Publicado em 2 de maio de 2025 às 05:39
Uma semana após o ataque a uma escola em Caxias do Sul (RS), a resposta de uma aluna ao ser advertida em sala de aula foi um baque para a professora Juliana ao dar aula em outro colégio da mesma cidade. >
A professora distribuía papéis coloridos para uma atividade, limitados a um por aluno, quando a estudante reagiu à proibição de pegar mais uma folha: "É por isso que fazem o que fizeram na João de Zorzi".>
A referência era ao ataque ocorrido em 1º de abril, em que três adolescentes do sétimo ano da Escola Municipal João de Zorzi atacaram pelas costas e a facadas uma professora de inglês, seguindo um plano premeditado pelo Instagram dias antes.>
"A violência contra os professores está naturalizada", diz Juliana, que pediu para ter seu nome real preservado.>
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Ela trabalhou com a professora que foi esfaqueada na João de Zorzi. Desde a agressão, Juliana diz ter dificuldades em retomar o trabalho em sala de aula. >
"Ainda tenho uma mistura de sentimentos que não consegui entender. Mas sei que me sinto muito insegura.">
O medo não é só de Juliana. Assim como ela, professores e alunos de toda a escola ainda tentam entender como seguir em frente diante de uma violência que rompeu o cotidiano escolar.>
"Os professores agora evitam escrever no quadro para não ficar de costas", relatou uma estudante à BBC News Brasil.>
Um dia após o ataque, todas as escolas da rede municipal de Caxias do Sul tiveram aulas suspensas. Professores e funcionários foram acolhidos por psicólogos e equipes da Secretaria Municipal de Educação. A escola reabriu dois dias após o ataque, em 3 de abril.>
Apesar do retorno rápido à rotina, a comunidade escolar ainda digeria o trauma. Na semana seguinte ao ataque, pais cogitavam transferir os filhos da João de Zorzi para outros colégios, e professores também se questionavam se ficariam ali.>
"Os professores ainda estavam ganhando confiança novamente", afirma o vice-diretor da escola, Gabriel Jean Boff. "Sempre vai ter um sentimento diferente, em especial para quem estava aqui no dia do ataque.">
A mãe de uma aluna do quarto ano diz que passou a acompanhar a filha até a escola todos os dias — antes, fazia isso só de vez em quando.>
"Ela ficou medo e não entendeu bem o que aconteceu", explica a mãe, que pediu para não ser identificada. >
"Tivemos que explicar que ocorreu na sala dos alunos mais velhos e que algumas crianças podem ser más. Meu marido e eu cogitamos tirá-la da escola, mas ela disse que queria continuar para estar com as amigas.">
A secretária municipal de Educação, Marta Fattori, disse à BBC News Brasil que o patrulhamento foi reforçado na João de Zorzi e em outras unidades da região. >
Também estão sendo discutidas medidas como colocar portões com campainha para controlar acesso de estranhos e botões de pânico que poderiam ser acionados em ataques e outras situações de emergência em escolas da rede. Na João de Zorzi, isso já foi feito.>
Fattori também afirmou que o município retomou o programa Escolas de Paz, que prevê uma série de iniciativas para combater a violência nas salas de aula.>
Após o ataque do início de abril, diz a secretária, o programa foi reforçado com a presença de equipes itinerantes nas escolas e implementação de projetos de mediação de conflitos. >
A 980 km de Caxias do Sul, a Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, ainda vive o luto por um ataque em 2023.>
As manhãs agitadas eram parte da rotina da escola, na época com mais de 300 alunos de ensino fundamental. Mas, em 27 de março daquele ano, o dia fugiu do normal.>
"Foi algo fora da rotina", lembra Cinthia da Silva Barbosa, que era professora de educação física na escola localizada na Vila Sônia, Zona Oeste de São Paulo. "Não era o barulho habitual de uma escola viva, com sons de crianças brincando e correndo. Era um som urgente, desorganizado.">
Naquele dia, enquanto dava aula, Cinthia viu que crianças de outras turmas desciam correndo a escada, em pânico. A professora pediu que seus alunos permanecessem na sala de aula e subiu no fluxo contrário. >
"Encontrei com a coordenadora. Não lembro a sequência de palavras, mas lembro dela dizer: 'Ele está armado. Cuidado'.">
