Publicado em 21 de junho de 2025 às 12:39
O escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que "somos a nossa memória, esse museu imenso de formas inconstantes, esse monte de espelhos quebrados".>
Mas, às vezes, como acontece com a demência, essa memória começa a se perder e, em muitos casos, desaparece por completo. >
Por isso, quando o diagnóstico chega, a dinâmica familiar costuma mudar completamente.>
As famílias podem ter dúvidas sobre como lidar com a pessoa afetada — que tem dificuldade de reconhecê-las — e qual é a melhor forma de manter sua qualidade de vida. É um período complexo.>
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Patricia Gracia García é psiquiatra no Hospital Universitário Miguel Servet de Zaragoza, na Espanha, e acompanha há anos famílias com parentes com demência. >
Ela decidiu reunir toda a sua experiência no livro ¿Qué le pasa a mi madre?, ("O que Está Acontecendo com a Minha Mãe?", em tradução livre), em que traz, com uma linguagem simples e acolhedora, informações úteis sobre essa doença. >
A BBC News Mundo — serviço em espanhol da BBC — entrevistou García. >
Confira alguns trechos da entrevista a seguir.>
BBC News Mundo - Qual o primeiro conselho você daria a um familiar de uma pessoa com demência? >
Patricia Gracia García - É um diagnóstico que cai como um balde de água fria, porque você pensa: "Bom, essa é uma doença irreversível e não tem cura." >
Mas eu diria que existem tantos tipos de demência quanto de pessoas com demência, e que cada evolução é diferente. >
Não haverá uma melhora dos sistemas, mas pode haver uma melhora na qualidade de vida, que depende dos cuidados. E, se certos sintomas psiquiátricos forem tratados, eles também podem melhorar. >
Eu também diria que a informação é poder, e que o melhor é entender o que está acontecendo.>
Não podemos tentar resolver algo que não tem solução, mas podemos sim enfrentar de uma forma mais saudável, tanto para a pessoa com demência quanto para nós mesmos.>
Devemos também permitir que elas mantenham a sua autonomia até onde for possível. Em estados avançados, elas não vão conseguir decidir sobre certas coisas, mas podem, por exemplo, escolher o que preferem comer ou o que querem vestir. >
É preciso ir passo a passo e adaptar o ambiente à pessoa conforme ela passa por cada etapa da doença.>
BBC News Mundo - Ao que temos que estar atentos? Quais são alguns sintomas prévios ao diagnóstico?>
García - Além das mudanças cognitivas na memória, podem surgir sintomas psiquiátricos como apatia ou depressão, mudanças na personalidade que tornam a pessoa mais irritável e intolerante à frustração, mais impaciente e sem disposição para ouvir os argumentos dos outros. >
Mas precisa ser uma mudança de comportamento, algo novo, e que persista ao longo do tempo. >
É comum também que, movidas pelo medo, as pessoas com histórico de demência na família se preocupem demais com os próprios esquecimentos, mesmo eles sendo normais em alguns casos. >
BBC News Mundo - Como distinguimos um esquecimento normal de algo que pode indicar uma demência?>
Patricia García - A chave está em como isso afeta o dia a dia. Com a idade, é normal que a memória ou a velocidade para processar informações diminua, mas isso é compensado com outras habilidades, como sabedoria e experiência. >
Também temos que pensar que, às vezes, falhas na memória podem acontecer por uma situação de estresse, porque estamos com muita coisa na cabeça.>
Ter esquecimentos é normal, mas vira um problema quando afeta a nossa capacidade de executar as tarefas do dia a dia.>
No geral, em casos de demência, quem mais se preocupa é quem está ao redor e não o próprio paciente. Já quando não é demência, é o contrário: a pessoa fica achando que ela tem algum sintoma e isso gera ainda mais nervosismo e ansiedade. >
Por isso, o mais importante é observar se há algum sinal real de deterioração ou não. >
BBC News Mundo - Fala-se muito sobre como um diagnóstico de demência afeta os adultos da família, mas e as crianças? Como explicar isso para elas?>
