Publicado em 18 de novembro de 2023 às 09:25
"Pai, não entendo por que estou aqui", questionou Emil a seu pai, Nasir Aliyev.>
Na manhã do dia 15 de janeiro de 2018, em vez de comemorar o aniversário da filha, Nasir e o filho foram para a capital do Azerbaijão, Baku.>
Poucos dias antes, Emil havia recebido um telefonema da Procuradoria-Geral da República do país e intimado a prestar depoimento sobre as circunstâncias de seu serviço militar em 2011.>
Às 13h do dia 15 de janeiro, ele já estava detido. Foi algemado na frente de seu pai.>
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"Ele foi considerado um inimigo do povo", diz Nasir.>
Emil foi acusado de espionar para a Armênia, país com o qual o Azerbaijão está em guerra há mais de 30 anos.>
Era uma acusação pesada — e uma vergonha para toda a família.>
Com as últimas palavras de Emil na cabeça e lembrando de seu olhar confuso, Nasir acreditou no filho e decidiu lutar por ele.>
"Disse a mim mesmo que não desistiria até investigar o caso", lembra.>
Agora, esse episódio é conhecido por todos no Azerbaijão como "Terter".>
Nove meses antes da prisão de Emil, em maio de 2017, o MP azeri anunciou a descoberta de uma rede de espiões armênios no Exército do Azerbaijão.>
Anos mais tarde, soube-se que, durante maio e junho de 2017, soldados foram presos e torturados.>
Eles foram levados para um antigo edifício administrativo na região de Terter, no oeste do Azerbaijão, e torturados até confessarem que espionavam para o inimigo.>
Sobreviventes e seus familiares compartilharam os momentos de terror com a BBC e outros meios de comunicação.>
Segundo os testemunhos, soldados eram atirados pelas janelas, espancados com paus, tiveram unhas arrancadas e levaram choques elétricos em suas feridas ainda abertas.>
Agora, a tortura em massa no Exército do Azerbaijão está sendo investigada pelo próprio MP daquele país, mas em 2017 e 2018 poucas pessoas sabiam o que de fato tinha acontecido.>
Tortura e maus-tratos de prisioneiros não são novidade no Azerbaijão, mas esse caso atingiu uma escala sem precedentes.>
Até hoje, mais de 400 pessoas foram oficialmente reconhecidas como vítimas de tortura em massa, não só em Terter, mas também em outras regiões do país.>
Segundo ativistas dos direitos humanos, pelo menos 11 pessoas morreram em consequência de tortura. >
Anteriormente, a versão oficial era que apenas uma havia morrido. O MP azeri não respondeu às perguntas da BBC.>
Nasir não sabia do "caso Terter" quando decidiu ficar em Baku e lutar por seu filho.>
Ele vendeu as terras que possuía em sua cidade natal, Bostanchi, na região de Khachmaz, abandonou a vida no campo e mudou-se com a esposa e a filha para a capital azeri.>
A família alugou um apartamento no subúrbio, começou a procurar trabalho e levava comida para o filho na prisão.>
Durante muitos meses, à medida que a investigação se desenrolava, Nasir procurou provas da inocência de Emil.>
Mas ele não conseguiu ter acesso aos detalhes do processo porque o tribunal estava fechado.>
Em junho de 2018, Emil Aliyev foi condenado a 12 anos de prisão por alta traição.>
E teve que cumprir os quatro primeiros em regime fechado em um presídio de segurança máxima.>
Então, quando finalmente teve acesso à condenação, Nasir descobriu coisas estranhas.>
Os documentos judiciais diziam que, em maio de 2011, na linha de frente entre os Exércitos do Azerbaijão e da Armênia, o seu filho tinha passado para o lado do inimigo, mas Nasir sabia que Emil tinha ido para a reserva em abril.>
Após o veredicto, Nasir conseguiu ver o filho — pela primeira vez desde a sua detenção — que lhe contou que tinha sido espancado e obrigado a confessar o crime que não cometeu.>
