Publicado em 7 de dezembro de 2025 às 17:44
"Conte-me uma mentira", pedi a Earle Havens assim que começamos nossa conversa.>
Ele ficou incomodado, mas não porque se sentisse insultado. Afinal, ele é um reconhecido especialista em falácias.>
Não só ele dá aulas sobre o tema na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, como também, na qualidade de curador de livros e manuscritos raros do Centro Stern para a História do Livro da universidade, ele supervisiona a Bibliotheca Fictiva de Falsificações Literárias e Históricas.>
A biblioteca é uma extensa, excêntrica e excepcional coleção de enganos, falsificações e fraudes escritas que acompanharam nossa história cultural, desde relatos mentirosos de viagens da Grécia Antiga até extraterrestres maias inventados nos anos 1960.>
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A razão do desconforto de Havens não era por pedir que ele me contasse mentiras, mas sim por pedir apenas uma: "É como me perguntar qual é o meu filho favorito!".>
Mas, claro, não era só uma, era uma para começar.>
Que tal a dos olhos de testemunhas da queda de Troia?>
"Ah, sim, essa é muito antiga, de Dictis Cretense e Dares Frígio.">
"O problema era que, por muito tempo, tudo o que se sabia sobre a batalha com Troia era o que Homero contava, e as pessoas queriam saber mais sobre como foi e o que aconteceu com aquelas pessoas que de repente desapareciam do poema.>
"Houve coisas que Homero omitiu. Então, existe esse desejo, esse impulso humano de preencher as lacunas.">
Isso é algo, acrescenta Havens, que também foi feito para preencher vazios deixados na Bíblia, "em particular com o Novo Testamento".>
Uma das coisas que o Novo Testamento não conta é como era Jesus Cristo fisicamente.>
"Na Idade Média, decidiram remediar isso criando uma carta falsa de um cônsul romano, governador da Judeia, Públio Lêntulo, ao Senado de Roma, descrevendo Jesus.">
"É de estatura alta, mas sem excesso; garboso; (...) seus cabelos são da cor de avelã madura e lisos, ou seja, retos, quase até as orelhas, mas a partir destas um pouco encaracolados, (...) e soltos partidos ao meio da cabeça, segundo o costume dos nazarenos.">
"A testa é plana e muito serena, sem a menor ruga no rosto, agraciada por um agradável rubor. Em seu nariz e boca não há imperfeição alguma.">
"Tem a barba cheia, mas não longa, (...) os olhos cinzentos...".>
Havens lembra que foi "dessa descrição em uma falsificação medieval que provêm incontáveis representações de Jesus, e há mais de 250 manuscritos medievais e renascentistas que possuem cópias manuscritas dessa carta".>
Outra dessas lacunas tem a ver com o dia de descanso, comenta o especialista.>
"Como se explica que, quando os apóstolos, que eram judeus, se converteram ao cristianismo, de repente o dia de descanso não era o sábado, mas o domingo?>
"Pois com uma carta que Jesus decidiu enviar do céu... brilhante!">
"Ele a colocou debaixo de uma rocha com uma pequena inscrição que essencialmente dizia: Levante-me.">
"Todos os que passavam por esta rocha na Terra Santa tentavam levantá-la em vão, até que um menino livre de pecado conseguiu.">
A celestial carta claramente diz: Deves terminar a tua labuta todos os sábados à tarde, às 6 em ponto, hora em que se fazem as preparações para o dia de descanso.>
Havens conta que "é, além disso, a primeira corrente de carta que conheço na história do mundo, pois diz que quem a reproduzir será abençoado e livre de tempestades e doenças, mas quem a destruir será condenado e atormentado por demônios".>
Entusiasmado, ele já nos havia contado três dos milhares de exemplos que guarda em sua memória.>
"Adoro falar sobre este assunto, porque posso falar sobre algo que aconteceu há 3.000 anos ou há 400 anos, e posso falar sobre algo que aconteceu ontem.">
Com a Bibliotheca Fictiva, "confirmamos que estivemos marinando em falsidades desde a origem da cultura. Isso não é apenas um resultado distópico da tecnologia.">
A Universidade Johns Hopkins adquiriu a coleção em 2011 e, naquela época, "o termo 'notícias falsas' nem sequer era conhecido, e tive que explicar ao decano das bibliotecas por que precisávamos gastar uma enorme quantidade de dinheiro em um monte de coisas falsas".>
