Publicado em 24 de março de 2025 às 16:44
Você pode pensar que os físicos só fazem perguntas profundas. Na maioria das vezes, ouvimos falar da física cósmica e de dimensões reduzidas, da forma do nosso Universo e da natureza das partículas que o formam. >
Mas os físicos, é claro, têm uma vida fora do laboratório e, às vezes, sua maneira de questionar o Universo recai sobre seus hábitos diários. Há um item cotidiano que parece deixá-los especialmente obcecados: o espaguete.>
Há pelo menos um século, o espaguete tem sido objeto de estudos rigorosos. Por meio destas pesquisas, os físicos continuam a aprender coisas novas sobre o estado sólido da matéria, a química dos alimentos e até mesmo a estabelecer conexões com a origem da vida. >
A torrente constante da ciência do espaguete ajuda a demonstrar que perguntas profundas se escondem nas nossas rotinas banais, e que há muitos físicos esfomeados que não conseguem parar de perguntá-las.>
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Por exemplo: quão fino o espaguete pode ser? Um fio individual de espaguete tem entre 1 mm e 2 mm de espessura. Mas outros tipos de macarrão longo variam muito em diâmetro — desde o udon com 4 mm até o cabelo de anjo com 0,8 mm. >
Os fios mais finos feitos artesanalmente são chamados de su filindeu, e medem 0,4 mm, tão finos que apenas algumas mulheres em Nuoro, na Itália, sabem como fazer.>
Mas, recentemente, uma equipe de pesquisadores da University College London (UCL), no Reino Unido, se perguntou se os equipamentos de laboratório do século 21 poderiam fazer melhor. >
Eles usaram uma técnica chamada "eletrofiação". Primeiro, eles dissolveram a farinha em uma solução especial carregada eletricamente em uma seringa. Em seguida, colocaram a seringa sobre uma placa especial com carga negativa. >
"Isso faz a solução fluir pela agulha em direção à placa coletora em um formato de macarrão bastante fibroso", diz Beatrice Britton, principal autora do estudo.>
Quando a solução secou, os pesquisadores ficaram com um emaranhado de fios de espaguete incrivelmente finos. >
"A olho nu, tudo o que se vê é uma espécie de folha de lasanha", diz Britton. Mas um microscópio potente revela um tapete feito de fios tão finos quanto 0,1 mm. Este macarrão também é muito mais rígido do que o espaguete comum.>
Britton e seus colegas esperam que sua pesquisa possa ser um passo em busca de alternativas biodegradáveis às "nanofibras" de plástico, que atualmente são usadas para filtrar líquidos e tratar feridas.>
O espaguete mais fino do mundo é apenas um exemplo recente de como os físicos parecem não conseguir parar de aplicar suas ferramentas no popular carboidrato. >
Em 1949, o físico George F. Carrier, da Universidade Brown, nos EUA, apresentou o "problema do espaguete" na revista científica The American Mathematical Monthly, que ele considerou "de significativo interesse popular e acadêmico".>
Essencialmente, o problema se resume a: "Por que não consigo sugar um fio de espaguete sem sujar meu rosto com o molho"?>
As equações dele mostraram como o fio exposto oscila mais à medida que fica cada vez mais curto, garantindo por fim uma batida do macarrão contra o lábio da pessoa que está comendo — e a fatídica erupção de molho que Carrier tanto condenava. >
Infelizmente, suas fórmulas matemáticas não ofereciam nenhuma maneira de contornar o problema. Ele está tão profundamente gravado nas leis do Universo quanto o Big Bang.>
Mais tarde, dois cientistas inverteram o estudo pioneiro de Carrier, explorando o que acontece quando um objeto fibroso desliza para fora de um buraco, em vez de ser sugado para dentro dele. >
Eles chamaram esta versão de "problema do espaguete invertido", conhecido por qualquer pessoa impaciente que já teve que cuspir a massa por não ter esperado esfriar. >
Até o momento, nenhum físico teórico tentou resolver o problema mais complexo de dois cachorros sugando de cada extremidade o mesmo fio de espaguete.>
O grande físico americano de meados do século Richard Feynman ajudou a desvendar os enigmas da mecânica quântica, explicando como as partículas elementares que compõem os átomos interagem entre si. >
Mas a enorme contribuição de Feynman para a física do espaguete é menos conhecida. >
