Publicado em 25 de dezembro de 2025 às 16:43
Num dia nublado de abril de 1919, uma mulher chamada Eglantyne Jebb chegou à Trafalgar Square, a grande praça de Londres.>
Ela usava o cabelo ruivo preso em um coque. Era alta, magra, pálida, com olhos azuis como flores de miosótis.>
A Trafalgar Square era um lugar onde o descontentamento frequentemente se transformava em protesto.>
Foi ali que os cartistas se reuniram em 1848 para exigir reformas políticas em favor dos trabalhadores e, mais tarde, as sufragistas, para lutar pelo direito ao voto.>
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Eglantyne também estava ali com um propósito: distribuir aos transeuntes um panfleto com a fotografia de uma menina de corpo pequeno e cabeça enorme.>
Era uma menina austríaca de dois anos e meio que deveria estar rindo, correndo e perseguindo borboletas, mas não conseguia se manter em pé sozinha.>
O que parecia ser uma cabeça aumentada era consequência da desnutrição, que havia impedido o desenvolvimento adequado do seu corpo.>
A criança pesava cerca de 5,5 quilos. O peso médio de uma criança dessa idade era de aproximadamente 13 quilos.>
A Primeira Guerra Mundial havia terminado um ano antes, mas a Europa ainda vivia grandes privações, com 800 pessoas morrendo de fome a cada semana.>
Ainda assim, alguns britânicos não se sensibilizavam com a situação difícil de seus antigos inimigos.>
Embora ajudar a prevenir a fome de crianças em todo o mundo seja uma ideia excelente e compassiva, na época o trabalho de Eglantyne foi considerado subversivo.>
A polícia chegou para prendê-la, e ela pensou que talvez pudesse usar a própria detenção para amplificar sua mensagem.>
Eglantyne Jebb era uma mulher difícil — no melhor sentido da palavra.>
Defendeu as crianças mais vulneráveis, mesmo quando isso a transformou, para alguns, em alvo de ódio e, perante a lei, em uma criminosa.>
Curiosamente, ela gostava de crianças… à distância.>
Embora tenha dedicado a vida a protegê-las, não apreciava a convivência com elas.>
Eglantyne nasceu em 1876, no seio de uma família muito próspera, e teve uma infância idílica em uma fazenda no interior da Inglaterra, em Shropshire, perto do País de Gales.>
Era a quarta de seis filhos e muito próxima dos irmãos mais novos, Gamul e Dorothy.>
"Eles eram uma pequena turma: inseparáveis e muito travessos", conta Clare Mulley, autora de The Woman Who Saved the Children ("A mulher que salvou as crianças").>
Mas, quando cresceu e quis ter a mesma educação que os irmãos, "o pai se opôs: não queria que sua linda filha se tornasse uma intelectual com quem ninguém quisesse se casar", relata Mulley.>
Felizmente, Eglantyne contou com o apoio de uma tia formidável, Louisa, uma das chamadas "novas mulheres" da era vitoriana — emancipada, instruída, independente e autossuficiente, que desafiava os papéis de gênero tradicionais.>
Ela não apenas garantiu que Eglantyne tivesse acesso à educação universitária e forneceu recursos para sustentá-la, como também exerceu uma influência decisiva para o desenvolvimento de sua consciência social, em uma época marcada por profundas desigualdades.>
Eglantyne foi para a Universidade de Oxford estudar História.>
Na época, a universidade se recusava a conceder diplomas a mulheres, mas permitia que assistissem às aulas e tutorias e até que prestassem exames, desde que pagassem as taxas.>
Eglantyne aproveitou e desfrutou da vida universitária.>
Era popular e tinha tudo a seu favor: origem, beleza e inteligência.>
"Ela era divertida e criativa. Escrevia peças satíricas e as encenava com os amigos, e vivia indo de festa em festa", conta Mulley.>
Mas, de repente, em 1896, recebeu um telegrama da mãe que a devastou: seu amado irmão Gamul havia morrido de pneumonia.>