Convencer a universidade a investir em várias centenas de manuscritos, cartas, poemas, iluminuras, documentos, anotações que afirmavam ser o que não eram foi um desafio.>
"A principal coisa que eu disse, e mantenho hoje, foi que somos uma instituição de pesquisa que busca a verdade, e a melhor maneira de entender o que é [a verdade] não é apenas olhando para coisas que são absolutamente reais, mas também compreendendo aquelas que não são: como as pessoas as concebem, como essas ideias são absorvidas pela cultura, como podem até moldar nossas ideias, nossas expectativas, gerar preconceitos e nos guiar em nossas vidas.>
"Também salientei que todos nós temos nossos preconceitos; ninguém é completamente objetivo. Então, por que não ter uma coleção de pesquisa que nos ensine sobre tudo isso e com a qual possamos ensinar?">
Os donos da peculiar biblioteca eram Arthur e Janet Freeman, que vinham colecionando mentiras fascinantes desde 1961, quando Arthur estudava teatro elisabetano e se deparou com John Payne Collier, um escritor e pesquisador do século 19.>
Collier era uma combinação venenosa de duas coisas: um respeitado erudito e editor de William Shakespeare e um prolífico e descarado falsificador literário.>
Desde então, e durante 50 anos, os Freeman se dedicaram a adicionar fraudes à sua coleção, mas chegou o momento em que quiseram que pertencesse a uma biblioteca de pesquisa.>
Até então, já tinham joias como poesia supostamente escrita por Martinho Lutero, que não se destacou precisamente por ser poeta, e relatos da Papisa Joana, uma mulher muito culta do século 9 que, disfarçada de homem, foi eleita Papa, apenas para ser descoberta quando deu à luz repentinamente no meio de uma procissão em Roma.>
Esse mito só foi firmemente desacreditado no século 17.>
Entre as falsificações, destaca Havens, "o documento mais famoso é provavelmente a Doação de Constantino, no qual o imperador Constantino (285-337 d.C.) doava vastos territórios do Império Romano ao Papa Silvestre 1º.">
"No Palácio do Vaticano, conserva-se um afresco que a representa como um fato real.">
O documento "foi usado para justificar as guerras nas quais César Bórgia e outros tentaram se apoderar de partes da Romanha na Itália, e para engrandecer a riqueza e o poder do Papa.">
No entanto, não havia sido criado no século 3, mas sim no 8.>
Isso só foi demonstrado no século 15, quando "um brilhante erudito chamado Lorenzo Valla desacreditou totalmente o texto por muitos motivos, mas sobretudo porque utilizava palavras que não existiam na época em que afirmava ter sido escrito".>
E aqui, algo a destacar: a biblioteca não guarda apenas falsidades, mas também os escritos daqueles que as revelaram como tais.>
Esse foi outro dos argumentos de que Havens se valeu para convencer a universidade: "Eu disse ao decano que podíamos aprender muito com a forma como as pessoas demoliram coisas falsas.">
O que ele aprendeu?>
Para Havens, a Bibliotheca Fictiva é "um registro de uma erudição fabulosa": não só aqueles que refutaram as mentiras, mas também muitos dos falsificadores eram pessoas "inteligentes, criativas e até engenhosas".>
"À medida que se estuda esta coleção, percebe-se que certos aspectos se repetem, como se os mentirosos aprendessem uns com os outros", diz.>
"Um, por exemplo, é a economia.">
"Se você vai criar uma mentira, a primeira coisa é gerar interesse e inspirar uma suspensão voluntária da descrença por parte do leitor. Não é necessário que ele acredite que é verdade, você só precisa fazê-lo crer que é possível, nem sequer provável, apenas possível", diz Havens.>
"E você não deve dar às pessoas muita informação, porque se acidentalmente der demais, você pode se enforcar com sua própria corda.">
"Outro truque é encontrar outra voz ou outra figura que ateste sua afirmação, e incluí-los em sua obra falsa.>
"Assim, você vai notando padrões, e também distintas categorias de falácias e notícias falsas", assinala o especialista.>
