Publicado em 8 de novembro de 2025 às 20:00
Escondida no corpo humano, existe uma homenagem a um anatomista italiano que morreu muito tempo atrás.>
E ele não é o único. Todos nós carregamos dentro do corpo nomes de pessoas desconhecidas gravados nos nossos ossos, no cérebro e em outros órgãos.>
Alguns desses nomes parecem lendários. O tendão de Aquiles, por exemplo. A faixa situada na parte posterior do tornozelo homenageia um herói grego que morreu com uma flecha que atingiu aquele que era seu ponto fraco.>
Já o pomo de Adão faz referência à mordida do fruto proibido, relatada na Bíblia.>
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Mas a maior parte desses nomes não é baseada em mitos. Eles pertencem a pessoas reais. Em sua maioria, são anatomistas europeus de séculos atrás, cujo legado se mantém sempre que alguém abre um livro de medicina.>
Estas palavras são conhecidas como epônimos. Elas designam estruturas anatômicas com o nome de pessoas, não pelo que elas realmente são.>
Um exemplo são as trompas de Falópio. Estes pequenos condutores localizados entre os ovários e o útero foram descritos em 1561 pelo anatomista italiano Gabriele Falloppio (1523-1562). Fascinado por tubos, ele também deu seu nome ao canal de Falópio, localizado no ouvido.>
Outro exemplo é a área de Broca, que recebeu este nome em homenagem ao médico francês Paul Broca (1824-1880). Ele estabeleceu a relação entre aquela região do lóbulo frontal esquerdo e a produção da fala.>
Se você, alguma vez, tiver estudado psicologia ou conhecer alguém que sofreu derrame cerebral, provavelmente terá ouvido falar desta área do cérebro.>
Existe também a trompa de Eustáquio, um pequeno condutor que se abre quando bocejamos em um avião. Seu nome é uma homenagem ao italiano Bartolomeo Eustachi (c.1510-1574), que foi médico do Papa no século 16.>
Todos eles deixaram suas marcas na nossa anatomia — não fisicamente, mas na linguagem. Mas por que conservamos estes nomes ao longo dos séculos?>
Porque os epônimos são mais do que simples curiosidades médicas. Eles estão intrinsecamente relacionados à cultura da anatomia.>
Gerações de estudantes repetiram esses nomes em sala de aula e os incluíram nas suas anotações. Os cirurgiões os mencionam durante as operações, como se falassem de velhos amigos.>
Eles são curtos, concisos e familiares. Dizer "área de Broca" leva apenas dois segundos. Quando usamos sua alternativa descritiva, "giro frontal inferior posterior", parece que estamos recitando um feitiço.>
Nos agitados ambientes clínicos, a brevidade costuma ser fundamental. E os epônimos também vêm acompanhados de histórias memoráveis.>
Os estudantes se lembram de Falópio porque parece o nome de um músico do Renascimento. Eles se recordam de Aquiles porque sabem para onde devem apontar a flecha.>
Em um campo que, às vezes, parece um muro de termos latinos, uma história humana se transforma em um recurso valioso.>
Além disso, existe, é claro, a tradição.>
A linguagem médica é baseada em séculos de conhecimentos acadêmicos. E, para muitas pessoas, eliminar os epônimos seria como excluir a própria história.>
Mas esta fascinação linguística tem um lado obscuro. Apesar do seu encanto, os epônimos, muitas vezes, não cumprem com seu propósito principal. Eles dificilmente explicam o que é uma estrutura ou qual é a sua função.>
"Trompa de Falópio", por exemplo, não oferece nenhuma pista sobre sua função ou localização, ao contrário de "trompa uterina".>
Os epônimos também refletem uma visão tendenciosa da história.>
A maioria deles se originou durante o Renascimento europeu (séculos 14-16). Naquela época, as "descobertas" da anatomia, muitas vezes, significavam a apropriação de conhecimentos que já existiam em outras partes do mundo.>
E as pessoas homenageadas, em sua imensa maioria, são homens brancos europeus. As contribuições das mulheres, dos acadêmicos de fora da Europa e dos sistemas de conhecimento indígenas são praticamente invisíveis neste tipo de linguagem.>
E existe também a verdade realmente incômoda: alguns epônimos homenageiam pessoas com passados atrozes.>
A "síndrome de Reiter", por exemplo, recebeu este nome devido ao médico nazista Hans Reiter (1881-1969), que realizou experimentos cruéis com prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha.>
Atualmente, a comunidade médica emprega a expressão neutra "artrite reativa", em um pequeno mas significativo gesto de rejeição a homenagear alguém que causou tanto mal.>
Cada epônimo é um pequeno monumento. Alguns são pitorescos e históricos, mas outros são homenagens às quais preferiríamos não dar continuidade.>
Já os nomes descritivos são simplesmente lógicos. Eles são claros, úteis e universais. Não é preciso memorizar quem descobriu o quê, mas apenas onde aquilo está e qual a sua função.>
Se você ouvir "mucosa nasal", saberá imediatamente que ela fica dentro do nariz. Mas peça a alguém para localizar a "membrana de Schneider". Você, provavelmente, receberá um olhar desconcertado.>
Os termos descritivos são mais fáceis de traduzir, padronizar e procurar.>
Eles fazem com que a anatomia seja mais acessível para os estudantes, médicos e o público em geral. E, o mais importante, não glorificam ninguém.>
O que devemos, então, fazer com todos esses nomes antigos?>
Existe um movimento cada vez maior para eliminar gradualmente os epônimos ou, pelo menos, utilizá-los ao lado dos termos descritivos.>
A Federação Internacional de Associações de Anatomistas (IFAA, na sigla em inglês) incentiva o uso de termos descritivos no ensino e na escrita, com os epônimos entre parênteses.>
Isso não significa que devemos queimar os livros de história. O objetivo é acrescentar contexto.>
Podemos ensinar a história de Paul Broca, reconhecendo, ao mesmo tempo, as tradições inerentemente tendenciosas da nomenclatura. Podemos relembrar Hans Reiter sem associar seu nome a uma doença, mas como uma lição que nos sirva de advertência.>
Este enfoque duplo nos permite preservar a história, sem deixar que ela determine o futuro. Ele faz com que a anatomia seja mais clara, justa e honesta.>
A linguagem da anatomia não é apenas um jargão acadêmico. É um mapa de poder, memória e legado, escrito na nossa própria carne.>
Cada vez que um médico diz "trompa de Eustáquio", ele evoca o século 16. Cada vez que um estudante aprende "trompa uterina", ele busca clareza e inclusão.>
Talvez o futuro da anatomia não consista em apagar os nomes antigos, mas em compreender as histórias que eles carregam e decidir quais delas vale a pena preservar.>
* Lucy E. Hyde é professora de anatomia da Universidade de Bristol, no Reino Unido.>
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em inglês.>
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