Publicado em 7 de abril de 2025 às 16:38
Era um Brasil de cerca de 5 milhões de pessoas aquele de 190 anos atrás. Destas, apenas 6 mil tinham direito a voto — a elite era quem elegia deputados e senadores naquele excludente e censitário regime imperial.>
Em 7 de abril de 1835, pela primeira vez, o país elegia alguém como governante. Era a primeira vez, aliás, que o poder ficaria nas mãos não de um português, mas de alguém nascido em solo brasileiro. Tratava-se de um sacerdote católico chamado Diogo Antônio Feijó (1784-1843), padre paulista que havia construído uma sólida carreira política.>
Mas um governante eleito dentro de um regime monárquico? Pois é. Houve uma espécie de hiato entre os dois imperadores brasileiros, Pedro I e Pedro II. Tudo porque o primeiro abdicou do trono quando o herdeiro ainda era uma criança.>
Feijó se tornaria regente do império, assumindo o posto em 12 de outubro de 1835 até sua renúncia, em 19 de setembro de 1837.>
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Para entender como isso foi possível é preciso primeiro recordar o momento histórico em que aquele Brasil de poucos anos após a independência de Portugal vivia.>
Em 1831, Pedro I (1798-1834), o primeiro imperador do Brasil, deixou para trás o Brasil para lutar pela coroa portuguesa. Ficou seu filho homônimo como herdeiro. Mas Pedro II (1825-1891) era uma criança de apenas cinco anos.>
A renúncia abrupta do imperador fez com que a jovem nação brasileira experimentasse um período político turbulento. Como previa a Constituição de 1824, formou-se um governo provisório com três senadores: a chamada Regência Trina. Alguns meses depois, a Assembleia Geral Legislativa elegeu três outros nomes que formariam a Regência Trina Permanente.>
"Foi no susto", comenta à BBC News Brasil Paulo Rezzutti, biógrafo de diversas personalidades do período imperial e autor de, entre outros livro, 'D. Pedro II: A História Não Contada', cuja reedição revista e atualizada chegou às livrarias no mês passado. "A ideia de três governantes era para tentar equilibrar as forças políticas para conseguir um certo equilíbrio entre os grupos diferentes da sociedade.>
"O contexto era de incerteza, de riscos e de indefinição. A abdicação do Imperador Pedro I abriu a temporada de caça ao poder, aos recursos econômicos e financeiros nas províncias dos Império", diz à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).>
"A forma assumida pela regência foi resultado da reacomodação política e da concentração de poder decisório e de autoridade forte diante de uma realidade social em decomposição e que enfrentava rápidas transformações na dinâmica econômica, cultural e das relações internacionais", analisa o professor.>
"Era tripla para evitar uma usurpação do poder político. Os três regentes se controlavam mutuamente", explica à BBC News Brasil o cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.>
A ideia era que o triunvirato permanecesse no poder até que Pedro II se tornasse maior de idade. Mas o que se viu foi uma grave instabilidade que colocava em risco até mesmo a unidade territorial do país. De um lado, os cofres públicos enfrentavam escassez. De outro, revoltas pipocavam de norte a sul, geralmente insufladas por oligarquias regionais que queriam autonomia.>
"A questão central é que a abdicação, a eleição e o governo da regência permanente eram resultados de conflitos sociais e políticos que vinham desde a Independência e antagonizavam diferentes grupos de poder, especialmente os setores mais poderosos, associados ao tráfico de escravizados, ao açúcar e ao café, que haviam apoiado o governo de Pedro I, e os setores que, desde 1808, tinham aproveitado as condições abertas com a presença da corte portuguesa, com a abertura comercial e a inserção internacional da produção brasileira para incrementar seus negócios que estavam vinculados, em grande parte, ao mercado interno", contextualiza à BBC News Brasil a a historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, professora na Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Ideias em Confronto − Embates pelo Poder na Independência do Brasil.>