García - Não temos que esconder nada delas, afinal, a criança vai perceber que tem algo estranho acontecendo.>
É preciso explicar a elas de uma forma que possam entender, adaptando a linguagem à idade e à capacidade de compreensão, até ao interesse delas, porque algumas vão fazer perguntas.>
Eu explicaria que uma pessoa tem uma doença no cérebro que faz com que ela se comporte de uma maneira diferente, que para ela as coisas são mais difíceis e ela não se lembra do que fez ou não sabe como dizer o que está sentindo ou precisando. >
Ou ainda que, às vezes, não consegue reconhecer os lugares onde está e nem as pessoas com quem está conversando. >
Eu diria também que, apesar de ser uma doença sem cura, nós podemos ajudar quem está passando por isso. >
Pode ser muito impactante para os familiares, e ainda mais para as crianças, quando, por exemplo, uma pessoa com demência se olha no espelho, acha que está vendo outra pessoa e começa a conversar. >
Nesse caso, o melhor para as crianças é explicar da forma mais natural que, por causa da doença no cérebro, essa pessoa não reconhece mais a própria imagem. >
O problema é que, muitas vezes, nem mesmo os adultos compreendem a situação, e por isso é tão importante ter essa informação: para entender, explicar e evitar gerar medo. >
BBC News Mundo - No livro, você diz que, nesses casos, às vezes não vale a pena insistir na verdade, que ela é relativa. E que o melhor é não discutir. >
García - É muito comum na demência que a pessoa tenha dificuldade para reconhecer que precisa de ajuda, ou que esteja vendo e ouvindo coisas que não são reais, mas que ela está convencida de que são.>
Uma estratégia possível é tentar usar alguma pista, como fazer com que ela reconheça uma característica própria — uma pinta, uma cicatriz, um acessório — naquela imagem que vê no espelho, por exemplo.>
Mas se você perceber que ela não se reconhece e fica inquieta, pode ser melhor cobrir o espelho. Insistir pode não levar a lugar nenhum. >
Às vezes, a família usa respostas lógicas para explicar as coisas, discute com a pessoa com demência e tenta convencê-la de que o que ela está vendo não é real. Mas, na maioria das vezes, além de não funcionar, discutir e insistir aumenta o problema.>
Por isso, é fundamental que aqueles ao redor de uma pessoa com demência reconheçam quais atitudes acabam agravando o problema para que possam parar de repeti-las e, assim, criar um ambiente mais calmo, seguro e acolhedor. >
BBC News Mundo - Qual é o problema mais comum que os familiares costumam relatar?>
García - A rebeldia e como lidar com ela. E isso pode acontecer porque estamos pedindo para a pessoa com demência que faça algo que ela não sabe como fazer, ou não estamos lhe dando tempo suficiente ou ainda porque ela sente desconfiança.>
Pode ser uma reação secundária a sintomas psiquiátricos, mas também pode ser uma forma que ela encontrou para reivindicar sua autonomia, de buscar pequenas conquistas em um mundo que ela sente que não tem mais controle. >
BBC News Mundo - O que fazer se desconfiarmos que um familiar pode estar com demência? >
García - Falar com o médico é essencial, mas o primeiro passo é perguntar ao nosso familiar, escutá-lo e pedir que ele nos diga se tem notado alguma falha ou problema, se está mais nervoso ou irritado, se está com dificuldade para fazer algo. >
Isso pode ser a porta de entrada para convencê-lo a procurar um médico. >
É preciso respeitar o tempo da pessoa e esperar o momento certo, tanto para falar sobre o que sente quanto para perceber as dificuldades que ela tem.>
No fim das contas, dá para dizer algo como "Olha, mãe/pai, eu estou muito preocupado. Ficaria mais tranquilo se você fosse ao médico dar uma olhada".>
Geralmente, elas aceitam. Levar a pessoa a força ou sem avisar é a pior ideia que existe. >
BBC News Mundo- Você menciona no livro que o engano é um dos fatores sociais negativos para quem tem demência. >
García - As pessoas fazem na melhor das intenções, mas não é o ideal. Também não é bom falar de forma abrupta. É importante transmitir as coisas de um jeito que a pessoa possa participar até onde for possível.>
