Publicado em 8 de maio de 2025 às 17:39
O papa Leão 14, nome escolhido por Robert Prevost após ser escolhido novo líder da Igreja Católica, é americano e tem histórico com a América Latina.>
Aos 30 anos, ele se mudou para o Peru como parte de uma missão agostiniana, que engloba a evangelização, a promoção humana, a educação e o seguimento de Jesus Cristo.>
A ordem seguida pelo novo papa tem origem, como o nome diz, em Santo Agostinho (354-430). >
Personagem nascido onde hoje fica a Argélia, ele teve uma vida cheia de prazeres mundanos até acabar, convertido ao cristianismo, se tornando um grande filósofo e teólogo.>
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"Santo Agostinho tem grande importância não somente na história da Igreja, mas na história do pensamento ocidental", afirma o filósofo e jurista Segundo Azevedo, estudioso da obra de Agostinho e professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).>
"Dos santos homens da Igreja, ele foi dos que mais escreveram ao longo da vida", acrescenta o estudioso de hagiologias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.>
"Foi um grande intelectual, dos maiores que a Igreja já conheceu", enfatiza Maerki.>
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No livro 'Il Santo Del Giorno', Mario Sgarbossa e Luigi Giovannini, ressaltou "não ser fácil falar" sobre o "santo que mais do que qualquer outro já falou de si mesmo, com sinceridade e simplicidade". Certamente uma alusão ao livro 'Confissões', um best-seller cristão até hoje, no qual, como dizem Sgarbossa e Giovannini, ele "desnuda sua alma com sinceridade e candura".>
Filho de uma mãe católica — depois tornada Santa Mônica — e de um pagão, Patrício, que só se converteria ao cristianismo no leito de morte, Aurélio Agostinho de Hipona nasceu em Tagaste, onde hoje fica a cidade de Souk Ahras, na Argélia.>
Na época, a localidade era parte da província romana de Numídia. Tudo indica que sua família, considerada da classe elevada dos tais "homens honrados", tivesse cidadania romana.>
Fato é que na infância ele foi educado em latim e, aos 11 anos, acabou levado a uma escola a cerca de 30 quilômetros de sua cidade Natal, onde aprendeu literatura e costumes próprios da civilização romana. Ali teve acesso a obras clássicas da filosofia, tendo contato com autores como Marco Tulio Cícero (106 a.C. - 43 a.C), depois creditado pelo próprio Agostinho como o responsável por despertar nele o interesse pela temática.>
Aos 17 anos, Agostinho foi embora para Cartago, onde hoje fica a Tunísia, para estudar retórica. Criado dentro dos princípios cristãos, por conta da educação materna, foi ali que ele acabou assumindo posturas contraditórias à fé.>
Abraçou o maniqueísmo como doutrina e, na companhia de outros jovens, passou a viver no espírito hedonista, em busca de prazeres mundanos. Seu grupo se vangloriava de colecionar experiências sexuais, enumerando aventuras tanto com mulheres quanto com homens.>
Agostinho envolveu-se com uma jovem local, mas, ao contrário do que era esperado pela sociedade, decidiu não se casar com ela. Viveram como amantes e tiveram um filho, Adeodato — sobre o qual pouco se sabe além do fato de que ele teria morrido ainda jovem.>
Sua formação intelectual acabaria também se convertendo no ganha-pão. Aos 19 anos tornou-se professor de gramática, primeiro na sua Tagaste natal, depois em Cartago.>
Dez anos mais tarde, decidiu fundar uma escola em Roma. Ele acreditava que ali, na capital da civilização, estariam as maiores e mais brilhantes mentes.>
Fracassou na empreitada, desapontado com a falta de receptividade dos alunos. A essa altura já havia se distanciado do maniqueísmo e abraçado as ideias do ceticismo.>
Sua fama de homem com bons conhecimentos se espalhou e logo ele conseguiu um trabalho como professor de retórica em Mediolano, atual Milão.>