"Ela passou a ter pesadelos terríveis e começou a imaginar Gamul como uma espécie de Peter Pan, esse símbolo da juventude. E passou a se perguntar: se ele não poderia contribuir para a sociedade como médico, o que ela poderia fazer para honrar os ideais que os dois compartilhavam quando eram crianças?">
Ela parou de ir a festas, afastou-se dos amigos e passou a se dedicar à leitura de História e ao estudo da Ética.>
"Foi ver de perto os menos privilegiados da sociedade de Oxford e, chocada com os níveis de pobreza, livrou-se de tudo o que tinha em seu quarto, num gesto de rejeição aberta aos valores materiais.">
O episódio foi descrito como um surto de loucura.>
Por fim, conseguiram convencê-la a permitir que os móveis voltassem para o quarto. Mas, a partir daquele momento, ela passou a dedicar a vida a ajudar os outros.>
Eglantyne queria tentar nivelar a sociedade e oferecer oportunidades a todos.>
Depois de se formar, pensou em ser professora e conseguiu trabalho em uma escola feminina em um bairro operário de Marlborough, na Inglaterra.>
Descobriu, porém, que essa não era sua vocação.>
"Não tenho nenhuma das qualidades naturais de uma professora", escreveu em seu diário. "Não me interesso por crianças, não me interesso pelo ensino.">
Ela se mudou então para Cambridge e passou a trabalhar com a historiadora Florence Ada Keynes, reformadora social e política britânica, na Charity Organisation Society, cujo objetivo era dar uma abordagem científica e moderna às ações de caridade.>
Em 1906, escreveu um estudo social sobre Cambridge. Concluiu que era a injustiça — e não o infortúnio — a causa da pobreza.>
E apaixonou-se pela filha de Keynes, Margaret, irmã do economista John Maynard Keynes.>
As duas planejavam viver juntas, mas Margaret queria ter filhos e acabou se casando, em 1913, com o fisiologista e futuro vencedor do Prêmio Nobel Archibald Hill.>
Devastada, Eglantyne direcionou suas energias para uma crise nos Bálcãs e se juntou ao Fundo de Socorro Macedônio.>
A Liga Balcânica — uma aliança entre Sérvia, Bulgária, Grécia e Montenegro — havia declarado guerra ao Império Otomano em 1912, que então administrava grande parte da região.>
Milhares de pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas.>
Eglantyne foi enviada com recursos para financiar esforços humanitários, fornecendo comida e roupas, além de trabalhar na reunificação de famílias separadas.>
Ela havia crescido com ideias românticas sobre a guerra, cercada por retratos de antepassados veneráveis como Richard Jebb, que lutou ao lado do rei Carlos I na Guerra Civil Inglesa.>
A realidade brutal destruiu essas fantasias.>
Ela constatou que, quando os homens iam para a guerra, deixavam para trás um mar de mulheres desesperadas e crianças trêmulas.>
"A única vez em que não via uma criança faminta e congelando era depois que ela tomava a sopa que eu lhe dava", conta Mulley.>
"Nessas situações, dizia ela, o único idioma internacional do mundo é o choro de uma criança.">
Logo aprendeu a odiar a guerra.>
Viajando de trem pelos Bálcãs, ouvia cada lado descrever o outro como sub-humano e compreendeu que não havia heróis nem vilões — era a própria guerra que desumanizava.>
"Aquelas condições de desespero, medo e patriotismo envoltos em propaganda retiravam a humanidade das pessoas.>
Era contra a própria guerra que se precisava lutar. Foi um verdadeiro ponto de virada para ela.">
Ela voltou a Londres revigorada por uma nova missão.>
Mas o mundo não estava na mesma sintonia. Em julho de 1914, eclodiu a Grande Guerra na Europa.>
Ao mesmo tempo, sofreu um colapso físico, precisou passar por uma cirurgia e passou grande parte do restante da guerra em recuperação, ao lado da irmã, Dorothy Buxton.>
