Publicado em 5 de fevereiro de 2025 às 06:44
Claudia Andujar tinha 13 anos quando se aproximou de Gyuri pela última vez. >
Todos os dias, no mesmo horário, o procurava pelas ruas da Hungria, ansiosa para avistá-lo — quase sempre à distância.>
Em junho de 1944, o garoto a convidou para uma volta no parque. >
"Andamos emocionados, sem falar, olhando-nos furtivamente", lembra a fotógrafa na introdução de seu livroMarcados (Cosac Naify). >
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"Eu sabia que algo importante estava acontecendo. Era o nascimento do amor.">
Com uma estrela de Davi pregada no peito, Gyuri lançava advertências sobre o perigo ao redor — Andujar também morreria se os nazistas a flagrassem na companhia de um judeu. >
Mas ela não recuou: "No fim do passeio, recebi um beijo tímido e silencioso, que apenas tocou minha boca. Lembro-me de ter ficado com os lábios ardendo por horas seguidas".>
Dali a algumas semanas, o pai de Andujar seria executado em Auschwitz — e Gyuri também. >
Sob a mira da Gestapo, a garota fugiu em um trem de gado com destino à Suíça, terra natal de sua mãe.>
"Esta é a realidade que ela habita até hoje", afirma Eduardo Brandão, curador da exposição Claudia Andujar – Minha Vida em Dois Mundos, que a Pinacoteca do Ceará promove até 9 de março de 2025.>
"Ela é muito desconfiada e, ao mesmo tempo, muito confiante. A vida deu a ela essa capacidade de se relacionar com as diferenças, inclusive as mais perigosas".>
Andujar obteve reconhecimento internacional por sua luta em defesa das populações indígenas, um ativismo conjugado com as centenas de fotografias que fez do povo yanomami, que viriam a se tornar seu trabalho mais célebre.>
As obras expostas em Fortaleza, contudo, desvelam facetas menos célebres de seu trabalho. >
São duzentas fotografias de cunho jornalístico e experimental, retratando não somente ritos e costumes yanomamis, mas também o Brasil das pequenas e grandes cidades.>
"Ela se guia pelo desejo de um mundo mais justo, em uma busca que atravessa os mais diversos lugares — o preto e branco e a cor; o analógico e o digital; a floresta e a metrópole; a Europa e a América", afirma Brandão.>
Trata-se de um périplo comum a outras duas fotógrafas — a inglesa Maureen Bisilliat e a alemã Lux Vidal, que dividem com Andujar a exposição Trajetórias Cruzadas, em cartaz até 23 de fevereiro de 2025 no Centro MariAntonia, da Universidade de São Paulo (USP).>
"As três nascem no início dos anos 1930, em território europeu, e viajam pelo mundo todo", diz a curadora Sylvia Caiuby Novaes.>
"São poliglotas, nunca perderam o sotaque, mas não possuem exatamente uma língua materna. Elas vivenciam a Segunda Guerra Mundial, e então se mudam para os Estados Unidos.">
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A convite de um tio paterno, Andujar chegou a Nova York em 1946, após uma temporada de dois anos na Suíça. >
Até aquele momento, atendia pelo nome de batismo: Claudine Haas. >
Mas, deprimida com as memórias do Holocausto, ela alterou a própria identidade. >
Na adolescência, adotou o nome Claudia. No início da vida adulta, casou-se com um refugiado espanhol, Julio Andujar, cujo sobrenome manteve após o divórcio, para esconder as origens judaicas.>
Em 1950, ela começou a pintar, sob forte influência do expressionismo abstrato.>
Matriculou-se no curso de artes da universidade Hunter College, visitou inúmeros museus e trabalhou como guia na Organização das Nações Unidas (ONU) — mas não se integrou bem aos Estados Unidos. >
"Eu gostava de passar horas no campo, nos parques, no cemitério com árvores, porque eram lugares quietos e solitários", ela escreveria no jornal Ex- em setembro de 1975.>
"Passava horas em igrejas vazias, conversando sozinha. Me sentia só, na grande metrópole.">
Em junho de 1955, ao descobrir que a mãe se mudara para São Paulo junto a um namorado romeno, fez as malas e desembarcou na cidade. Aos 93 anos de idade, ela segue morando na capital paulista.>
Ainda sem saber português, Andujar percorreria todo o território brasileiro. >
