Publicado em 30 de dezembro de 2025 às 11:29
Morreu nesta segunda-feira (29/12), aos 94 anos, Cecilia Gimenez, a autora involuntária de um dos maiores memes da internet mundial.>
Em 2012, munida de boas intenções, mas sem dominar as técnicas necessárias, Dona Cecilia tentou restaurar o afresco Ecce Homo, de Elias García Martínez.>
A pintura estava nas paredes de um santuário religioso da cidade de Borja (norte da Espanha), de apenas 5 mil habitantes.>
Tudo começou com um post de um blog dedicado à cultura de Borja que lamentava "um acontecimento inqualificável" e se perguntava quem tinha se arriscado a resolver os problemas de conservação da pintura. >
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"Desconhecemos as circunstâncias em que isso se produziu.">
Mas a idosa paroquiana acabou identificada como responsável pela intervenção. E logo conheceria a força viral da internet. >
Com as imagens do Ecce Homo "repaginado" circulando em alta rotação, dona Cecilia enfrentou um tsunami de chacotas nas redes sociais e nos programas de humor e virou piada em rodas de conversa muito além da Espanha.>
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Pessoas correram para o Santuário da Misericórdia em Borja para ver o "meme ao vivo". O padre local chegou a solicitar ao prefeito para cobrir a imagem e assim evitar piadas. O pedido foi negado.>
Já a idosa, sob ameaça de processo judicial em razão do que foi classificado de "ato de vandalismo", caiu em depressão. Chorou por vários dias.>
Dona Cecilia foi marcada por batalhas difíceis durante a vida: um dos filhos tem uma lesão cerebral e vivia em uma cadeira de rodas junto à mãe. Outro filho morreu aos 20 anos por causa de uma doença muscular rara.>
Mais tarde ela recuperaria seu ânimo. Percebeu que sua obra estava "dando a volta": pouco a pouco, a ridicularização cedia lugar à apreciação, muita vezes irônica, em um fenômeno típico da cultura da web.>
Em pouco tempo a imagem se transformou em uma série de produtos de merchandising, como chaveiros, camisetas e imãs de geladeira, e até em uma ópera composta pelo norte-americano Andrew Flack em 2015.>
Anos depois, Borja começou a celebrar sem nenhum constrangimento o seu Ecce Homo. O original, segundo críticos, tinha baixo valor artístico, mas a restauração que deu errado transformou a vida da obra.>
Em 2022 o prefeito da cidade, Eduardo Arilla Pablo, disse à BBC News Brasil que ela era ainda "consciente do fenômeno" que sua intervenção provocou.>
Dona Cecilia viveu seus últimos anos com saúde debilitada, em uma casa de repouso mantida pelo governo da região de Aragão. A causa da morte não foi citada, mas o prefeito escreveu em um post que ela "teve cumprido o seu desejo de falecer tranquila, com toda a sociedade borjana ao seu lado".>
Ela disse em uma entrevista à TV pública de Aragão que, se pudesse, "voltaria a tentar reparar o Ecce Homo". A um jornal do País Basco, outra região espanhola, afirmou que sempre gostou de pintar e tem boas recordações da restauração porque a "fez com carinho".>
A cidade chegou a fazer uma cerimônia de reconhecimento a Cecilia Giménez e a Elias García Martínez pelo grande impacto causado nessa pequena cidade localizada a 60 km de Saragoça e parte da região autônoma espanhola de Aragão.>
"Turisticamente somos um produto mundial. Recebemos visitantes de 110 países do mundo", afirma Arilla.>
No primeiro ano após o surgimento do caso houve uma explosão no número de turistas, com 40 mil visitantes em Borja.>
"Agora se estabilizou. Mas trabalhamos para que essa cadeia nunca se rompa na hotelaria da cidade", diz Arilla. Agora, o fluxo fica entre 10 mil e 11 mil visitantes anualmente que testemunham ao vivo o que se celebrizou online.>
Mas o que o prefeito pensa do que fez Dona Cecilia?>
"Como instituição não podemos permitir que essas coisas aconteçam. Temos um grande patrimônio monumental e artístico e estamos empenhados em restaurá-lo. O que aconteceu foi um erro. Mas também é verdade que, uma vez que isso aconteceu, esse é o fenômeno pop, o ícone pop", afirma.>
