Publicado em 24 de agosto de 2025 às 18:25
"Quando você entra no caixão, a primeira coisa em que pensa é que poderia realmente estar morto. Eu, três meses antes, poderia ter estado ali.">
Mas Jorge Contiño sobreviveu para contar sua história. Vítima de alcoolismo, a extrema deterioração do seu estado de saúde o levou ao hospital.>
"Meu fígado estava exausto e eu pesava 32 kg, mesmo medindo 1,83 metro", conta ele à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.>
Contiño mora em As Neves, uma aldeia com pouco menos de 4 mil habitantes na Galícia (noroeste da Espanha).>
>
Ele viu a morte muito de perto, até que fez uma promessa: se conseguisse sair do hospital com vida, ele participaria da procissão de Santa Marta de Ribarteme, conhecida por muitos como a "romaria dos caixões".>
Esta curiosa e muito antiga tradição religiosa é celebrada todo dia 29 de julho naquele pequeno município, localizado no sul da província galega de Pontevedra, na fronteira com Portugal. Nela, homens e mulheres vivos saem em procissão dentro de caixões.>
Eles são os "ofertados" — pessoas que estiveram à beira da morte ou tiveram pessoas próximas nessa situação e se oferecem à santa, para agradecer pela sua intervenção.>
Marta de Betânia, ou Santa Marta na tradição bíblica, foi irmã de Lázaro. Ela interveio ante Jesus Cristo para que ele devolvesse a vida ao irmão, quatro dias depois de morto.>
A devoção à santa está fortemente ligada à tradição daquela localidade. Seus moradores acreditam que ela é a intercessora ideal a quem suplicar nos momentos críticos da vida, quando só a fé mantém a esperança.>
"Não sei se foram os médicos ou se foi ela [a santa], mas, desde que participei [da procissão], nunca mais bebi álcool", afirma Cotiño.>
Assim já se passaram dois anos. Hoje, Cotiño é encarregado de organizar a romaria.>
A origem do evento é medieval. Existem menções escritas sobre ele, pelo menos, desde o ano 1700.>
Nas últimas décadas, a procissão foi suspensa por apenas três anos, durante a pandemia de covid-19.>
"É uma das peregrinações mais importantes da Galícia", explica à BBC o prefeito de As Neves, José Manuel Alfonso.>
Todos os anos, cerca de 5 mil pessoas participam da procissão. Muitas delas moram na aldeia, mas outras vêm de outras partes da Galícia e até do exterior.>
Como muitas outras festas espanholas, o evento combina aspectos religiosos e pagãos.>
Este ano, por exemplo, o festival começou no domingo, 27 de julho, com uma partida de futebol e uma churrascada. E prosseguiu até o dia 30, com festas todas as noites e atrações para as crianças.>
O evento foi declarado de Interesse Turístico autônomo há três anos. Nele, é comum ir comer nos prados e provar o delicioso "polvo à moda da feira", tradicional da Galícia, com batatas e pimentão.>
"Muitas pessoas vêm por curiosidade, para conhecer esta festa que, para eles, parece tão incomum", explica Alfonso.>
O prefeito afirma que, em As Neves, as pessoas se sentem "muito orgulhosas" quando observam pessoas vindo de fora para a romaria.>
Na aldeia, a festa traz "um sentimento muito forte, pois é a nossa santa, nossa procissão, algo muito interno, muito identitário, que observamos desde crianças".>
O grande dia do festival é 29 de julho, dia de Santa Marta.>
De manhã, ocorre uma missa na paróquia de São José de Ribarteme, que abriga a imagem da santa. Mas o serviço religioso normalmente ocorre em uma tenda instalada ao lado da igreja, para poder receber mais pessoas.>
Ali ficam expostos os caixões, esperando pacientemente pelos "ofertados", com seus forros internos de cetim. Eles pertencem à igreja e ficam guardados em uma construção anexa chamada Casa da Santa, segundo Cotiño.>
Os devotos que saem na procissão "alugam" os caixões, oferecendo um donativo para a igreja. Eles podem também trazer o seu próprio ataúde.>
O prefeito explica que existem pessoas que chegam a pagar meninos da cidade para carregá-los nos ombros durante a procissão. Mas a maioria são amigos, familiares ou vizinhos, que os ajudam a cumprir a promessa feita à santa.>
Jorge Cotiño, por exemplo, chegou a participar da procissão carregando caixões de pessoas próximas. Ele conta que levou seu tio duas vezes, com grande esforço.>
"A procissão leva duas horas", explica ele. "Ela anda muito devagar e é preciso mudar muitas vezes.">
"Se o dia for de sol, o que na Galícia nem sempre é certeza, o calor de julho [na Espanha] também faz estragos.">
Alguns "ofertados" prometem sair na procissão em caixão fechado, o que os aproxima ainda mais do sono eterno. Outros acompanham a imagem da santa de joelhos, apoiados em bengalas ou por familiares. Eles se protegem do atrito contra o solo com joelheiras ou artefatos improvisados.>
"Este ano, por exemplo, uma pessoa irá sair de joelhos, embaixo de um caixão vazio", contou Cotiño, antes do evento.>
Outro "ofertado" era esperado de Londres. "Ele tentou no ano passado, mas chegou tarde, de forma que estará aqui este ano", segundo o organizador.>
A procissão é liderada pela imagem de Santa Marta, levada nos ombros por carregadores, seguida pelos "ofertados" e demais peregrinos.>
Eles escoltam a santa em silêncio, sustentando velas, e uma banda de música marca sua passagem.>
Os "ofertados" trazem "romeiros cantores" como mensageiros das suas preces. Eles acompanham a procissão, entoando súplicas para que a santa intervenha em seu favor.>
"Virgem Santa Marta, rainha da glória, todo aquele que se oferece sai com vitória"; "Virgem Santa Marta, estrela do norte, que deu a vida a quem estava à beira da morte", dizem algumas das canções.>
A tradição destes cantores existe há séculos. Eles participam da procissão em trios, compostos por duas mulheres e um homem.>
Os cantores saem de braços dados, cantando no estilo alalá, uma das formas mais primitivas do folclore galego.>
Seus cantos constituem um autêntico repertório literário, similar ao que marcou os menestréis medievais, segundo a Associação de Patronos da Romaria de Santa Marta de Ribarteme.>
José Manuel Alfonso conta que, antigamente, a imagem era protegida por agentes da Guarda Civil espanhola. Esta medida foi necessária porque os devotos faziam donativos em notas e moedas, penduradas em cintas que eram carregadas pela santa.>
"Ela podia levar até 2 milhões de pesetas [cerca de US$ 150 mil, ou R$ 820 mil, em dinheiro de hoje]", relembra o prefeito.>
Estas oferendas públicas deixaram de ser feitas no final dos anos 1980. Atualmente, as pessoas introduzem os donativos em uma caixa.>
Elas também oferecem objetos de devoção, na forma de bonecos de cera, ou animais, como carneiros, galinhas e até bezerros e potros. Eles são leiloados em benefício da igreja na mesma tarde, segundo Alfonso.>
A procissão de Santa Marta de Ribarteme é uma experiência que não deixa ninguém indiferente — nem os visitantes, nem os devotos da santa.>
Jorge Cotiño ainda não esqueceu a sensação de cumprir sua promessa, a proximidade da morte, a impressão causada por entrar naquela que, para muitos, é sua última morada nesta Terra.>
"Quando você sai, fica impressionado", descreve ele. "É uma sensação irreal, muito difícil de explicar.">
>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta