Publicado em 8 de dezembro de 2025 às 18:44
No final de setembro, o cantor e compositor Antônio Carlos Pinto, da dupla Antônio Carlos & Jocafi, recebeu em seu apartamento no Rio de Janeiro um pedido especial da produção do Grammy Latino.>
A cantora cubano-estadunidense Celia Cruz (1925-2003) teve seu centenário de nascimento lembrado na entrega do prêmio em Las Vegas, nos Estados Unidos, em 13 de novembro.>
Em 1977, Celia gravou em dueto com Willie Colon a salsa Usted Abusó, versão de Você Abusou (1970), da dupla soteropolitana.>
"Como Celia tinha um amor pela gente fora de conta, eles pediram um depoimento meu e de Jocafi para abrir a cerimônia do Grammy", diz Antônio Carlos.>
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Com o parceiro impossibilitado de participar da gravação, Antônio Carlos gravou sozinho a mensagem.>
Você Abusou teve centenas de versões ao redor do mundo, da Argentina ao Sri Lanka.>
Além de Celia Cruz, a música foi gravada por Ella Fitzgerald, Sérgio Mendes, Serge Gainsbourg, Vinicius de Moraes, Toquinho, Maria Creuza, Maysa, Jorge Aragão, MPB-4, Sivuca, Pauline Croze, Daniela Mercury e Diogo Nogueira, entre muitos outros nomes celebrados da música nacional e internacional.>
Também foi cantarolada por Stevie Wonder em um show com participação de Gilberto Gil no Rock in Rio 2011, com coro de milhares de pessoas.>
Você Abusou exibe harmonia sofisticada, na qual a linha de baixo (sequência de notas tocadas pelo instrumento grave, normalmente o contrabaixo) ajuda a criar um efeito de doce lamento.>
Em uma época de canções-manifesto destinadas a um público jovem cada vez mais intelectualizado, a letra despojada ria da própria simplicidade:>
Você abusou>
Tirou partido de mim, abusou>
Tirou partido de mim, abusou>
Tirou partido de mim, abusou>
Mas não faz mal>
É tão normal ter desamor>
É tão cafona sofrer dor>
"Foi a nossa única parceria em que a música é 100% de Jocafi, e a letra, 100% minha", afirmou Antônio Carlos, ao lado do parceiro, em entrevista por videoconferência à BBC News Brasil em 21 de outubro.>
Normalmente, a dupla cria letra e música de maneira colaborativa, sem preocupação com a divisão rígida de papéis.>
Na época, a primeira reação de Jocafi aos versos escritos pelo amigo foi negativa.>
"Eu disse: 'É uma melodia tão bonita, e você está botando essas coisas de que é tão cafona sofrer dor'", relembra Jocafi.>
Foi o multiartista Edy Star, amigo dos dois, que convenceu o compositor a mudar de ideia.>
"Ele disse: 'Jocafi, isso aí é a coisa mais moderna que eu já vi, ninguém faz letra dessa forma'", recorda-se o músico, que acabou se rendendo aos versos do parceiro.>
A canção mais famosa de Antônio Carlos & Jocafi soma-se a uma robusta produção da dupla, que inclui 16 discos, dezenas de prêmios em festivais, trilhas sonoras para TV e cinema, shows e turnês por todo o mundo — e nenhum sinal de aposentadoria à vista.>
Suas canções já foram interpretadas por Orlando Silva (Desespero), Luiz Gonzaga (Chuculatera, Cordel), Alcione (Jesuíno Galo Doido), Emílio Santiago (Recado), Marcelo D2 (Qual é?, releitura de Kabaluerê) e BaianaSystem (Água, Miçanga), entre muitos outros.>
Com 80 anos recém-completos, Antônio Carlos comemora também este ano o 54º aniversário de Mudei de Ideia (1971).>
Foi o primeiro álbum com Jocafi, que fará 81 anos em 21 de dezembro.>
A seguir, alguns momentos marcantes da vida e da obra dos baianos, cultuados por quatro gerações de fãs.>
Antônio Carlos Marques Pinto conta que cresceu junto com a música. >
"Meu avô tocava. Antigamente, na casa de todo mundo na Bahia havia um piano, era normal. Minha mãe tocava um pouquinho de piano. Geralmente, também tinha acordeão e violão", relata o artista.>
O pai do compositor cultivava uma tradição. "Todo sábado, trazia para casa um disco 78 rotações com canções de Francisco Alves, Orlando Silva, Nelson Gonçalves".>
Antônio Carlos cresceu no bairro Garcia, em uma casa vizinha à de Carmen Oliveira da Silva, filha da mãe de santo Menininha do Gantois.>
Carmen sucedeu a mãe em 2002, assumindo como Mãe Carmem do Gantois.>
"O batuque, pa-tá-tim-tum-tum-tum-pá-tá, chega ao ouvido da criança que acaba de nascer, e antes de falar 'mamãe', todo mundo já sabe fazer ijexá [ritmo de origem africana bastante presente na Bahia]", diverte-se Antônio Carlos.>
Criado no bairro Cosme de Farias, Jocafi lembra de outra influência comum aos dois parceiros: o rádio.>
"Meu pai era um garçom do município de Bonfim, mas conseguiu juntar dinheiro para comprar um aparelho de rádio", diz.>
"A Rádio Nacional foi a grande mentora de todos os compositores de nossa geração.">
Outra presença constante nos anos 1950 nas ruas de Salvador e de outras cidades brasileiras eram os serviços de alto-falante, que transmitiam músicas, notícias e recados.>
"Quando a gente estava jogando bola na rua, ouvia [pelos alto-falantes] todos os cantores e compositores famosos da época, como Luiz Gonzaga e Waldick Soriano, e também música erudita, Bach, Beethoven, Ravel...", afirma Antônio Carlos.>
"A plebe rude não tinha rádio, que era caro, mas tinha alto-falante", comenta Jocafi.>
Quando foi apresentado a Jocafi, Antônio Carlos já tinha participado, como cantor e compositor, de festivais na Bahia e do 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, em São Paulo.>
A canção selecionada para este festival, Festa no Terreiro de Alaketu, foi interpretada no evento por Maria Creuza.>
No ano seguinte, a cantora e Antônio Carlos uniram-se em um casamento de quase duas décadas que deixou três filhos e um legado inestimável para a música brasileira por meio de discos, shows e turnês juntos.>
Aos 81 anos, baiana de Esplanada e hoje radicada na Argentina, Maria Creuza é uma das maiores cantoras do Brasil, com repertório que inclui títulos de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Lupicínio Rodrigues, Nelson Cavaquinho, Chico Buarque e Roberto Carlos, entre outros.>
Jocafi conta que era fã de Antônio Carlos desde o festival de 1967. >
Quem apresentou a dupla foi o pianista e compositor Carlos Lacerda (nenhum parentesco com o homônimo ex-governador do então Estado da Guanabara).>
A oportunidade de parceria surgiu, porém, somente em 1968, por intermédio do poeta Ildásio Tavares, com quem ambos já tinham trabalhado.>
"Jocafi tinha a música do que viria a ser Catendê e queria que Ildásio colocasse letra. Acabou que fomos lá para casa e aconteceram Catendê, Mercado Modelo e outras", diz Antônio Carlos.>
A primeira composição da dupla, Catendê, tinha dois coautores: Ildásio e Onias Camardelli.>
Em 1969, Catendê foi selecionada para o 5º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, registrada como composição apenas de Jocafi, Ildásio Tavares e Onias Camardelli — segundo Antônio Carlos, na época "era feio quatro parceiros assinarem uma música".>
A fim de acompanhar os intérpretes Maria Creuza e Ruy Felipe à final do festival, a futura dupla viajou para São Paulo.>
"Ildásio Tavares era filho de fazendeiro, e Jocafi e eu, filhos de pobre. Ele pediu à mãe que nos emprestasse 1 milhão de cruzeiros para a viagem. Gastamos 500 mil nas passagens e ficamos com 500 mil para passar o resto da vida", brinca Antônio Carlos.>
Catendê acabou desclassificada por já ter concorrido em um festival regional.>
Depois de alguns meses na capital paulista, transferiram-se para o Rio de Janeiro.>
Ao ouvir Maria Creuza interpretar Mirante, de Aldir Blanc e César Costa Filho, no 2º Festival Universitário de Música Popular Brasileira, realizado pela TV Tupi, Vinicius de Moraes insistiu em conhecer a cantora.>