"Eu queria entender, conhecer o Brasil", disse ela em entrevista ao Instituto Moreira Salles. >
"Aqui, me sentia em casa. Peguei uma máquina e, quando podia, eu fotografava. [...] Acho que, com esse trabalho, esse empenho, eu estava procurando raízes.">
Entre 1956 e 1958, aconselhada pelo antropólogo Darcy Ribeiro, a artista fez uma série de viagens à Ilha do Bananal, hoje pertencente ao Tocantins. >
Naquele que seria seu primeiro projeto de fôlego, retratou com uma câmera de médio formato os karajás, povo indígena assentado nas margens do rio Araguaia.>
Ao oferecer o material para a revista O Cruzeiro, foi hostilizada pelos editores. Eles disseram, segundo relato dela: "Mulher aqui não tem lugar. Mulher não pode ser fotógrafa". >
Em outubro de 1960, porém, o ensaio ganhou as páginas da revista americana Life.>
Nos Estados Unidos, a jovem era admirada por Edward Steichen, diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York e um dos mais importantes nomes da fotografia no século 20. >
Já nas galerias brasileiras, a fotografia não tinha espaço, levando seus profissionais a buscarem refúgio na grande imprensa. >
Entretanto, o fotojornalismo de Andujar não se limitava à mera documentação cotidiana, afirma a crítica de arte Thais Rivitti.>
"A obra dela traz uma série de ensinamentos da pintura", afirma Rivitti à BBC News Brasil. >
"Sua forma de usar luzes e texturas para conferir volume aos corpos, de modificar imagens no ateliê, com sobreposições, colagens e outras técnicas manuais, nos mostra alguém muito atento ao legado das vanguardas.">
Novaes também destaca que a pintura trouxe para Andujar "um senso de observação". >
"Uma observação cuidadosa e profunda, sucedida por uma crítica daquilo que foi observado. Por isso que suas fotografias são tão expressivas", diz a curadora.>
Semelhante perspectiva orienta o ensaio Famílias Brasileiras, produzido ao longo de dois anos. >
O interesse pela realidade mais prosaica levaria a fotógrafa a mergulhar na vida íntima de quatro clãs, em contextos distintos. >
Em março de 1962, Andujar chegou ao Recôncavo Baiano, hospedando-se na Fazenda Engenho d'Água, datada do século 17. >
O cenário próspero, impulsionado pelo cultivo de cacau, emoldura o descanso da família branca, o ofício dos trabalhadores negros e um conjunto de estruturas físicas oriundas do passado escravista — a casa grande e a senzala permaneciam intactas.>
Em maio do ano seguinte, a fotógrafa se dirigiu ao bairro do Jabaquara, na Zona Sul paulistana, rumo à mansão de 22 cômodos onde o delegado João Ranali, chefe do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), vivia com esposa, filhos e inúmeros bens de consumo.>
Na cozinha, a família é rodeada por eletrodomésticos, refrigerantes e louças de vidro; na sala, três homens assistem a um programa de TV, repousados em móveis de design moderno. >
No banheiro, um rapaz lê gibis com semblante tranquilo; não muito longe dali, debruçada sobre a mesa da copa, uma senhora folheia o jornal.>
Seis meses depois, Andujar aportou em um universo antagônico — uma vila caiçara em Ubatuba, litoral norte de São Paulo. >
As imagens revelam a proa de um barco, ondas quebrando na superfície da água e montanhas que se erguem contra o céu. >
O horizonte é vasto, mas o pescador e sua família permanecem boa parte do tempo confinados em uma casinha rústica, entre cordas, redes e panelas amassadas — sempre descalços.>
A esposa, de cabelo trançado e vestido de chita, maneja a chaleira sobre um coador de pano, enquanto nuvens de vapor se elevam ao redor. >
O homem, com o rosto oculto, ergue um bebê em direção à janela — única fonte de luminosidade no recinto. >
Ao abandonarem a penumbra, os indivíduos se misturam com a areia, reduzidos a pequenas silhuetas à beira-mar.>
Por fim, em 1964, a fotógrafa se instalou na residência de um médico católico em Diamantina, centro de Minas Gerais. >
Durante quinze dias, acompanharia a rotina do patriarca no Hospital Nossa Senhora da Saúde, observando sua interação com gestantes e freiras, as andanças pelas ruas de arquitetura colonial, o fervor das comemorações cristãs e a opulência das igrejas barrocas.>