Em uma das salas, viu uma professora caída no chão e outra colega sendo esfaqueada. Sem pensar muito, Cinthia imobilizou por trás o autor do ataque, um estudante de 13 anos. "Naquele momento, não ouvia mais nada. Só agi.">
A professora Elisabeth Tenreiro, de 71 anos, morreu no local. O aluno também feriu mais dois colegas e outras três professoras. >
Ele vestia uma máscara de caveira e havia avisado nas redes sociais que estava "esperando por esse momento a vida inteira". Na mochila, levou uma faca e a intenção declarada de matar o maior número possível de pessoas.>
O agressor foi apreendido e levado para a Fundação Casa, em São Paulo.>
Nos dias que seguiram o ataque, a escola foi o epicentro de uma comoção nacional. Recebeu psicólogos, voluntários — de ONGs a igrejas — e visitas de políticos, como o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).>
Seguindo recomendações de especialistas, a escola permaneceu fechada por 14 dias. Neste período, foi reformada e pintada — uma ação encorajada por pesquisadores no tema para ressignificar o espaço. Houve rodas de conversa, oficinas lúdicas, sessões de acolhimento. Até a merenda escolar foi diferente. >
"Muitos voluntários foram nos acolheram, além dos alunos. Isso foi o que me deu mais força para continuar ali", diz Cinthia.>
A professora Ana Clélia Rosa, de 60 anos, foi uma das vítimas do ataque. "Não tem como esquecer. Nesses dois anos, essas lembranças vão e voltam", afirma. >
Ela lembra que, ao tentar pedir ajuda para a colega Elisabeth, deu de frente com o agressor. "Só lembro da faca levantando. Caí e comecei a me defender como podia. Foram menos de dois minutos, mas pareceram uma eternidade.">
Antes de ser levada para a cirurgia, ainda no hospital, recebeu a visita do vice-governador do Estado, Felicio Ramuth (PSD). "Ele me perguntou como eu estava e se voltaria a dar aulas. Respondi que sim, assim que me recuperasse." >
Duas semanas depois, ela voltou à mesma sala onde havia sido atacada. "Cumprimentei meus alunos e vi na porta uma mancha de sangue. Por mais que tivessem limpado, você ainda via uma sombra mais escura. Isso foi o mais difícil de tudo, foi um grande descaso.">
Casos de violência extrema em escolas exigem protocolos específicos de acolhimento, pontua a psicóloga Elaine Alves, especialista em luto pela Universidade de São Paulo (USP), onde coordena o Núcleo de Intervenção Psicológica em Emergências e Desastres (Niped).>
O atendimento após uma tragédia deve considerar o tipo de evento. "Não é a mesma abordagem para um suicídio, um homicídio entre estudantes ou um ataque com agressor ativo. Cada caso exige um plano de contingência próprio", afirma.>
No caso dos chamados ataques ativos, quando o agressor tem o objetivo de matar o maior número de pessoas sem especificar alvos, a orientação é que a escola feche por um período para conseguir se reorganizar. >
"É necessário cuidar dos feridos, lidar com a morte e, ao mesmo tempo, planejar o dia seguinte", pontua a psicóloga, que atuou no Thomazia Montoro após o ataque de 2023.>
Ela afirma que o atendimento psicológico precisa ser imediato, contínuo e articulado com profissionais de diferentes áreas — saúde, educação e assistência social. >
"Nos primeiros dias, o ideal é ter profissionais circulando pela escola, fazendo atendimentos móveis, rodas de conversa, acolhimento no pátio", explica.>
Os efeitos do trauma são duradouros, pontua Alves: "O estresse pós-traumático pode surgir 30 dias depois ou cinco anos depois. Por isso, a rede pública precisa garantir atendimento psicológico de longo prazo — algo que hoje, infelizmente, não se consegue fazer".>
Andrea Oliveira, que era secretária do Thomazia Montoro e estava trabalhando na escola no momento do ataque, carregou um trauma consigo por causa do que aconteceu. >
"Pensei que encontraria um adolescente perturbado, arrependido. Mas não. Ele entrou com o peito estufado, sem hesitação", diz ela, sobre o momento em que o agressor foi levado pela polícia.>
Nas semanas seguintes, a secretária cuidou de tarefas burocráticas: receber visitas e voluntários, fazer ligações de checagem às famílias dos estudantes. "Nunca trabalhei tanto quanto naquele período.">
Andrea só começou a sentir os primeiros sintomas de estresse pós-traumático meses depois. O olhar do adolescente passou a ser uma cena recorrente em seus sonhos.>