Outro fator social negativo é o descuido. As famílias geralmente se viram sozinhas, mas esse é um problema da sociedade e das instituições, que acabam negligenciando pessoas com demência. >
Existe um estigma e uma espécie de exclusão da pessoa com demência, que de certa forma é afastada de participar e de se relacionar com a família e amigos, perdendo um espaço social importante de conexão. >
Ou se invalida o que elas sentem e expressam.>
É fundamental escutar as necessidades, os afetos dela. Às vezes, não tem outro jeito senão impor alguma coisa, mas esse não deve ser o primeiro passo. Não podemos tirar o poder delas. >
Também não podemos objetificá-las. É preciso comunicar o que vai fazer ou pedir permissão, por exemplo, quando for dar banho ou ajudar a se vestir.>
Devemos explicar de forma simples e direta, mas sem tratá-las como crianças, porque não podemos esquecer que são adultos com uma história de vida.>
BBC News Mundo - A respeito disso, uma das coisas que você destaca é a importância de preservar a autonomia da pessoa, por exemplo, não tirar a carteira de motorista logo de cara, assim que vem o diagnóstico. >
García - Isso é importante para elas, assim como seria para qualquer um nós. Decisões precisam ser tomadas à medida que as dificuldades vão surgindo, e não antes. De forma gradual, com sensibilidade, e não guiados pelo diagnóstico.>
Em muitos casos, medidas desproporcionais são tomadas para evitar riscos e acaba sendo pior. >
Isso serve tanto para dirigir quanto para lidar com o dinheiro. É preciso observar se a pessoa ainda consegue dirigir com segurança, se pode administrar pequenas quantias de dinheiro, ou se consegue cozinhar sozinha. E ir adaptando as tarefas. >
Se for alguém que cozinhou a vida toda, pode ser que agora precise de ajuda, ou mais pra frente só consiga cortar os ingredientes. Mas é importante dar a essa pessoa uma função relacionada com o que sempre foi valioso para ela, adaptando conforme as capacidades. >
Também é fundamental validar as emoções e ajudá-la a lidar com problemas do dia a dia, principalmente em fases mais leves da demência. >
Se possível, fazer terapia de reminiscência. É uma abordagem que estimula a pessoa a lembrar e reviver momentos de sua vida, reconstruindo sua história por meio de elementos que a conectam com a própria identidade, como por exemplo, a música. >
BBC News Mundo - Os familiares de pessoas com demência geralmente têm medo de repetir o mesmo destino de seus avós ou pais. O que eles devem fazer e o que não devem fazer para prevenir e diminuir o risco?>
García - Nesses últimos anos, tem-se dedicado mais atenção ao estudo de fatores modificáveis e à busca por estratégias de prevenção, porque, no fim das contas, a população vai envelhecer. >
Um dos fatores principais é a reserva cognitiva, ou, podemos dizer, um cérebro mais ativo e curioso. Isso não está ligado apenas à escolaridade.>
Isso não quer dizer, por exemplo, que o Alzheimer não possa afetar essas pessoas com mais reserva cognitiva, mas a doença vai demorar mais tempo para se manifestar. Assim, uma boa reserva cognitiva não protege ninguém da doença, mas atrasa seu aparecimento. >
É preciso também estar atento a todos os fatores que prejudicam as artérias, como fumar, consumir álcool e outras substâncias tóxicas, a obesidade, o aumento da pressão arterial e do colesterol, pois todos eles aumentam o risco. >
Se tivermos problemas de visão ou audição, é importante corrigi-los, porque isso ajuda a prevenir e a manter mais conexão com o ambiente ao redor. >
Manter-se socialmente ativo, ter atividades cognitivas e rotinas também é fundamental.>
Se conseguirmos controlar esses fatores dentro das nossas possibilidades, podemos prevenir em até 40% o risco de demência, o que não é pouca coisa.>
No caso de histórico familiar, ainda que possa implicar maior risco, essas doenças geralmente se manifestam de forma precoce, antes dos 60 anos. >
Mas, vou te dizer que a genética é apenas mais um fator de risco, não é determinante. >
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