Publicado em 28 de setembro de 2023 às 05:23
Há menos de uma semana, indígenas de todo o Brasil se aglomeravam em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) entre abraços e lágrimas para comemorar a maioria formada na Corte para rejeitar a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas. >
Naquele dia, o julgamento era considerado, por eles, uma vitória histórica. >
Seis dias depois, nesta quarta-feira (27/09), um movimento capitaneado por parlamentares da bancada ruralista no Senado liderou a aprovação por 43 votos a favor e 21 contra de um projeto de lei que estabelece o marco temporal e uma série de outras medidas. >
Para os ruralistas, foi uma vitória do Congresso Nacional sobre o que classificam como "ativismo judicial". Para parlamentares governistas, ambientalistas e lideranças indígenas, a aprovação do projeto foi um "retrocesso a 1500" (ano de chegada dos portugueses ao Brasil). >
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Para entrar em vigor, o projeto de lei ainda precisa passar pela sanção presidencial. Nos bastidores, a expectativa é de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vete total ou parcialmente a matéria aprovada, o que deve gerar ainda mais atritos com parte do chamado Centrão, bloco do qual o petista depende para manter a governabilidade no Congresso. >
Como o marco temporal já foi alvo de um julgamento no STF, lideranças indígenas prometem recorrer ao Judiciário para que declare inconstitucional a lei aprovada nesta quarta-feira. >
Na última quinta-feira (21/09), o STF havia formado maioria contra a tese do marco temporal. O julgamento foi concluído nesta quarta-feira (27) e o placar terminou com nove votos contra e dois a favor do marco. >
A reação à votação no STF não demorou a acontecer. Ainda na semana passada, os parlamentares aceleraram os trâmites de um projeto de lei que estabelecia o marco temporal. >
A ação contou com o apoio maciço de congressistas da poderosa Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) — formada, em grande parte, por deputados e senadores do Centrão, bloco informal de partidos de centro-direita do qual sucessivos governos vêm dependendo nos últimos anos para garantir a aprovação de medidas de seu interesse.>
A posição oficial da FPA sempre foi a favor do marco temporal, com o argumento de que a ausência dele colocaria em risco produtores rurais de todo o Brasil, especialmente aqueles localizados em áreas da nova fronteira agrícola, na Amazônia e no Centro-Oeste. >
Nesta quarta-feira, a operação para a aprovação do marco temporal no Senado levou pouco mais de 10 horas para se concretizar. No início da manhã, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) abriu uma sessão para votar o relatório do senador Marcos Rogério (PL-RO), relator da matéria e integrante da chamada bancada ruralista. >
No início da tarde, o relatório foi aprovado por 16 votos a favor e 10 contra. >
À tarde, o Plenário do Senado aprovou um pedido de urgência para que o projeto fosse votado. Parlamentares governistas como o líder do governo no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), criticaram o projeto. >
"Isso é um retrocesso a 1500. Isso é um retrocesso à chegada dos europeus e aos primeiros contatos [com povos indígenas]", disse o senador. >
Apesar dos apelos da ala governista, às 18h56, o presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), declarou a aprovação da matéria. >
O chamado "marco temporal" é uma tese que vinha sendo debatida no Congresso e no STF segundo a qual a demarcação de terras indígenas só poderia ocorrer em comunidades já ocupadas por indígenas quando a Constituição foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. >
O julgamento do STF foi sobre um caso envolvendo uma parte da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina, habitada pelos povos xokleng, kaingang e guarani.>
A disputa envolvia, de um lado, a Fundação Nacional do Índio (Funai); e de outro, órgãos do governo estadual de Santa Catarina, que reivindicavam áreas que a Funai havia declarado como tradicional ocupação indígena. >
Ambientalistas e lideranças indígenas rejeitavam o marco temporal sob o argumento de que muitas comunidades foram expulsas de seus territórios originais antes de 1988. Era esse o argumento usado pelos xokleng no julgamento no STF. >
Eles dizem terem sido forçados a deixar as áreas tradicionalmente ocupadas para fugir de perseguições e matanças ao longo de décadas. >
Ruralistas, por outro lado, alegam que o não estabelecimento de um marco temporal poderia causar insegurança jurídica, pois abriria o precedente para que áreas ocupadas por não-indígenas possam ser reivindicadas como terras indígenas mesmo que elas não estivessem sendo habitadas por povos tradicionais antes da promulgação da Constituição Federal. >
A votação do projeto sobre o marco temporal mesmo após o julgamento do caso foi vista como uma "reação" do Legislativo ao Supremo pelo cientista político Marco Antônio Teixeira, professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV). >
"Essa votação foi uma resposta do Legislativo [...] Se houver mais situações em que decisões do Supremo sejam imediatamente contestadas pelo Parlamento, a relação entre esses dois poderes tende a ficar tensa", afirmou o professor. >