"Comecei com dores no corpo, depois vieram os pesadelos, a hipersensibilidade a sons. Hoje, qualquer barulho fora do comum de uma escola me assusta", conta.>
Hoje, ela não trabalha mais na Thomazia Montoro, é merendeira em outra escola. Em julho de 2024, mais de um ano após o ataque, passou a ser acompanhada por psicólogos.>
A experiência também transformou Cinthia Barbosa. "Acho que cada um tem uma resposta diferente", diz. Depois do episódio, a professora começou a cursar faculdade de direito e a pesquisar sobre prevenção a ataques escolares.>
Em suas aulas de educação física, Cinthia passou a estimular ainda mais as vivências coletivas: jogos e atividades em grupo. "A escola precisa ser um espaço de socialização. Isolamento é sempre um sinal de alerta", afirma.>
"Não dá para traçar um perfil de aluno agressor. O que dá para fazer é criar vínculos, escutar, observar.">
O esforço de Cinthia para entender e buscar formas de evitar novos ataques se reflete em um movimento mais amplo. Pesquisadores têm tentado compreender por que esse tipo de violência tem crescido nas escolas brasileiras.>
O país registrou ao menos 42 ataques a escolas entre 2001 e 2024 — mais da metade deles concentrados entre 2022 e 2024.>
Os dados são do relatório Ataques de Violência Extrema às Escolas: Causas e Caminhos — Atualização, publicado pelo D3e - Dados para um Debate Democrático na Educação, com apoio da B3 Social e da Fundação José Luiz Setúbal.>
O levantamento mostra que, entre 2001 e o fim do ano passado, 44 pessoas foram mortas em ataques a escolas no Brasil. Outras 113 ficaram feridas. Mais da metade dos ataques no país foi executada com facas, machados ou coquetéis molotov.>
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A pesquisadora Cléo Garcia participou do estudo e da elaboração de uma cartilha com orientações para escolas e gestores, em parceria com a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), que inclui um passo a passo de ações a serem tomadas após um ataque.>
O documento orienta sobre como organizar o retorno às aulas de maneira segura, escutando ativamente a comunidade escolar a respeito deste momento, e estratégias de cuidado com todos os seus integrantes. >
Garcia diz que esse guia pode ajudar redes escolares que ainda não têm planos próprios de contingência para situações deste tipo.>
"Fechar por um dia e reabrir como se nada tivesse acontecido não dá conta do impacto. A escola inteira precisa ser escutada e cuidada", afirma.>
Ela também destaca a importância da comunicação clara e transparente das autoridades envolvidas com a comunidade escolar e com a imprensa, como forma de combater rumores e boatos.>
"Às vezes, os gestores não estão preparados para isso, mas é fundamental que alguém possa falar em nome da escola, com orientação adequada, para prestar esclarecimentos e garantir a confiança de todos sobre o que está sendo feito.">
Ela também defende que a imprensa atue com responsabilidade para evitar efeito contágio — ou seja, a propagação dos ataques por influência.>
"É preciso evitar dar nome e rosto aos autores, não divulgar detalhes descontextualizados que possam estimular reprodução de condutas violentas", afirma. "Esses adolescentes, em muitos casos, desejam a visibilidade.">
Em Caxias do Sul, a relação com a imprensa foi conturbada desde o primeiro dia. De fake news a informações incompletas ou descontextualizadas, sites locais chegaram a publicar foto de um dos adolescentes envolvidos no ataque e a veicular informações falsas sobre a professora agredida.>
A BBC News Brasil tentou entrevistar a professora atacada e os familiares dos estudantes envolvidos no ataque — de ambos os lados, o assédio da imprensa foi parte da justificativa para declinar os pedidos da reportagem. >
Em resposta ao aumento de ataques a escolas em 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública lançou naquele ano a Operação Escola Segura. Em parceria com a organização SaferNet Brasil, foi criado um canal exclusivo para receber denúncias de ameaças e episódios de violência nas instituições de ensino.>
Entre abril de 2023 e março de 2025, houve 11.971 denúncias. Só no primeiro mês de funcionamento, foram 8,6 mil — de um total de quase 9,8 mil ao longo de 2023 inteiro.>