Certa noite, Feynman se perguntou por que era quase impossível quebrar um fio de espaguete seco em dois pedaços, em vez de três. Ele e um colega passaram o resto da noite quebrando espaguete até cobrir o chão da cozinha.>
A pergunta de Feynman sobre a física contraintuitiva do espaguete seco gerou um quarto de século de tentativas para explicá-la. >
Isso finalmente aconteceu em 2005, quando dois pesquisadores franceses mostraram que o espaguete sempre se quebra em dois pedaços — a princípio. >
Mas, após a ruptura, à medida que as duas partes curvadas se endireitam novamente, toda a tensão reprimida é liberada em uma onda de choque, causando mais fragmentação.>
Em 2018, uma equipe de cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), nos EUA, descobriu como reprimir a onda de choque — torcendo delicadamente o fio de espaguete antes de quebrá-lo. >
Seu método exigiu equipamentos de laboratório, mas produziu de forma confiável um par perfeito de fragmentos. >
O trabalho deles proporcionou uma compreensão nova e mais profunda das hastes frágeis que vai além do espaguete; o fenômeno é bem conhecido dos saltadores de vara, por exemplo.>
Minha mãe (ítalo-americana) me ensinou a partir um pacote de espaguete seco ao meio antes de colocá-lo na água fervente, para que ele caiba horizontalmente na panela. >
Acho que Feynman fez o mesmo, mas isso é uma afronta para muitos dos entusiastas de espaguete ao redor do mundo. >
Se você faz parte do último grupo, então você deve colocar o maço de espaguete seco na posição vertical na panela de água fervente, e observá-lo amolecer lentamente, se curvar e submergir.>
Este comportamento familiar do espaguete pode não parecer um mistério, mas tente tirar um pedaço de espaguete recém-curvado da panela e deixe-o secar. >
Ele vai permanecer curvado, em vez de retornar ao seu comprimento reto original — algo nestes primeiros minutos altera irreversivelmente a composição do espaguete. >
Em 2020, dois físicos finalmente explicaram essa transmutação do espaguete. >
Ela se deve a uma característica chamada "viscoelasticidade" — um nome para a maneira única como materiais como o espaguete respondem à pressão. >
Esta propriedade especial permite que a água flua pelas camadas externas do fio.>
A estranha mecânica do espaguete cozido vai ainda mais longe. >
Em um estudo, cientistas jogaram os fios no chão e mediram como eles se enrolavam para aprender sobre outros materiais elásticos, desde cordas até filamentos de DNA. >
Em outro, físicos amarraram o espaguete com nós, e estudaram que tipos de tensão fariam com que se rompessem.>
A física do espaguete vai além do macarrão em si — o molho também tem seus próprios mistérios científicos. >
Quando oito físicos italianos se conheceram enquanto faziam pesquisas no exterior, na Alemanha, eles descobriram uma frustração em comum com o prato clássico romano cacio e pepe.>
O molho requer pouquíssimos ingredientes — é basicamente uma mistura de água reservada do macarrão e queijo pecorino ralado -—, mas todos eles haviam testemunhado sua inconstância misteriosa.>
Muitas vezes, o queijo empelota de forma irreversível, arruinando o molho. Isso é especialmente comum quando se cozinha em grandes quantidades, o que fez com que os físicos hesitassem em convidar seus colegas alemães para jantar. >
"Não podemos estragar o cacio e pepe na frente dos alemães", conta Ivan Di Terlizzi, que estuda física estatística e biológica no Instituto Max Planck para Física de Sistemas Complexos em Dresden, na Alemanha.>
Felizmente, entre eles estavam alguns dos maiores especialistas do mundo em física de "separação de fases", exatamente o tipo de fenômeno que atormentava seus jantares em grupo. >
Discutindo sobre a separação de fases do cacio e pepe, eles perceberam que o problema também era desconcertante do ponto de vista científico.>
"Na verdade, este é um problema muito interessante", diz Daniel Maria Busiello, coautor do estudo sobre o cacio e pepe. "Por isso, decidimos projetar um aparato experimental para realmente testar todas essas coisas.">
O "aparato" consistia em uma panela com água aquecida a uma temperatura baixa, um termômetro de cozinha, uma placa de Petri e uma câmera de iPhone acoplada a uma caixa vazia. Eles convidaram vários amigos famintos para o apartamento de Di Terlizzi, e se prepararam para cozinhar cacio e pepe o fim de semana inteiro.>