Para Teixeira, o movimento protagonizado pelo Senado nesta quarta-feira é resultado não de algum tipo de interferência do Judiciário no Legislativo, o chamado "ativismo judicial", mas pela suposta demora do Legislativo em decidir temas relevantes. >
"O poder de legislar é do Legislativo, mas quando ele demora muito a tomar decisões sobre questões urgentes como era o marco temporal, o Supremo acaba tendo que decidir quando é consultado sobre o assunto", disse o professor. >
O senador Marcos Rogério (PL-RO), negou, no entanto, que a votação tenha sido uma reação ao STF. >
"São os precedentes do próprio STF que asseguram que o Legislativo tenha a atribuição de legislar inclusive sobre matérias que foram alvo de julgamento do STF. Pensar diferente seria aniquilar o papel do Legislativo. Não é uma afronta ao Supremo", disse o senador à BBC News Brasil. >
Desde a semana passada, lideranças indígenas já vinham demonstrando preocupação com a possibilidade de uma "reação" por parte dos ruralistas após a formação de maioria contra o marco temporal no STF. >
"A rejeição do marco temporal pelo Supremo é uma grande vitória [...] Mas a bancada ruralista está com uma cobiça nas terras indígenas e quer a todo custo aprovar [no Congresso] uma tese de marco temporal", disse à BBC News Brasil na semana passada o coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kleber Karipuna. >
Indígenas e ambientalistas afirmam que a lei aprovada nesta quarta-feira contém dispositivos ainda mais perigosos para os povos indígenas que o simples marco temporal. >
A lei prevê, por exemplo, que terras indígenas já demarcadas podem ser retomadas caso seja verificada a mudança de traços culturais das comunidades que vivem nelas, possibilidade que não existia até então. >
"Isso é um risco muito grande para os povos indígenas porque basta que alguém diga que nós mudamos nosso modo de viver para que questionem a legitimidade das nossas terras", disse outro coordenador-executivo da Apib, Dinaman Tuxá. >
Outro ponto controverso é a autorização para que não-indígenas possam exercer atividades agrícolas em terras já demarcadas. >
Essa é uma reivindicação de produtores rurais de estados como Mato Grosso e de uma parcela considerada pequena de indígenas em regiões dominadas pelo agronegócio como os da etnia Haliti-Paresi que vinham arrendando suas terras de forma irregular para produtores de soja. >
Outro dispositivo previsto no projeto aprovado é o que, segundo críticos, flexibilizaria a política de não-contato com indígenas isolados que vigora no país há décadas. >
O projeto estabelece que o contato com esses indivíduos poderia ser feito para "intermediar ação do estado de utilidade pública", um conceito considerado muito vago por ambientalistas e que poderia abrir brechas para o contato forçado com os isolados. >
"Esse projeto de lei é um risco para os povos indígenas porque ele está repleto de inconstitucionalidades. Ele traz insegurança jurídica pois coloca em risco até mesmo aquelas terras que já foram demarcadas e homologadas. Há violações claras de preceitos constitucionais", afirmou à BBC News Brasil o analista sênior de políticas públicas da organização não-governamental WWF Brasil, Bruno Taitson. >
O senador Marcos Rogério rebate as críticas. >
"Muito se fala em cuidar do índio, em dar terra para o índio. Mas pouco se fala em assistência ao índio. Índios aldeados e não aldeados vivem, muitos deles, em condição de miserabilidade", disse o parlamentar. >
Agora, ambientalistas e movimentos indígenas se reorganizam para tentar impedir que o projeto aprovado passe a ter validade. >
A primeira estratégia reside em criar pressão sobre o presidente Lula para que ele vete o projeto. >
No governo, a aprovação do projeto foi criticada. >
"Embora a ministra dos Povos Indígenas (Sônia Guajajara) e representantes do MPI tenham sido recebidos por líderes, relatores e até pelo presidente (do Senado) Rodrigo Pacheco para apresentar pontos críticos e sensíveis aos direitos indígenas, nada foi acatado pelo Senado", diz o trecho de uma nota do Ministério dos Povos Indígenas. >
O MPI afirmou ainda que "lamenta" a aprovação e classificou o projeto de lei como "inconstitucional". >
O problema, para aqueles que são contrários ao projeto, é que o Congresso poderia derrubar os vetos e a lei passaria a vigorar. Além disso, eles temem que Lula tenha que negociar com o Congresso quais pontos seriam vetados. >
"Isso seria particularmente preocupante porque a maior parte do projeto contém retrocessos muito grandes aos indígenas. O pouco que não for vetado por meio de uma possível negociação ainda será prejudicial", avalia Bruno Taitson, do WWF Brasil. >
A segunda estratégia dos contrários ao projeto é levar o assunto, novamente, para o STF. >
Um dos argumentos mencionados é o de que apenas uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) teria o peso suficiente para reverter o entendimento de um julgamento do Supremo. Como o que foi aprovado foi um projeto de lei, ele não teria poder suficiente para se sobrepor a uma decisão do STF, responsável por interpretar o texto constitucional. >
"É uma situação delicada, mas não vamos desistir. Já estamos estudando a possibilidade de questionar a constitucionalidade dessa lei. Vai ser mais uma batalha, mas não vamos desistir", afirma Dinaman Tuxá.>
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