Ele tinha 30 anos e aceitou a empreitada. Àquela altura, sua carreira intelectual era notável. A pedra no sapato, contudo, era a sua mãe, Mônica, que seguia pressionando-o para que ele se convertesse ao cristianismo.>
E essa adesão à fé viria em 386. Conforme seu próprio relato, ele ficou impressionado quanto tomou contato com a história da vida de Santo Antão do Deserto (251-356), um ermitão que acabaria conhecido como "pai de todos os monges". E, nesse transe, teria ouvido uma voz infantil dizendo "toma, lê". Agostinho interpretou como uma ordem: ele deveria pegar a Bíblia e ler o primeiro trecho que encontrasse.>
Caiu justamente num trecho da carta de São Paulo aos Romanos, no qual o apóstolo falava sobre como as sagradas escrituras teriam o poder de transformar o comportamento dos seres humanos.>
"Comportemo-nos com decência, como quem age à luz do dia, não em orgias e bebedeiras, não em imoralidades sexuais e depravações, não em desavenças e inveja. Ao contrário, revistam-se do Senhor Jesus Cristo e não fiquem premeditando como satisfazer os desejos da carne", conclama a passagem.>
Ele entendeu o recado como algo para si. Na Páscoa de 387, foi batizado pelo bispo de Mediolano, Aurélio Ambrósio (340-397). No ano seguinte, na companhia da mãe e do filho, decidiu voltar para a África.>
Mônica, contudo, morreu antes ainda de embarcar. Adeodato morreria pouco tempo depois do retorno. Desgostoso diante das desgraças familiares, Agostinho decidiu vender todo o patrimônio e doar o dinheiro aos pobres.>
Manteve apenas sua casa, convertida em um mosteiro.>
Em 391, foi ordenado sacerdote, em Hipona, na mesma província da Numídia. Então, o convertido Agostinho permitiu-se utilizar de toda a sua erudição a favor do cristianismo. Logo se tornaria um grande pregador e um grande estudioso teórico das bases da religião.>
Poucos anos depois, ainda no fim do século 4, acabaria nomeado bispo de Hipona. Até o fim da vida, ele se dedicou às pregações, aos estudos e aos escritos, sempre mantendo um estilo frugal e ascético. De acordo com relatos de um bispo que foi seu contemporâneo, Possídio, ele havia se tornado um comem que comia pouco, trabalhava muito, não gostava de conversas sobre a vida dos outros e era um hábil administrador financeiro das obras de sua comunidade.>
Do ponto de vista intelectual, Agostinho é responsável pela primeira grande síntese do cristianismo, reunindo as práticas da tradição de então, confrontando-as com as escrituras e procurando depreender disso uma filosofia catequética. Embora o termo não existisse na época, é considerado um grande teólogo.>
Ele foi um dos pioneiros a defender que o ser humano era a junção perfeita de duas substâncias, o corpo e a alma, um entendimento que acabou influenciando muito da filosofia que seria construída a partir de então.>
Também ergueu bases para a eclesiologia, propondo que a Igreja era uma única entidade legítima, mas que ela precisava ser entendida sob duas realidades. A parte visível seria formada pela instituição hierarquizada e pelos sacramentos; mas a parte invisível seria constituída pelas almas dos praticantes.>
"Agostinho de Hipona caracteriza-se por ser um pensador de fronteira. Mas o que é ser um pensador de fronteira? É saber refletir frente a estágios em que a crise política e cultural fazem nascer um novo momento da história", pontua Azevedo. "A reflexão fronteiriça agostiniana perpassa da antiguidade clássica e fornece as fontes para poder pensar o período cristão nascente.">
O pesquisador lembra que Agostinho foi profundamente influenciado pela "razão filosófica grega, sobretudo o neoplatonismo, e a revelação cristã com as cartas paulinas".>
Nesse sentido, parece inevitável comparar os dois, Agostinho e Paulo. Ambos convertidos tardiamente ao cristianismo. Ambos dedicados a criar uma fundamentação teórica para a religião.>
"Há uma associação entre Paulo e Agostinho e essa associação é carregada de simbolismos, significados muito fortes", explica Maerki. "Os dois fazem interpretações, adaptando a filosofia platônica ao cristianismo, influenciados pela filosofia platônica.">