Em seguida, foi a vez de Creuza apresentar Antônio Carlos e Jocafi ao poeta.>
Em uma tarde de sábado, quando os três preparavam-se para ir à casa de Vinicius no bairro da Gávea, o telefone tocou.>
"Naquele tempo, usava-se telegrama da Western [telegrama fonado da companhia Western Union]. Eu atendi, e o cara falou assim: 'Sua mãe morreu. O enterro é amanhã'", lembra Antônio Carlos.>
Consternados, Creuza e Jocafi quiseram cancelar o compromisso, mas Antônio Carlos se recusou a fazê-lo.>
"A fortuna da minha mãe era que eu fosse cantor. Na última vez que ela me viu cantar na TV Itapoan, me disse: 'Meu filho, você cantou como um artista do Rio'.">
Na casa de Vinicius, o trio encontrou, além do poeta, os compositores Tom Jobim e Dori Caymmi e o jornalista Nelson Motta, que mantinha uma coluna diária na TV Globo, exibida antes do Jornal Nacional.>
"Na segunda-feira, Nelsinho Motta disse assim: 'Olha, eu estive na casa de Vinicius no sábado e conheci uma dupla de baianos chamada Antônio Carlos & Jocafi. Se eu fosse produtor, contrataria eles logo antes de todo mundo'", recorda-se Jocafi.>
Em poucas semanas, com a intermediação do produtor Rildo Hora, a dupla assinou contrato com a gravadora RCA Victor.>
Na época, era de praxe que artistas estreantes lançassem um ou dois compactos (discos menores, com apenas duas faixas, uma de cada lado) antes de produzir um álbum.>
O primeiro compacto de Antônio Carlos & Jocafi pela RCA tinha um rock, Roberto, Não Corra, e Por Causa Dela.>
A primeira faixa era uma sátira a Roberto Carlos, que acabara de lançar As Curvas da Estrada de Santos.>
"Ele [Roberto Carlos] é gente fina, mas não perdoa a gente até hoje", diverte-se Jocafi.>
O apresentador Silvio Santos (1930-2024), que na época comandava um programa de auditório dominical na TV Globo, convidou-os para uma participação.>
Amigos da dupla que trabalhavam na emissora alertaram que a real intenção do apresentador seria ridicularizá-los, em uma espécie de desagravo a Roberto Carlos.>
"Silvio Santos queria acabar com a gente", deduz Antônio Carlos.>
Semanas antes, o músico, jornalista e jurado José Fernandes quebrara o compacto da dupla diante das câmeras.>
Fernandes tinha fama de rigoroso e não via com bons olhos a influência estrangeira, especialmente do rock e da guitarra elétrica, na música brasileira.>
"Dizia: 'Isso aí é um rock, é um rock!". Os caras tinham uma ideia errada, porque era um rock muito bem feito", ironiza Jocafi.>
A dupla compôs então uma canção satírica em forma de recado ao próprio Fernandes para ser apresentada antes de Roberto, Não Corra.>
"Fomos aplaudidos de pé pelo Zé mesmo", diz Antônio Carlos, rindo.>
A repercussão foi tão grande que o próprio diretor artístico da RCA Victor na época, Alfredo Corletto, viajou de São Paulo ao Rio para conhecer os baianos.>
Assim, surgiu em 1971 o primeiro álbum, Mudei de Ideia, que trazia Você Abusou, Kabaluere, Conceição da Praia, Deus o Salve e outras.>
Depois de uma turnê da dupla pela Europa, Maria Creuza alertou que Você Abusou fazia sucesso em uma versão francesa, Fais Comme L'oiseau ("Faça como o pássaro"), de Michel Fugain.>
A versão de Fugain chegou a ser adotada como hino semioficial do Partido Socialista Francês, do qual o cantor e compositor é simpatizante.>
O caso motivou uma ação judicial por plágio contra Fugain nos tribunais franceses.>
A dupla brasileira acabou obtendo ganho de causa, com ressarcimento financeiro e inserção de autoria em todos os registros da obra.>
"A RCA mobilizou advogados, e todo o dinheiro que iria para ele [Fugain] veio para nós", lembra. >
Mas Jocafi reconhece que Fugain é um "grande compositor" e fez uma letra "sensacional". Antônio Carlos afirma que a versão francesa é mais famosa que a da dupla soteropolitana.>