No espaço doméstico, o cotidiano se funde com o sagrado — às voltas com imagens religiosas, sujeitos jogam cartas, uma mulher toca piano, dezenas de crianças correm para lá e para cá.>
"Falei sobre a série com algumas dessas famílias, e os relatos se parecem bastante", afirma Brandão, contando como essas pessoas viam Andujar. >
"Todos se lembram de uma mulher alta, bonita, muito calada, que cruzava rios a nado e fazia exercício o tempo todo. Eu, particularmente, a imagino transitando por esses núcleos como uma borboleta, sem nunca interferir na ação".>
Andujar queria publicar o ensaio na Cláudia, revista feminina da Editora Abril — mas foi ignorada.>
"Acho curiosa a ideia de família que circula pela mídia", avalia Rivitti. >
"Existe toda uma idealização, bem típica das propagandas de margarina, escondendo desigualdades que serão tensionadas por obras como essa. É bem sintomático que ela não tenha conseguido publicar as fotos na época".>
Andujar se tornaria mais conhecida a partir de 1967, graças a seu trabalho em outro veículo da Abril — a Realidade, revista que marcou a imprensa brasileira na segunda metade do século 20. >
Debates políticos e mudanças comportamentais permeavam a linha editorial da revista, sempre atenta à controvérsia e ao desconhecido.>
Os fotógrafos eram livres para se entregar a abordagens visuais autônomas, ligadas ao texto somente pelo objeto em comum.>
Andujar, por exemplo, trabalhava longe dos repórteres, em pautas dedicadas a setores estigmatizados da sociedade. >
Naquele momento, vivia maritalmente com o fotógrafo afro-americano George Love, também colaborador da publicação.>
"A Claudia me falou muito das andanças que eles tinham em Nova York", recorda-se Brandão.>
"Ela nunca aderiu ao senso comum, à família tradicional. E ali, nos Estados Unidos, era alvo de ofensas por estar caminhando na rua ao lado de um preto. Acho que ela sempre se sentiu marginalizada, e os ensaios para a Realidade talvez representem sua busca por lugares mais confortáveis.">
Um desses cliques nos mostra uma prostituta com seios expostos, amamentando o filho em alguma localidade não identificada. >
Em outro flagrante, vemos uma stripper, mal disfarçando o próprio tédio, despir-se ante a plateia masculina de um pequeno teatro. >
Internos definham a esmo no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, e gays marcam encontros furtivos pelas esquinas do Rio de Janeiro.>
Em Minas Gerais, turbas desesperadas se enfileiram para que o médium Zé Arigó, suposto cirurgião espiritual, lhes introduza uma faca no olho. >
Em um apartamento da capital paulista, um dependente químico cheira cocaína e injeta alucinógenos, mas Andujar não se basta com a imagem cinzenta dos apetrechos — mediante filtros, confere às seringas uma tonalidade lisérgica, oscilando entre o verde e o vermelho.>
"A maioria do meu trabalho é em cor", disse ao Jornal do Brasil em 9 de outubro de 1971. >
"Se você fotografa em preto e branco, metade da sua criatividade está no laboratório. [...] Porque foi você quem esteve lá, que sabe a luz, o lugar, o que você pretendeu dizer quando estava operando.">
Com um par de máquinas sob o pescoço, ela embarcou na extinta ferrovia ligando o bairro do Brás, em São Paulo, a Salvador, na Bahia. >
Em uma longa viagem de sete dias, foi acompanhada por dezenas de migrantes — desempregados e desesperançosos, eles recebiam do governo um pedaço de goiabada, dois pães adormecidos e uma passagem de volta para o Nordeste. >
"É o trem do diabo", anunciaria a Realidade em maio de 1969.>
Ao percorrer os vagões em movimento, Andujar se alternava entre as duas câmeras, registrando, ora em cores, ora em preto e branco, a perplexidade das crianças, o cansaço dos adultos, braços estendidos para fora das janelas, cabeças reclinadas sobre bancos de madeira.>
"É uma série polêmica, pois aquelas pessoas não estavam exatamente na sua melhor forma para serem fotografadas", observa Rivitti. >