Para Cléo Garcia, o volume expressivo reflete, em parte, a ausência até então de um sistema nacional unificado para esse tipo de queixa.>
Em 2024, o número caiu drasticamente: 2.081 denúncias, uma redução de 78,6% em comparação ao primeiro ano de funcionamento do canal. Neste ano, até o dia 31 de março, foram 138 queixas.>
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A queda no número de ataques registrados em 2024, na avaliação da especialista, é um efeito do trabalho de forças de segurança.>
"Houve monitoramento de ameaças e ações de inteligência, inclusive em parceria com órgãos dos EUA. Isso impediu novos ataques. Mas as ameaças seguem em alta, e muitas escolas não sabem como reagir", diz.>
O Ministério da Justiça e Segurança Pública atribui a queda nas denúncias de ameaças a escolas a um conjunto de ações, como o reforço na prevenção, o monitoramento de ameaças na internet e campanhas de conscientização.>
Segundo a pasta, todas as denúncias recebidas desde a criação do canal são analisadas individualmente. Após avaliação do conteúdo — com base na gravidade e urgência das informações — os casos com indícios de crime são encaminhados às autoridades policiais locais. >
Os dados também servem de base para a formulação de políticas públicas voltadas à prevenção e ao enfrentamento da violência nas escolas, informou o Ministério. >
Para Garcia, é essencial garantir atendimento psicológico contínuo, canais anônimos para denúncias e protocolos de convivência adaptados à realidade de cada escola.>
"O trauma de um ataque não se resolve em uma semana. Há estudos que mostram que os efeitos podem durar mais de três anos", diz.>
"A escola sofre um grande abalo, mas não é só ela: toda a comunidade escolar, os vizinhos, os parentes das crianças e os colegas dos professores também são afetados.">
"Estamos sempre com a antena ligada", diz a professora de inglês Monique Queiroz. Ela era vice-diretora da escola Thomazia Montoro no momento do atentado, em março de 2023.>
"Não tem como dizer 'já passou'. Cada pessoa reagiu de um jeito, mas acho que 90% da comunidade escolar ficou adoecida — funcionários, alunos e as famílias também", afirma a professora.>
"Qualquer barulho, grito ou estalo assusta. A escola vive em estado de alerta permanente.">
Ela defende a presença fixa de profissionais de saúde mental na escola, com atendimentos individualizados. "Os psicólogos atuam em grupo, mas a dor de cada um é diferente. Precisamos de atendimento contínuo, tanto para casos de trauma quanto para prevenção.">
A escola, diz a professora, recebeu apoio de voluntários e equipes de psicólogos até o final do ano letivo de 2023. >
Procurada pela BBC News Brasil, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo afirmou que acompanha a rotina das escolas estaduais por meio do programa Conviva-SP, que atua na prevenção da violência, mediação de conflitos e apoio à saúde mental. >
A rede, segundo a pasta, conta com mais de 660 psicólogos e quase 700 professores orientadores de convivência, além de mil vigilantes contratados em 2023 para atuar em unidades escolares selecionadas conforme critérios de vulnerabilidade.>
Entre as medidas de segurança, a pasta destaca o Protocolo Conviva 179, com orientações para lidar com situações de risco, e a parceria com a Secretaria de Segurança Pública para garantir reforço de policiais nas escolas.>
Monique deu aulas na escola Thomazia Montoro até o fim do ano letivo de 2024. Ela diz que a decisão de deixar a escola foi motivada por esgotamento emocional. "Precisava encerrar um ciclo. Eu ia ao trabalho triste. O ambiente estava adoecido, e eu não estava bem.">
A psicóloga Elaine Alves questiona a ideia de "voltar ao normal". "Há uma tendência humana de querer esquecer, mas isso não vai acontecer. Essa escola sempre será marcada pelo ataque. E isso precisa ser incorporado.">
Ela defende que escolas criem formas de simbolizar o episódio, como a construção de memoriais com participação da comunidade. >
A psicóloga cita o memorial criado em homenagem às vítimas do massacre da escola Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio de Janeiro. Em 2011, um ataque matou 12 crianças e feriu outras 10.>
"Não é para glorificar a tragédia, mas para lembrar e evitar que se repita.">
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