Eles descobriram que o molho "simples" era extremamente complexo. >
Quimicamente, trata-se de uma solução à base de água com apenas alguns componentes: amido (da água do macarrão), lipídios (do queijo) e dois tipos de proteína (também do queijo). >
Usando o aparato, eles encontraram uma explicação física para os grumos que arruinavam o molho, que eles chamaram de "fase muçarela".>
As proteínas, diferentemente da maioria das moléculas, ficam mais pegajosas quando estão quentes. >
Conforme o molho é aquecido, os pesquisadores descobriram que isso faz com que essas proteínas grudem nos lipídios e formem grumos semelhantes à muçarela. >
Em um cacio e pepe bem feito, o que evita isso é o amido, que forma uma camada protetora ao redor das moléculas de lipídios para que elas não grudem nas proteínas. Se o molho ficar muito quente, o aumento da aderência das proteínas supera essa barreira.>
Depois que eles entenderam a ciência por trás do molho, ficou claro como consertá-lo. >
"Se você adicionar amido suficiente acima de um certo limite, não terá esse tipo de estado separado", diz Di Terlizzi. Em geral, a água do macarrão não contém amido suficiente para garantir esse limite, por isso eles sugerem adicionar uma mistura de amido de milho dissolvido em água.>
O grupo decidiu concluir seu artigo com uma receita infalível para o prato clássico. >
Mas ao pesquisar a rica literatura científica, eles perceberam que não foram os primeiros a chegar a essa epifania do cacio e pepe. >
Em nome da integridade acadêmica, eles citaram um vídeo do YouTube em que o chef romano com estrela Michelin Luciano Monosilio sugere o mesmo ajuste para uma receita infalível — uma pitada de amido de milho. >
"Esta é a única referência não científica em nosso artigo", afirma Di Terlizzi.>
A física que eles usaram conecta os grumos do cacio e pepe a ideias sobre a origem da vida na Terra. >
Os biofísicos usam a separação de fases para entender como as gotículas de líquido podem se solidificar e se dividir em uma solução. >
"Uma gotícula que se divide se parece muito com uma protocélula", diz Giacomo Bartolucci, outro coautor do estudo. >
Alguns acreditam que, dentro das pequenas bolhas que precederam as células reais, os blocos de construção da vida podem ter se unido por meio de um processo muito parecido com a fase da muçarela dos italianos. >
As mesmas ideias estão ajudando os biólogos a entender como as placas que causam a doença de Alzheimer se aglutinam no cérebro.>
Por que o espaguete é um foco de especulação e estudo tão importante para os físicos?>
Para começar, é simples — farinha, água e calor, diz Vishal Patil, um dos descobridores do método de torcer e quebrar, que agora é professor de matemática na Universidade da Califórnia, em San Diego. >
O fato de uma combinação de tão poucos componentes levantar tantas questões profundas mostra como a física está por trás de tudo o que eles veem e fazem, afirma Patil.>
Isso também mostra que não importa o quanto os físicos investiguem o grande e o pequeno, as respostas ainda podem ser insuficientes para explicar os fenômenos que vemos todos os dias. >
Quando se trata de cacio e pepe, todas as ferramentas da física teórica só podem nos dizer o que toda avó italiana sabe: mantenha o fogo baixo quando for preparar a receita. E a eletrofiação em laboratório só consegue obter um espaguete um pouco mais fino do que o que as mulheres de Nuoro, na Itália, fazem diariamente à mão.>
"O espaguete é uma coisa muito acessível com a qual se pode brincar", diz Patil. O baixo custo do macarrão à base de farinha é o que o tornou uma iguaria democrática para tantas culturas ao redor do mundo — o espaguete foi popularizado em Nápoles como comida de rua. É por isso que Feynman não hesitava em quebrar quilos do produto no chão da sua cozinha.>
Depois de um longo dia no quadro-negro, estudando a matemática impenetrável da mecânica quântica ou dos buracos negros, as maravilhas mecânicas do espaguete são o alimento perfeito para as investigações dos cientistas na hora da refeição.>
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.>
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