"Por outro lado, não deixa de ser um documento valioso para a gente entender a origem das políticas higienistas que São Paulo nunca deixou de criar.">
Sônia, uma aspirante a modelo, regressou à Bahia em condições similares. Antes, visitara diversos estúdios na capital paulista.>
Andujar foi a única a se interessar pela jovem de pele escura. Corria o ano de 1971. "Não demorei a chamá-la", escreveu na Revista de Fotografia. >
"Sônia não sabia posar. Porém, era justamente disso que provinha seu encanto inocente. Os gestos e atitudes não profissionais revelaram uma sensualidade mansa, tranquila. Ela não parecia estar diante da câmera fotográfica, mas fora do mundo".>
Em busca de entrosamento, Andujar ofereceu-lhe os discos da sua coleção. Sônia rodou alguns na vitrola, afeiçoando-se à música I Had a Dream, gravada pelo americano John Sebastian. >
A letra diz: "Tive um sonho na última noite / Que sonho lindo foi esse / Sonhei que estávamos todos bem / Felizes em uma terra de Oz". >
Guiada pela melodia, a modelo assumia poses oníricas — ainda que não soubesse inglês.>
Três horas se passaram, e Andujar gastou dez rolos de filme, cada qual com 36 poses. >
As fotos, simples e diretas, prenunciavam uma tarefa mais complexa — reconstruir a imagem de Sônia em laboratório, com filtros e sobreposições.>
"Às vezes, seu corpo ganha aparência escultórica. Em outros momentos, adquire formas chapadas", analisa Rivitti. >
"Hoje, com a banalização dos filtros no Instagram, a gente olha para esse trabalho sem entender direito a radicalidade de sua técnica. Mas, ali, a Claudia assumia um grande risco, operando de modo lento, artesanal.">
Andujar não se interessava mais por jornalismo. Estimulada pelo crescente reconhecimento da fotografia no circuito artístico brasileiro, vinha direcionando sua carreira aos museus — tornou-se professora do Museu de Artes de São Paulo (Masp), organizou diversas exposições e imergiu-se na pesquisa. >
Nessa época, desenvolveu experiências quase clandestinas.>
Em 1974, ela sobrevoaria São Paulo, munida de filmes infravermelhos — até então, um material de uso restrito ao Exército, com venda controlada pela ditadura militar. >
No regime autoritário, inclusive, Andujar foi citada em dezenas de documentos confidenciais e chegou a ser expulsa de um território indígena em 1978, ao ser enquadrada pela Lei de Segurança Nacional.>
Os filmes infravermelhos têm propriedades fotoquímicas que permitem capturar ondas invisíveis a olho nu, acentuando detalhes ocultos e distorcendo nossa percepção cromática.>
Uma atmosfera opressiva se instaura nas imagens que Andujar realiza com auxílio da tecnologia. >
Há um predomínio do azul e do cinza, em uma perspectiva aérea que ressalta o caráter simétrico dos edifícios e a escassez de vegetação. >
Árvores são raras, brotando com tonalidade púrpura entre blocos de concreto. A presença humana simplesmente inexiste.>
Abordagem oposta marca um ensaio produzido na rua Direita, logradouro altamente movimentado do centro paulistano. >
Com a câmera rente ao asfalto, a fotógrafa engrandece os transeuntes — rodeados por letreiros garrafais, eles se esbarram pela calçada, absorvidos em suas próprias rotinas.>
São indivíduos solitários, tal como a dupla que estampa uma fotografia misteriosa, identificável no tempo e no espaço graças ao título Brasília, 1965. Seu contexto é uma incógnita.>
"Tem um descampado enorme, por onde descem uns homens pequenininhos", descreve Brandão. >
"Um dos caras está de terno, eles andam e conversam. Não tem prédios, nada de arquitetura, um único [Oscar] Niemeyer sequer. É só nuvem e pedra.">
O curador adoraria saber o que houve por ali, mas não conseguiu descobrir. >
"A Claudia é uma mulher que não dá trela para o passado. Só o que importa é o futuro", diz Brandão.>
"Ela fica louca de entusiasmo quando descobre uma nova técnica de impressão. Mas se você perguntar o que ela foi fazer lá no Distrito Federal, ela finge que nem escuta.">
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