Publicado em 2 de agosto de 2025 às 18:25
Sempre que viajo de avião, uma frase me chama a atenção nas recomendações de segurança antes do voo.>
Em algum ponto entre "bem-vindos a bordo" e "desejamos a todos uma boa viagem", vem o lembrete: "coloque primeiro a sua máscara de oxigênio, antes de ajudar os demais".>
Ou seja, essencialmente, esta é uma instrução oficial para sermos "egoístas".>
E é um sábio conselho. Afinal, se houver uma emergência quando estivermos voando a 10 mil metros de altitude, em velocidade de 890 km/h, e a cabine se despressurizar, não poderemos ajudar os outros se não tivermos oxigênio para respirar.>
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Por outro lado, em um mundo que parece cada vez mais recompensar o narcisismo, pode haver o risco de que a mesma frase encontre ressonância em uma filosofia de vida um tanto problemática: a ideia de que devemos sempre nos colocar em primeiro lugar. E que a noção de egoísmo se sobrepõe ao altruísmo.>
O psicólogo holandês Geert Hofstede (1928-2020) definiu o individualismo como "a extensão à qual as pessoas se sentem independentes, ao contrário de serem interdependentes como membros de um todo maior".>
Em muitas partes do mundo, especialmente no Ocidente, o individualismo não é apenas endêmico, mas cada vez mais uma tendência. A questão é saber se ele é bom ou ruim.>
Elementos de psicologia, economia e biologia (sem falar nas ideias sobre genes egoístas e no neodarwinismo) normalizaram a premissa de que a competição significa que os seres humanos são intrinsecamente cruéis, implacáveis ou egoístas, segundo o professor de Psicologia Steve Taylor, da Universidade Leeds Beckett, no Reino Unido.>
O livro de Taylor, DisConnected ("DesConectado", em tradução livre), estuda como certos comportamentos humanos podem causar problemas sociais.>
Claramente, todos nós podemos ser egoístas. Afinal, a principal atribuição do nosso cérebro, sem dúvida, é nos manter vivos.>
Mas Taylor destaca que existem novas pesquisas que traçam um quadro mais otimista. Elas questionam a noção um tanto sombria de que nós sempre priorizamos apenas a nós mesmos.>
Um exemplo é o "efeito do espectador", surgido nos anos 1960. Trata-se da ideia generalizada de que as pessoas tipicamente evitam intervir em uma crise quando há mais gente por perto.>
Esta teoria surgiu após a indignação causada pelo assassinato, em Nova York (EUA), da garçonete Kitty Genovese (1935-1964), de 28 anos. Ela teria sido estuprada e morta em frente a cerca de 40 testemunhas, sem contar com a ajuda de ninguém.>
Mas o detalhe final da história por trás do "efeito do espectador" parece ser duvidoso.>
Genovese, de fato, foi tragicamente abusada e assassinada, mas as investigações sugerem que os relatos de que havia 38 espectadores passivos eram incorretos.>
Um estudo de 2007, por exemplo, indicou que não havia evidência de que qualquer pessoa tivesse presenciado o assassinato de Genovese, simplesmente sem fazer nada a respeito. Os pesquisadores concluíram que a história era uma "parábola moderna e contá-la serviu para limitar o escopo do inquérito ao socorro de emergência".>
Pesquisas indicam, na verdade, que as pessoas estão mais do que dispostas a priorizar a segurança dos demais em relação à sua própria em muitas situações.>
Um estudo publicado em 2020, por exemplo, investigou gravações de câmeras de circuito fechado de ataques violentos no Reino Unido, na Holanda e na África do Sul.>
A conclusão foi que uma ou mais pessoas tentaram ajudar em nove a cada 10 ataques — e a presença de grupos maiores aumentou, não diminuiu, a probabilidade de intervenção.>
É possível argumentar que o próprio "chamado do herói", em algum nível, é motivado pela autogratificação, talvez para ganhar a aprovação do grupo.>
Mas um estudo de 2014, sobre pessoas agraciadas com a Medalha Carnegie do Herói (concedida a pessoas que arriscaram suas vidas pelos demais), concluiu que esses altruístas ao extremo, em grande parte, descrevem suas ações como intuitivas e não deliberadas.>
Esta resposta indica que seu altruísmo era uma reação "automática", um reflexo. Ou seja, é algo que somos quando não temos tempo para pensar.>
"Existe um nível superficial no qual podemos operar egoisticamente, o que fazemos com frequência", explica Taylor. "Mas isso ocorre no nível do ego ou da identidade socialmente construída.>
O professor destaca que os seres humanos também têm a capacidade de serem altruístas por impulso.>