"Com todo o meu respeito à pintura original de Elias García, a obra mais importante agora se define ao modo de Cecilia Giménez.">
O afresco feito por García Martínez (1858-1934) é uma reprodução de outros Ecce Homo ("Eis o Homem", em latim) do passado. É um tema comum na arte europeia entre os séculos 15 e 17, cujo título alude à frase de Pôncio Pilatos quando apresenta Jesus Cristo torturado à multidão.>
García Martínez foi professor da Escola de Belas Artes de Saragoça e também o patriarca de uma família de artistas do qual se destacou seu filho Honorio García Condoy, um escultor vanguardista.>
A família costumava passar os verões na região de Borja, e foi isso que levou Garcia Martínez a produzir o afresco dentro do santuário no ano de 1930.>
O diário espanhol El País classificou a pintura original como de "escasso valor artístico". A obra não chegou a ser catalogada pelos órgãos culturais de Aragão.>
"Cecilia Giménez criou algo totalmente diferente, com muito mais impacto do que a pintura original, que não seria esquecida porque nem sequer foi lembrada antes", diz Nathalia Lavigne, curadora e pesquisadora em cultura digital.>
"Mas tudo aí é contexto, meme é contexto. A imagem penetrou na cultura visual contemporânea porque tinha todas as características de um meme: uma coisa de casualidade, de amadorismo e meio anárquica. Jamais foi a intenção dela o que aconteceu.">
O caso do Ecce Homo refeito, segundo Lavigne, se relaciona a uma questão contemporânea: agora pergunta-se menos o que é a arte e mais onde é arte.>
"Naquele contexto em que ela fez a restauração certamente não era arte. Mas pode ser visto dessa forma pensando numa ideia de longevidade da circulação da imagem, que vai determinar a importância sobre a vida do objeto.">
Durante a "reabilitação" de dona Cecilia, surgiram visões inesperadas. O cineasta espanhol Álex de la Iglesia, diretor de filmes como O Bar e O Dia da Besta, declarou no Twitter que a imagem é um "ícone de nossa maneira de ver o mundo. Significa muito".>
O crítico de arte americano Ben Davis chegou a colocar a restauração entre as 100 peças que definiram a década de 2010 ("uma amada obra-prima de surrealismo não-intencional").>
Para Rob Horning, editor na revista eletrônica sobre tecnologia e cultura de internet Real Life, o meme na verdade "deu chance para satirizar simultaneamente a piedade da religião e a pseudo-religião da arte".>
O resultado desastroso também "liberou nos espectadores uma sensação de superioridade", algo como "olha o que essa senhora teve coragem de fazer".>
Horning observa que o sucesso das visitas turísticas a Borja também mostra uma curiosa relação mundo offline versus mundo online: é como se a parede em que está o Ecce Homo de dona Cecilia dissesse para o espectador: "Eis a internet".>
"A sensação deve ser bastante poderosa", diz Horning.>
Há no meme de dona Cecilia em 2012 alguns caminhos que tornariam característicos na internet com o passar dos anos. O caso sugeriu, por exemplo, que as consequências para alguém que viraliza, mesmo em um contexto de ridicularização, podem não ser tão graves - e uma grande repercussão consegue ser até "monetizada".>
Foi garantido a dona Cecilia 49% dos direitos de imagem de seu Ecce Homo, que ela aplicava em um fundo para amparar pacientes que enfrentam a mesma doença que seu filho.>
Mas a principal lição do meme, diz o jornalista, é que a internet "se aproveita dos fenômenos e os inverte". O meme, ao final, "deu a volta".>
No final, até dona Cecilia parecia mais convencida sobre sua obra. Em 2016, durante a cerimônia de inauguração de um "centro de interpretação" de seu trabalho em Borja, declarou: "Às vezes, de tanto vê-lo, penso 'meu filho, você já não é tão feio como me parecia no começo".>
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