Uma dessas categorias é a que Havens chama de "mitologia patriótica".>
"Vimos um pouco disso em todo o mundo e ao longo da história.">
Um exemplo ocorreu no Renascimento, quando os italianos eram os reis, mas, com o ressurgimento da cultura greco-romana, havia algo que os incomodava: o fato de terem chegado muito depois dos gregos.>
"Existia a ideia de que a cultura mais antiga era a mais sofisticada, influente e com mais autoridade.">
O frade dominicano Giovanni Nanni, vulgo Annius de Viterbo (1437-1502), "decidiu 'descobrir' uma série de textos antigos" que corrigiam a história.>
Suas fraudes foram numerosas, variadas e, em alguns casos, extremamente elaboradas, assinala a Universidade de Oxford.>
Em uma ocasião, organizou uma escavação arqueológica na qual desenterrou, para espanto dos presentes, uma fantástica coleção de estátuas mitológicas, cada peça colocada com esmero para alcançar um efeito dramático.>
Tudo para "demonstrar que os italianos possuíam a linhagem mais antiga, e não 'os gregos mentirosos, que se achavam inventores de tudo'", conta Havens.>
Sua obra mais importante, o Antiquitatum Variarum, publicada pela primeira vez em 1498, e com grande sucesso editorial nos séculos 16 e 17, contém o que ele afirmava serem textos de autores gregos e latinos... nenhum autêntico.>
No entanto, a obra "teve uma enorme influência no pensamento dos europeus entre 1498 e aproximadamente 1750" (Walter Stephens, 1979), e "perverteu as primeiras histórias de todos os países da Europa" (Anthony Grafton, 1990).>
Desde que Johns Hopkins adquiriu a Bibliotheca Fictiva, "com quase 2.000 objetos, fizemos centenas de adições adicionais, tornando-a uma 'biblioteca viva'", conta Havens.>
Há desde mentiras leves, como a de um romance que talvez você conheça, cujo título completo é:>
"A vida e incríveis aventuras de Robinson Crusoé, de York, marinheiro, que viveu vinte e oito anos completamente sozinho numa ilha desabitada nas costas da América, perto da foz do grande rio Orinoco; tendo sido levado à costa após um naufrágio, no qual todos os homens morreram, menos ele. Com uma explicação de como, no final, ele foi incomumente libertado por piratas. Escrito por ele mesmo."Essas últimas 4 palavras geraram um debate sobre se a obra deveria fazer parte da biblioteca, pois é obra do escritor Daniel Defoe.>
Para Havens, "não passou de uma afetação literária".>
Com as histórias do Barão de Munchausen, em contraste, não houve discussão, pois são baseadas em uma pessoa real, e suas ridículas aventuras foram apresentadas como se fossem autobiográficas em vez de uma obra de ficção de Rudolph Erich Raspe.>
Mas ainda estamos nos tons de branco, e quando se trata de mentiras há toda uma gama de cinzas, até chegar a algumas perigosamente escuras.>
"Existem alguns enganos muito perniciosos", diz.>
"Provavelmente o mais difícil de tratar é o Protocolos dos Sábios de Sião, essencialmente um documento de teoria da conspiração profundamente antissemita que afirmava que os judeus estavam tentando dominar o mundo.">
"Foi usado pelos nazistas para justificar o genocídio e continua sendo muito relevante hoje em dia", afirma.>
"Esse é um exemplo de um engano horrível, realmente maligno em todos os sentidos.">
Desde que Johns Hopkins adquiriu a coleção, Havens e outros professores têm usado seus milhares de exemplos para ensinar aos estudantes sobre alfabetização midiática e desinformação.>
Eles ajudam a aprender a detectar pistas e a ser mais cético e mais crítico com tudo o que se cruza em seu caminho, mesmo que venha de uma fonte aparentemente confiável.>
Mostram que, além de se perguntar se uma mensagem é verdadeira, também vale a pena refletir sobre por que ela chegou às suas redes sociais, o que ela quer incentivar, explorar, reforçar em você, a quem interessa que você consuma essa informação.>
"Recentemente, publicamos um catálogo pela Quaritch em Londres e, além disso, todos os títulos estão disponíveis online, então esta é possivelmente a coleção mais documentada e acessível do mundo.">
"É absolutamente relevante.">
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