Em maio de 2017, um homem-bomba atacou um concerto da cantora Ariana Grande na cidade natal de Taylor — Manchester, no Reino Unido. Foram mortas 22 pessoas e mais de 1 mil ficaram feridas.>
Uma análise independente sobre o ataque, intitulada Relatório Kerslake, destacou "centenas, quando não milhares de atos de bravura individual e abnegação", apesar do risco aos sobreviventes na ocasião.>
Casos similares de altruísmo heroico foram documentados durante o 11 de Setembro e os ataques terroristas de Paris, em 2015.>
O altruísmo humano tem razões evolutivas, segundo Taylor. Na maior parte da nossa história, vivemos em tribos como caçadores-coletores, em grupos altamente cooperativos.>
"Não há motivo para que os primeiros seres humanos fossem competitivos ou individualistas", explica o professor. "Isso não teria ajudado a nossa sobrevivência. Na verdade, teria colocado a nossa espécie em risco.">
Estudos antropológicos indicam que os grupos que ainda vivem de forma similar aos nossos primeiros ancestrais permanecem igualitários em relação ao compartilhamento de recursos.>
Pesquisas com crianças também indicam que nós "nascemos altruístas", afirma Ching-Yu Huang, diretora da Aliança de Psicologia Legal de Cambridge (uma empresa privada britânica) e executiva-chefe do Centro de Pesquisa sobre Crianças e Famílias da Universidade Nacional de Taiwan.>
Estudosconcluíram que até crianças de 14 a 18 meses de idade se afastam do seu caminho para ajudar os demais e cooperam para atingir um objetivo comum, especificamente entregando objetos que outras pessoas não conseguem alcançar.>
E as crianças prestam este auxílio mesmo quando não existe recompensa em vista.>
Uma análise de estudos similares realizada em 2013, por exemplo, sugeriu que o comportamento pró-social das crianças é "intrinsecamente motivado pela preocupação com o bem-estar dos demais".>
A gentileza também nos faz sentir bem. O voluntariado, por exemplo, foi relacionado à melhoria da saúde mental, autoestima e autoeficácia, além da redução dos sentimentos de solidão. E também há benefícios físicos.>
Pessoas que atuam regularmente como voluntários foram avaliados como parte de um estudo publicado em 2013. E 40% deles apresentaram menor propensão a desenvolver hipertensão arterial do que os que não praticavam trabalho voluntário com frequência. >
O altruísmo desta espécie já foi associado à redução do risco de mortalidade, por motivos ainda não esclarecidos.>
"Existe uma associação tão forte entre o altruísmo e o bem-estar que seria insensato não viver de forma altruísta", defende Taylor.>
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A própria estrutura do nosso cérebro pode ajudar a definir nossa predisposição ao altruísmo.>
A neurocientista Abigail Marsh, da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, analisou com sua equipe varreduras cerebrais em busca de diferenças entre pessoas que doaram um rim para um estranho e as demais.>
Os altruístas doadores de órgãos tinham amígdalas direitas (regiões do cérebro associadas às emoções) maiores que o grupo controle de não doadores.>
Os doadores também demonstraram maior atividade nesta região ao observarem fotografias de expressões faciais temerosas. Este aumento da atividade cerebral pode talvez torná-los mais receptivos e fazer com que eles reajam mais aos sentimentos dos demais.>
De fato, os resultados do grupo doador foram opostos ao que se esperaria observar em indivíduos psicopatas.>
A ciência sugere que a maioria de nós está programada para ser egoísta, muitas vezes de forma extraordinária. Mas isso não significa que nós podemos (ou devemos) ser egoístas o tempo todo.>
Priorizar a nós próprios ou aos demais depende, em parte, das circunstâncias, das nossas experiências anteriores e da nossa cultura.>
Para o pesquisador de Filosofia da Ética Tony Milligan, do King's College de Londres, as pessoas deveriam reconhecer que a ampla maioria de nós é "moralmente medíocre". Mas isso não é tão desestimulante quanto parece.>
Milligan defende que as pessoas tendem a superestimar sua própria bondade moral. E isso pode ter impactos específicos quando tomamos decisões deliberadas, não automáticas, sobre nossas prioridades.>
"Quase todas as pessoas que conhecemos são moralmente medíocres", afirma ele.>
O pesquisador destaca que não é realista, para a maioria de nós, tentar copiar a vida de pessoas extremamente altruístas, como Nelson Mandela, Gandhi, Jesus ou Buda.>
"Podemos agir à luz deles, mas, se você não for uma dessas anomalias estatísticas, precisamos reconhecer que, na verdade, estamos ali no meio.">