"Queria encontrar mais provas e comecei a procurar outros pais cujos filhos foram acusados de traição", diz.>
No outono de 2018, perto do edifício da administração presidencial, onde muitos azeris vêm exigir justiça, Nasir conheceu várias pessoas em situação semelhante, trocaram números de telefone e começaram a manter contacto.>
Segundo ele, muitos não conheciam as acusações contra os filhos; só sabiam que estavam presos nos termos do artigo 274 ("alta traição") .>
Mas todas as histórias guardavam semelhanças: os pais alegavam que os seus filhos foram torturados e obrigados a confessar serem culpados.>
Nasir tinha esperança de que, como seu filho não era um caso único, poderia ser salvo.>
No início de 2019, o ativista dos direitos humanos Oktay Gyulalyev abordou Nasir.>
Juntos, eles criaram o Comitê contra a Repressão e a Tortura e assumiram a investigação do "caso Terter", compreendendo gradualmente a sua dimensão.>
"Aqueles primeiros meses foram os mais difíceis", lembra Nasir.>
"Fomos literalmente de casa em casa, procurando as vítimas, convencendo-as a nos acompanhar nas ações, em busca de documentos".>
E era difícil acreditar numa história sem provas ou documentos.>
A maioria dos ativistas de direitos humanos e jornalistas, com exceção dos canais de televisão independentes Turan e MeydanTV, tentou ficar fora desse caso. >
Alguns tinham medo, outros simplesmente não acreditavam que no Exército — orgulho do país — centenas de soldados pudessem ser torturados.>
Na primavera de 2019, Nasir e Oktay Gyulalyev foram convocados ao Gabinete do Procurador-Geral por participarem em programas de televisão em que discutiam a suposta tortura.>
"Ficamos muito preocupados, porque já havíamos falado muito: que pessoas eram torturadas, mas não tínhamos em mãos documentos que confirmassem isso", diz.>
E pior: naquela altura, a repressão no Azerbaijão tinha se intensificado.>
Desde 2014, as autoridades começaram a perseguir ativistas de direitos humanos. Muitos deles acabaram na prisão, deixaram o país ou pararam de trabalhar por medo de tratar de casos perigosos.>
Nasir admite que às vezes ficava desesperado.>
"Quando ouvimos o que as pessoas estavam dizendo, a princípio ficamos até um pouco em dúvida se poderia haver tamanha crueldade, a ponto de um pesadelo estar acontecendo ali".>
Segundo ele, no MP, Oktay Gyulalyev foi encorajdo a desistir do caso.>
Mas naquela mesma manhã eles tiveram a primeira evidência física do que aconteceu com seu filho e centenas de outros jovens.>
"Quando Valida Khanum apareceu naquela manhã e apresentou a decisão do tribunal, posso dizer que as nossas vidas mudaram", lembra Nasir.>
O filho de Valida Akhmedova, Elchin Guliyev, morreu na prisão sob tortura em 2017.>
Ela entregou a Nasir e Oktay os documentos, tanto a decisão judicial sobre o caso da morte de Elchin, quanto os depoimentos de testemunhas e as conclusões do exame de corpo de delito.>
Os arquivos listavam os nomes de 101 vítimas, 16 pessoas foram consideradas culpadas de tortura e abuso de poder.>
Os resultados dos exames descreveram detalhadamente os métodos cruéis de tortura, mas o próprio artigo sobre tortura, que prevê punições mais severas, não havia sido aplicado.>
Valida era bem conhecida dos familiares de outras vítimas de tortura: eles se reuniram na casa dela, onde discutiram planos para a ação coletiva.>
A mulher escreveu cartas ao MP e ao presidente exigindo que os responsáveis pela morte de seu filho fossem encontrados e punidos.>
Ela diz não ter certeza se suas cartas ajudaram a iniciar o primeiro processo criminal sobre o caso em 2017.>
"Fui a todos os tribunais, não perdi nenhum, recolhi todos os documentos que consegui", afirma.>
"Valida foi muito ativa. Posso dizer que lutamos ombro a ombro", diz Nasir.>