Até hoje, comentam os músicos, a maioria esmagadora do público na Europa crê que a canção foi composta por um francês.>
Em turnês internacionais, os baianos estão acostumados a ouvir o público cantar Você Abusou em francês ou espanhol — esta última na versão gravada por Celia Cruz.>
"Celia fez uma leitura mais próxima da guaracha cubana [gênero musical]", diz Jocafi.>
Mas, afinal, o que é que Você Abusou tem para calar tão fundo nos ouvidos e nas mentes de tantas audiências ao redor do mundo?>
Os dois fornecem uma resposta simples: a canção é um samba de roda, gênero musical ilustre nascido no Recôncavo Baiano e cultivado por Dorival Caymmi, João Gilberto, Gilberto Gil e Caetano Veloso, que pode ser ouvido em qualquer esquina de Salvador.>
"Enquanto eu venho do candomblé, Jocafi vem do samba de roda", explica Antônio Carlos.>
Com obra reconhecida no mundo inteiro e uma agenda de shows até hoje agitada, Antônio Carlos & Jocafi continuam sendo os mais célebres intérpretes de suas próprias canções.>
Ao longo dos anos, deixaram de lado outros instrumentos — Antônio Carlos já tocou baixo, e Jocafi, cavaquinho — para se concentrar no violão, mas assumiram novos papéis como arranjadores e produtores.>
Se parcerias tão longevas são raras no mundo da música, ainda mais insólitas são duplas que ultrapassem 50 anos de atividade.>
No caso de Antônio Carlos & Jocafi, porém, os dois garantem que a parceria não será interrompida enquanto viverem.>
"Eu não quero fazer nada sem ele", diz Antônio Carlos.>
"Quando falo 'esta música é minha', está sempre subentendido que é minha e de Jocafi.">
Isso não significa, porém, que não haja espaço para novas colaborações.>
Com modéstia, a dupla credita a mais recente fase — "a penúltima", brinca Antônio Carlos — de sua longa carreira a dois músicos da nova geração: Marcelo D2, que realizou em 2003 uma releitura de Kabaluere em Qual é?, e Russo Passapusso e a banda BaianaSystem, que se tornaram parceiros recorrentes.>
"Com Russo Passapusso, mudou totalmente a maneira de a gente compor. É o que eu sempre digo: tem de ter qualidade", explica Jocafi.>
Em 2019, o BaianaSystem lançou o álbum O Futuro Não Demora, fortemente marcado pela temática ambiental, tendo como carro-chefe Água — que tem a dupla entre os compositores.>
No ano seguinte, foi a vez de Miçanga, single da bandaque ganhou o Grammy Latino.>
Em 2022, Russo Passapusso, Antônio Carlos e Jocafi lançaram Alto da Maravilha, álbum premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).>
Em 2024, nasceu o álbum do BaianaSystem Batukerê, e este ano mais um single, Praia do Futuro.>
O próximo projeto da dupla é uma trilogia inspirada na obra de Jorge Amado, que já serviu de mote para o álbum Antônio Carlos & Jocafi cantam Jorge Amado (1996).>
No momento da conclusão desta reportagem, a BBC News Brasil enviou mensagem de texto para Antônio Carlos a fim de checar informações.>
"Estamos dentro do estúdio. Vou mandar para você a última música que gravei", respondeu o compositor.>
A faixa — na qual a dupla se junta a uma cantora de voz majestosa e límpida sobre uma base de violão, órgão, cordas, percussão e vocais — parece se equilibrar entre a sonoridade dolente dos primeiros trabalhos e a roupagem visceral da produção mais recente dos parceiros.>
O repórter transmite sua impressão e pergunta qual é o nome da canção e quem é a intérprete.>
"Essa música, Ingorossi, foi a primeira música que eu fiz na minha vida. Com ela que eu comecei tudo. Esse final eu fiz agora com Jocafi", explica Antônio Carlos em áudio.>
"Quem está cantando com a gente é Maria Creuza", complementa.>
"Ela gravou a primeira música minha e parece que vai gravar a última.">
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