Superestimar nossa bondade moral pode causar sensações de culpa e decepção quando, inevitavelmente, falhamos ao tentar viver com os padrões superinflados, segundo Milligan.>
"A questão que você precisa fazer para si mesmo não é 'o que faria Buda?', explica ele, "mas 'o que eu sou capaz de fazer? Isso está ao meu alcance?'">
Para o pesquisador, isso exige uma certa humildade e autoconhecimento. Afinal, se tivermos uma avaliação realista daquilo de que somos capazes, iremos considerar melhor os demais ao tomar decisões.>
"Você não deve pensar nisso em termos de desenvolver algo que você possa exibir para outras pessoas, como algo que fará você ser admirado", prossegue Milligan.>
"Pense nisso mais como o desenvolvimento de uma habilidade. Uma habilidade é algo que você trabalha para melhorar lentamente, um passo de cada vez.">
Alguns países, como os EUA e o Reino Unido, são mais individualistas do que outros.>
Muitos países asiáticos são geralmente considerados mais coletivistas, com as pessoas priorizando o bem do grupo sobre si próprios.>
Este fator influencia não só a tendência das pessoas ao altruísmo ou ao egoísmo, mas também até que ponto os atos altruístas são considerados uma escolha ou sua responsabilidade pessoal.>
Durante a pandemia de covid-19, por exemplo, pesquisadores concluíram que as pessoas que moravam em culturas coletivistas era mais propensas a usar máscaras do que aquelas que viviam em países individualistas. O primeiro grupo era mais inclinado a tentar proteger os demais.>
Huang vivenciou pessoalmente estas diferenças entre o Ocidente e o Oriente. Ela passou a infância em Taiwan, descrito por ela como coletivista, e depois morou por extensos períodos em dois países comparativamente individualistas: os EUA e o Reino Unido.>
"Fui criada para realmente colocar todos os demais em primeiro lugar", conta Huang.>
"Se você for mulher, especialmente se for jovem, e quiser se colocar em primeiro lugar, mostrando suas capacidades, isso realmente é menosprezado nesta cultura. Eles iriam chamar você de 'mulher-tigre', indicando que você é agressiva.">
Quando Huang se mudou para os EUA e, posteriormente, para o Reino Unido, ela percebeu que se priorizar é mais aceitável nestes países.>
Inicialmente, ela se conteve, devido à sua criação. Mas, pouco a pouco, ela começou a ser capaz de exprimir sua confiança e suas capacidades.>
"Aprendi que, na verdade, às vezes preciso ser uma mulher-tigre, especialmente no setor profissional", ela conta.>
Estas diferenças culturais são refletidas na própria pesquisa de Huang.>
Ela estudou duas formas de obediência: a "obediência comprometida" (você respeita alegremente as instruções) e a "obediência situacional" (você obedece, mas reluta ao fazê-lo).>
Huang observou três grupos: crianças pequenas de Taiwan; famílias inglesas brancas não de imigrantes no Reino Unido; e famílias de imigrantes chineses no Reino Unido.>
Todos os grupos demonstraram o mesmo nível de obediência comprometida, mas as crianças taiwanesas mostraram muito mais obediência situacional.>
Elas eram mais propensas a priorizar as instruções dos pais sobre seus próprios desejos do que os filhos de imigrantes chineses e ingleses brancos que haviam crescido no Reino Unido, que é mais individualista.>
Nas culturas coletivistas, "somos mais propensos a obedecer, mesmo se, na verdade, não quisermos", explica Huang. Mas isso não significa que existe uma forma certa de fazer as coisas.>
O altruísmo pode beneficiar a nós mesmos e aos demais, mas precisamos ter consciência das nossas próprias necessidades e de como as experiências do passado, o contexto e a cultura influenciam o nosso comportamento.>
"Tudo começa a ficar difícil em culturas onde as expectativas de sermos sempre altruístas são supervalorizadas, como acontece em Taiwan quando você é uma mulher jovem", afirma Huang.>
Basicamente, a responsabilidade de sempre priorizar os demais pode se tornar insuportável.>
A maioria de nós é capaz de atos extraordinários de desprendimento e o altruísmo parece ser algo que nos faz bem. Esta capacidade chegou a ajudar a nossa espécie a conseguir o imenso sucesso que atingimos ao longo da história humana.>
Mas os nossos comportamentos e decisões também são influenciados por uma enorme quantidade de fatores, desde a cultura do local onde vivemos até a nossa "mediocridade moral".>
Em outras palavras, é ótimo ajudar os outros. Mas é preciso reconhecer que também é bom cuidar de nós mesmos.>
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Innovation.>
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