorreu como um processo imediato. Foi um processo longo e orgânico, que não se deu de forma homogênea", lembra Silva.>
Havia desentendimentos, é claro. No encontro de lideranças que acabou entrando para a história como o primeiro concílio da Igreja, no ano de 51, em Jerusalém, Pedro assumiu uma postura mais conservadora frente a Paulo.>
"Naquele que ficou conhecido como o primeiro concílio da Igreja, o de Jerusalém, vemos a divergência dele com Paulo. Para Pedro, os cristãos tinham de se submeter aos costumes judaicos. Paulo, e também Barnabé, defendia que o cristianismo era para todos", relata Lira.>
Lira conta que nesse primeiro concílio, o próprio Pedro se afirma o encarregado da missão de tomar as rédeas do cristianismo.>
Segundo o hagiólogo, essa liderança já era notada em passagens do evangelho.>
"É interessante observar que, no momento do anúncio da ressurreição feito por Santa Maria Madalena e as outras mulheres que a acompanharam ao santo sepulcro, João, muito mais jovem que Pedro, chegou antes ao túmulo. Mas esperou Pedro, para que ele ingressasse primeiro, demonstrando, claramente, a hierarquia. Pedro era o líder.">
Se é certo que Pedro esteve em Antioquia e em Corinto, sua presença em Roma, onde estaria seu túmulo e onde a sede da Santa Sé acabaria erguida em sua memória, ainda hoje é controversa — trata-se de uma questão de fé, mais do que de historiografia.>
É, ainda hoje, um tema que continua sendo alvo de debates e controvérsias. Pedro teria se estabelecido ou não na cidade de Roma?>
"A maioria dos historiadores, tendo como base as fontes do segundo século do cristianismo, principalmente aquelas que trazem relatos de alguns escritores cristãos quase contemporâneos de Pedro, como Inácio de Antioquia e Clemente Romano, ambos do século 2°, não são completamente céticos em relação a isso", diz Medeiros.>
"Há inclusive uma forte chance de que ele tenha sido martirizado no ano de 64, durante a famosa perseguição de Nero, realmente", acrescenta ela.>
A pesquisadora ressalta, contudo, que não é verdade que Pedro tenha sido o fundador da primeira comunidade cristã de Roma.>
"Todos são unânimes em considerar que ele não fundou a comunidade de Roma. Quando ele chegou por lá, pelos idos de 62, a comunidade já existia. Acredita-se que alguns soldados romanos, convertidos à nova religião, tenham difundido o cristianismo na capital do império", diz Medeiros.>
"É certo que esteve em Antioquia e Corinto. Depois da reforma protestante se incrementou essa ideia de que ele não esteve e não teria morrido em Roma, mas, isso hoje já é pacífico tanto na história quanto na hagiologia e até mesmo entre os protestantes. Dados ainda do primeiro século dão notícias da morte ou martírio de Pedro em Roma", acredita Lira.>
"E depois de seu apostolado é que se têm os pontificados por ele iniciado e que têm no atual Papa seu sucessor. A questão de ele ter ido a Roma é parte da ordem de Jesus: 'Ide por todo o mundo…'. Roma era o centro do mundo de então e foi ali que se formalizou a Igreja Católica, a igreja cristã.">
Para considerá-lo primeiro papa, isso pouco importa.>
"A Igreja Católica não o considera o primeiro papa por ele ter sido fundador da comunidade local ou bispo de Roma. Ele não foi nenhum dos dois. Mas pelo seu martírio. A morte dele, na verdade, segundo a crença católica, teria transformado o local em cidade-sede do cristianismo ocidental. Seria o evento fundante do episcopado romano", conta Medeiros.>
"A ideia de que ele é o primeiro papa foi se desenvolvendo com o passar do tempo", diz padre Silva.>
Em diversos textos antigos há referências ao martírio de Pedro, juntamente com Paulo.>
Os indícios seriam de que ambos teriam sido executados por romanos no antigo Circo de Nero, que ficava justamente onde hoje é a Cidade do Vaticano.>
Lira atenta para o fato de que era de se supor que os primeiros cristãos buscassem preservar o túmulo de Pedro.>
Medeiros atenta para o fato de que na época da construção da primeira Basílica de São Pedro, "edificada por Constantino no século 4°, a tumba foi posicionada ali".>
No século 20, esforços arqueológicos foram empreendidos para tentar localizar resquícios do túmulo.>
Trabalhos conduzidos pela arqueóloga Margherita Guarducci (1902-1999) localizaram, junto aos restos dessa antiga igreja, uma tumba com a inscrição, em grego: 'Pedro está aqui'.>
"E há relatos que confirmam que esses restos mortais, antes de se estabelecerem num local fixo, tinham sido preservados nas catacumbas de São Sebastião, também em Roma", acrescenta Medeiros.>
"Por lá, há inclusive algumas inscrições de peregrinos que pediam a intercessão de Pedro, os quais, em passagem por Roma, faziam essas visitas aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo.">
*Esta reportagem foi originalmente publicada pela BBC News Brasil em 27 de novembro de 2021>
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