Dorothy havia solicitado autorização para traduzir trechos da imprensa estrangeira e fazia um resumo semanal de reportagens internacionais para a *Cambridge Magazine*, que se tornou uma publicação importante numa época em que a censura era comum e a verdade, difícil de encontrar.>
Eglantyne começou a trabalhar com a irmã em 1917; queria que os britânicos deixassem de demonizar os inimigos e compreendessem que pessoas comuns estavam sofrendo.>
Em 11 de novembro de 1918, cessou o fogo.>
Após cerca de 10 milhões de mortes militares e quatro anos brutais, a guerra finalmente terminou.>
O primeiro-ministro britânico, David Lloyd George, convocou rapidamente eleições e prometeu um tratado de paz que obrigasse os agressores a pagar.>
Ele venceu com ampla maioria.>
"O clima geral do público não era de misericórdia. Queriam reparações pelos custos militares e sociais de uma guerra que os britânicos não haviam desejado nem iniciado.">
Mas a devastação nos países derrotados persistia e continuava fazendo vítimas.>
Por toda a Europa, milhões de deslocados tentavam voltar para casa, alguns em trens que frequentemente quebravam no caminho.>
"Naquele inverno, chegaram relatos horríveis de trens que ficavam parados nos trilhos e, quando finalmente chegava ajuda, encontravam nos vagões mulheres completamente nuas, pois haviam tirado toda a roupa para aquecer os filhos.>
Eles eram encontrados amontoados, mortos e congelados. Um relato falava das lágrimas congeladas nas bochechas das crianças.">
Enquanto as negociações de paz continuavam, os bloqueios econômicos britânicos seguiam impedindo que a ajuda chegasse aos antigos inimigos.>
Algumas famílias foram forçadas a tomar decisões devastadoras, como "deixar seus filhos morrerem ou ajudá-los ativamente a sair da miséria", relata Mulley.>
Eglantyne e Dorothy, horrorizadas, continuaram trabalhando na tradução da imprensa estrangeira, na esperança de que divulgar detalhes sobre a situação terrível vivida nesses lugares pudesse fazer a diferença.>
"Assim como elas, outras pessoas visionárias reconheceram que havia uma necessidade humana urgente entre as nações derrotadas.>
Também houve quem alertasse que impor reparações capazes de destruir economias no exterior não seria bom para ninguém a longo prazo, pois geraria raiva e ressentimento que poderiam desembocar em um conflito ainda maior.">
As irmãs se uniram a outras mulheres com ideias semelhantes para criar o Conselho de Combate à Fome, cuja pressão conseguiu pôr fim ao bloqueio em alguns países — mas não na Áustria, na Alemanha e na Rússia.>
Foi então que Dorothy viajou para a Suíça e voltou com fotografias, entre elas a da menina austríaca dolorosamente desnutrida que aparecia no panfleto distribuído por Eglantyne na Trafalgar Square.>
As imagens não tinham autorização oficial para divulgação, pois legalmente precisavam cumprir a chamada DORA (Defence of the Realm Act), uma lei aprovada como medida emergencial de guerra em 1914.>
Por isso, em maio de 1919, Eglantyne foi convocada a comparecer ao tribunal em Mansion House, em Londres.>
A Mansion House era frequentemente usada por políticos e dignitários para eventos formais e proclamações, mas também havia sido o local onde muitas sufragistas foram julgadas.>
"Ela estava sendo apresentada ao público como uma mulher histérica", observa Mulley.>
Eglantyne decidiu se defender sozinha.>
Sabia que era culpada do ponto de vista legal, então concentrou sua defesa no aspecto moral, oferecendo aos repórteres judiciais presentes material farto para preencher suas colunas.>
"Ela argumentou que a DORA não deveria mais se aplicar por causa do armistício e que agia exclusivamente por motivos humanitários — uma campanha para salvar vidas, sem qualquer relação com o Exército ou com a política.>
Mas, acima de tudo, concentrou-se na fome das crianças. E, para aproximar o tema das pessoas, contou histórias de soldados britânicos que dividiram suas rações com crianças nos trens para salvá-las.>