Graças ao seu arquivo, Nasir ficou mais confiante: "Comecei a falar mais duramente, porque já tinha provas em mãos. Percebi que tudo isso era verdade".>
Ele começou a ligar para os familiares das vítimas e aos poucos começaram a se unir.>
E, quanto mais pessoas estavam dispostas a colaborar, maior era a cobertura da imprensa. >
Em 2019, a primeira reportagem sobre o filho de Nasir foi publicada na BBC; depois disso, um deputado mencionou casualmente o caso numa sessão no Parlamento.>
Foi a primeira vez que a tortura em massa nas forças armadas foi discutida a nível oficial.>
Nasir diz que houve duas pessoas-chave na investigação do "caso Terter": Valida Akhmedova, que apresentou as primeiras provas, e Oktay Gyulalyev, que contatou Nasir e levou o caso adiante.>
Mas no final de outubro de 2019, Oktay foi atropelado por um táxi enquanto atravessava a rua na faixa de pedestres. >
O ativista sofreu ferimentos na cabeça que lhe causaram danos cerebrais irreversíveis o deixaram em estado vegetativo.>
"Éramos amigos, e é claro que o que aconteceu foi um grande choque", diz Nasir.>
"Depois disso, o comitê parou de funcionar, porque Oktay cuidava de tudo: ele conhecia as leis e os endereços das organizações estrangeiras".>
Depois do que aconteceu com Oktay, Nasir voltou a procurar organizações de direitos humanos e a enviar cartas.>
"Basicamente, tivemos que começar de novo", diz ele.>
Nasir teve que trabalhar sozinho durante quase um ano.>
Durante esse período, encontrou casos semelhantes nos distritos de Aghjabedi e Gazakh. Ele viajou para as regiões para se encontrar com os sobreviventes e suas famílias. E foi ajudado pelos pais de outros presidiários.>
"Há veículos de comunicação que agora falam sobre este caso, mas antes ficavam em silêncio", lembra Nasir.>
Foi difícil encontrar outros ativistas dos direitos humanos, e o "caso Terter"ficou paralisado durante um ano.>
"Não havia ninguém, exceto Oktay — todos fugiram, não importa a quem recorresse", diz Nasir.>
Durante todo esse tempo, seu filho esteve na prisão.>
"Sabia que Emil não era culpado e, portanto, não tinha o direito de desistir dele", diz.>
No final de 2020, Nasir reuniu-se com o ativista dos direitos humanos Fikret Jafarli, e o caso finalmente avançou: outros ativistas dos direitos humanos começaram a juntar-se a ele, incluindo Rasul Jafarov, um famoso advogado do Azerbaijão.>
Ele começou a juntar listas de militares que sofreram tortura no período de 2016 a 2018 e intensificou sua relação com a imprensa.>
A partir de então, cada vez mais jornalistas passaram a falar sobre o caso.>
Segundo Nasir, como resultado, a opinião pública começou a mudar: as pessoas começaram a acreditar que, em vez de espiões, o Estado estava prendendo inocentes.>
"As vítimas começaram a aparecer em vários meios de comunicação, mostrando suas feridas da tortura. Há quem ainda sofra", diz Nasir.>
Em novembro de 2021, o "caso Terter" foi discutido na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (PACE, na sigla em inglês).>
Khanlar Veliyev, vice-chefe do Gabinete do Procurador-Geral, alegou então que todos os culpados de praticarem a tortura já tinham sido punidos e acusou o que chamou de inimigos do Azerbaijão, pessoas "com essência armênia", de inflarem o caso na imprensa.>
Um mês depois, em janeiro de 2022, as agências de aplicação da lei — a Procuradoria-Geral da República, o Ministério da Administração Interna e o Serviço de Segurança do Estado — emitiram inesperadamente uma declaração conjunta sobre o início de uma investigação preliminar sobre a tortura em massa.>
Pela primeira vez, os casos individuais foram combinados num só.>
As vítimas e suas famílias vinham tentando conseguir isso há cinco anos.>