"A junção desses dois modos de pensar o mundo [a filosofia grega e o cristianismo] e refletir sobre si encontra amparo no coração inquieto de Agostinho. Ali há o ambiente de conjunção e formação de uma nova forma de pensar", completa Azevedo. "O estilo grego antigo de escrita encontra elo na reflexão cristã, quando da associação necessária do pensar e viver.">
O professor ressalta, contudo, que não era apenas teórica, mas a prática religiosa que fizeram de Agostinho o santo que acabaria sendo reconhecido. "Ele demonstra isso com sua vida, percebendo que o pensamento sem ação é vazio", pontua.>
Nesse processo, as ferramentas da erudição de Agostinho parecem ser as mesmas cuja base se via em seu passado como professor de latim e de retórica. Não à toa, ele se torna um estudioso das escrituras.>
"Foi um grande amantes dos textos sagrados, não só no sentido de, após a conversão, viver profundamente as chamadas verdades bíblicas, mas também porque foi estudioso assíduo das escrituras, propondo interpretações bíblicas a partir de uma retórica mais clássica", comenta Maerki.>
"Hoje se fala muito da Bíblia como uma espécie de literatura, com o campo de se investigar a Bíblia a partir das teorias literárias. Agostinho propunha, em sua época, algo um pouco próximo disso", acrescenta o pesquisador. "Era um tempo em que não havia o termo literatura, mas ele se interessou pela construção do texto, pela interpretação do texto. Essa afinidade pelas letras me chama muito a atenção.">
Azevedo explica que uma das principais questões trazidas por Agostinho, foi a percepção do conceito de vontade.>
"A noção de vontade não foi desenvolvida pelos gregos, apesar de Aristóteles fornecer indicativos para poder refletir sobre esta noção. Em Platão o conhecimento implica uma determinada forma de agir, tanto que se percebe que o conhecimento filosófico na alegoria da caverna implica em uma ação por parte do filósofo de libertação para com os prisioneiros", contextualiza o professor.>
Agostinho, por sua vez, "identifica a vontade e a condiciona à noção de escolha, deliberação", conforme detalha Azevedo. "A ação ética, o amar, consiste em amar o que deve ser amado diante da ordem do mundo", diz o professor Azevedo. "A união entre a cosmologia e a criação judaica-cristã se revela em uma ordem hierárquica, em que subsistem alguns bens que devem ser escolhidos.">
Em outras palavras, para Agostinho a escolha se daria pelo conhecimento, "mas sobretudo pela capacidade propriamente humana de amar". "Amar é escolha", diz Azevedo.>
Maerki sintetiza esse ponto a partir de algumas premissas agostinianas. A primeira é de que as pessoas só amam aquilo que elas conhecessem. Nesse sentido, a existência de Deus seria provada justamente pelo amor que os seres humanos devotam a ele — ou seja, se o fazem, é porque o conhecem.>
Outra ideia posta é da busca. Para Agostinho, não procura nada senão aquilo que se ama. Por isso o ser humano, que ama Deus, estaria empenhado em buscá-lo.>
"Ele foi um santo que escreveu muito e muito falou sobre o amor. Ele acreditava que o amor deveria ser a medida de todas as coisas", resume Maerki.>
Em 'Confissões', Agostinho afirma que "meu amor é meu peso: por ele sou levado para onde sou levado".>
"Agostinho ensina ao ser humano de hoje que é possível recomeçar, que sempre há a possibilidade, mesmo com o passado", complementa Azevedo. "O presente agora é dádiva divina e possibilidade criadora do próprio ser humano.">
Aos 75 anos, adoeceu. Morreu em 28 de agosto de 430. Em um tempo em que a Igreja não havia definido os critérios objetivos para a canonização de alguém, acabou se tornando santo por aclamação popular. Em 1298, o papa Bonifácio 8 (1235-1303) deu a ele o título póstumo de Doutor da Igreja.>
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