Disse que esse era o verdadeiro espírito britânico: um espírito de humanidade e compaixão que todos deveriam sentir.">
Sir Archibald Bodkin, o promotor — e diretor da promotoria pública — declarou-a culpada, mas aplicou apenas uma multa de £5.>
E, diante dos repórteres, depois de proferir a sentença, aproximou-se da recém-condenada, tirou uma nota de £5 — que na época era um grande papel —, dobrou-a e entregou a ela.>
Com esse gesto, Sir Archibald declarou publicamente que, embora Eglantyne tivesse perdido do ponto de vista legal, havia vencido moralmente.>
Eglantyne disse que pagaria sua própria multa, mas que aceitaria o dinheiro dele e o usaria para criar uma nova organização destinada a ajudar a salvar crianças: a Save the Children, hoje uma ONG internacional presente em mais de 100 países e responsável por melhorar a vida de milhões de crianças.>
Assim, a primeira doação à Save the Children veio do próprio promotor da Coroa britânica no processo contra sua fundadora.>
Eglantyne havia conquistado alguns corações… embora não todos.>
No dia seguinte, a história apareceu em todos os grandes jornais e, para aproveitar a repercussão, ela e Dorothy decidiram organizar uma reunião pública para a qual reservaram o maior espaço de Londres: o Royal Albert Hall.>
Apareceu tanta gente que não houve espaço para acomodar todo o público, mas nem todos apoiavam a causa.>
Muitos as consideravam traidoras e chegaram com sacolas cheias de frutas e legumes podres para atirá-los nas irmãs "sediciosas".>
Quando a voz de Eglantyne se ergueu com paixão, dizendo que certamente era impossível que, como seres humanos, pudessem ver crianças morrerem de fome sem tentar salvá-las, os opositores guardaram suas batatas e tomates nas sacolas e tiraram as carteiras do bolso.>
Espontaneamente, houve uma coleta de dinheiro em todo o salão, que ajudou a Save the Children a salvar vidas em Viena.>
A frase de Eglantyne — "Não tenho inimigos menores de 7 anos" — foi amplamente divulgada pelo grupo e se tornou um lema das campanhas de arrecadação da organização.>
Em 1921, ela se mudou para a Genebra politicamente neutra e transferiu para lá a sede da ONG que havia cofundado com a irmã.>
E, num domingo do verão seguinte, depois de escalar o Monte Salève, enquanto admirava a vista panorâmica, teve um lampejo de inspiração.>
"Ela concebeu a ideia de que todas as crianças do mundo deveriam desfrutar dos mesmos direitos humanos universais dos quais até então haviam sido excluídas", observa Mulley.>
Pegou um lápis e um papel e redigiu um documento de cinco pontos.>
Logo se tornou representante voluntária pelo bem-estar da mãe e da criança na recém-criada Liga das Nações, precursora das Nações Unidas.>
E impulsionou, apesar de enorme resistência, o que ficou conhecido como a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, que defendia a proteção, a alimentação e o abrigo das crianças.>
O documento foi adotado em 1924 pela Liga das Nações; 65 anos depois, a ONU formalizou a Convenção sobre os Direitos da Criança.>
"É o instrumento de direitos humanos mais universal da história: foi ratificado por todos os países do mundo, com exceção de um (os Estados Unidos).>
E continua sendo extremamente influente na organização de todo tipo de políticas públicas, além de fundamentar o direito a uma infância saudável e segura, ao abrigo, ao brincar, à alimentação, aos cuidados médicos e a uma vida plena", explica a autora.>
Eglantyne Jebb morreu em 1928, aos 52 anos.>
"Importa que Eglantyne não gostasse de crianças?", pergunta Mulley.>
"Ela as respeitava como indivíduos, como seres humanos — e isso sim importa: mudou a forma como o mundo inteiro vê, considera e trata suas crianças", conclui.>
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