"Hoje, vejo que eles (as agências) estão interessados na investigação. Vejo que os interrogatórios das vítimas às vezes seguem até meia-noite", diz Nasir.>
"Eu mesmo encontro essas pessoas que vêm das regiões, às vezes ficam comigo, acompanho-as até o Ministério Público e volto. Mantenho contato com elas para que o caso avance, procuro ajudar na investigação".>
Ao longo de 2022, o caso ganhou novos contornos: o número de vítimas oficiais começou a crescer, os torturadores voltaram a ser julgados (muitos tinham cumprido penas curtas) e, o mais importante, vieram a luz testemunhos de quem confessou espionagem sob tortura. >
Assim, as primeiras pessoas envolvidas no "caso Terter" começaram a ser libertadas.>
Em setembro de 2022, a Procuradoria-Geral da República iniciou a revisão dos casos de 19 pessoas condenadas por traição. Entre eles estava Emil Aliyev.>
No dia 6 de dezembro, às 10h, Nasir foi ao Ministério Público para saber como andava a investigação.>
"Eu estava lá em uma reunião com o chefe da investigação e perguntei a ele quando nossos meninos seriam libertados, e ele falou ‘por que você está com pressa? e riu", lembra Nasir.>
"E então ele disse que meu filho sairá pela prisão a qualquer minuto.">
No dia 6 de dezembro, por decisão do Supremo Tribunal do país, 10 das 19 pessoas foram absolvidas, os processos contra as nove restantes foram arquivados. Eles foram libertados no mesmo dia.>
"De alguma forma, eu nem pensei que meu filho seria libertado... esqueci completamente", lembra Nasir envergonhado.>
Seu irmão foi mais rápido e ele mesmo tirou Emil da prisão.>
Nasir, que chegou em casa uma hora depois, foi o último da família a ver o filho.>
"Eu o abracei, falei para ele: tudo vai passar, tudo vai ser esquecido, tudo vai acabar, vai ser difícil, mas acabou".>
Em maio deste ano, mais quatro pessoas condenadas por traição receberam indulto por decreto presidencial.>
Continuam na prisão 11 pessoas que, segundo ativistas dos direitos humanos, foram torturadas entre 2016 e 2018 nos distritos de Shamkir, Gazakh, Tovuz e Aghjabadi.>
Mas a libertação delas não significará o desfecho do "caso Terter".>
Os ativistas dos direitos humanos estão tentando obter indenização para aqueles que foram condenados injustamente além de dinheiro para tratamento e assistência de reabilitação.>
Além disso, resta saber quem exatamente deu as ordens para torturar os militares.>
Em setembro de 2022, o general Bekir Orudzhev e quatro outros oficiais foram presos neste caso, e o julgamento deles começou em abril.>
Os cinco são acusados de terem sido os mandantes da tortura. Se condenados, podem cumprir até 11 anos de prisão.>
Nasir lembra que, até 2018, ano em que seu filho foi preso, não sabia sequer usar a internet. Cinco anos depois, ele é vice-diretor do Centro de Pesquisa da Tortura.>
Segundo o ativista de direitos humanos Rasul Jafarov, Nasir desempenhou um dos papéis principais na investigação do "caso Terter".>
"Em primeiro lugar, ele coletou informações gerais sobre o caso, pois antes só havia testemunhos de ex-militares. E descobriu como esses casos estavam interligados, ajudou a coletar provas", diz Jafarov.>
"Em segundo lugar, Nasir não queria provar apenas a inocência de seu filho, mas de todas as vítimas de tortura".>
Nasir diz que não retornará à sua cidade natal até que o "caso Terter" seja finalmente resolvido, até que todos os responsáveis sejam punidos.>
"Todos devem exigir seus direitos. Passei cinco anos fazendo isso, minha casa ficou na cidade, meus jardins apodreceram, vendi o terreno", diz.>
"Não fiquei pensando se teria problemas. Sabia que meu filho não era culpado e deveria ser libertado. É meu dever como pai.">
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