"As iniciativas governamentais mais expressivas do momento […] indicavam a elevação da temperatura política e social dos conflitos e da disputa pelo controle e a condução do Estado e das instâncias de governo nacional, provincial e local", comenta Martinez.>
Nesse contexto o padre Diogo Feijó foi apresentado como um nome de pulso firme que poderia ajudar a controlar os ânimos. A regência o nomeou Ministro da Justiça. Sua passagem pela pasta foi marcada por rigor e eficiência. Mas sua tendência liberal e, em alguns momentos, flertando com o abolicionismo, fez com que ele não tivesse apoio dos aristocratas que eram a maior parte dos deputados.>
Em julho de 1832, logo após completar um ano no cargo, Feijó apresentou carta de renúncia. Era mais um ingrediente para tumultuar o ambiente político.>
O pesquisador Rezzutti conta que o processo eleitoral era realizado em dois níveis. Os eleitores paroquiais escolhiam os eleitores provinciais. E estes podiam votar para postos de relevância nacional — como deputados e senadores. E foi este o modelo seguido para a eleição do regente. "Para ser eleitor paroquial era preciso ter certos rendimentos. Para ser provincial, era preciso rendimentos ainda maiores", comenta.>
Apesar de ter sido, portanto, uma participação popular bastante elitista e limitada, é preciso ressaltar que foi um primeiro momento de uma certa "democracia" no Brasil que havia se tornado país independente 13 anos antes. >
"Houve uma eleição e isso foi um grande diferencial. Ainda que tenha sido muito restrita, foi de certa forma participativa. Foi o primeiro momento de participação eleitoral que não fosse para escolher somente os deputados", afirma à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador no Instituto Mackenzie.>
"Feijó era a encarnação do simbolismo histórico da monarquia portuguesa e da colonização iniciada no século XVI, a cruz e a coroa, a religião e a monarquia", sintetiza Martinez. "A legitimidade e a autoridade de ambas as instituições estavam ancoradas na fé e na crença da infalibilidade de seus dirigentes supremos, a vontade divina e a ação de seu representante: o monarca.">
"A eleição de Feijó partiu de um corpo eleitoral integrado por representantes das províncias, constituído com a finalidade de designar o futuro Regente. Era expressão das províncias mais afinadas com o projeto político de 1822 e autonomia do Brasil", completa o historiador.>
O nome de Feijó fazia sentido para aquele contexto político. "Os grupos que obrigaram Pedro I a abdicar estavam ligados a esses novos segmentos emergentes que queriam não só poder político, mas leis e apoio institucional para ampliar seus negócios dentro e fora do país. Feijó estava ligado a eles. Eram conhecidos como 'liberais moderados'", conta a historiadora Oliveira. "O problema é que essa sigla reunia gente de vários matizes e várias condições, entre eles cafeicultores e produtores de açúcar, assim como produtores de gêneros de abastecimento e gado, com ampla rede de contatos no interior do país.">
Ela lembra que, quando Ministro da Justiça, Feijó havia buscado atuar para "refrear conflitos armados, revoltas militares e manifestações populares que defendiam pautas como a descentralização do poder, a ampliação do poder dos governos locais, a ampliação do direito de cidadania, entre outras".>
A eleição foi em 7 de abril de 1835, mas a posse mesmo só ocorreria em 12 de outubro. >
"As datas nos remetem ao ciclo da formação do próprio Império: o 7 de abril, era o marco do novo começo, a abdicação de Pedro I; o 12 de outubro, a sua reafirmação, foi a data de aclamação do príncipe regente dom Pedro e, logo, Imperador do Brasil, em 1822. Significava: rei morto, rei posto. A continuidade da tradição política e a perpetuação da ordem social", analisa Martinez.>
Oliveira pontua ainda que essa demora entre eleição e posse indicavam que Feijó "estava indeciso", pois "conhecia os enormes obstáculos que seu governo enfrentaria".>
Seu curto governo foi marcado por uma intensa tentativa de garantir a unidade nacional. "Feijó havia se destacado como parlamentar e ministro da Justiça, mas sua regência foi bastante contestada e ele enfrentou oposições de antigos apoiadores", diz a historiadora.>
"Foram os últimos suspiros do reformismo de inspiração ilustrada, nascido no século XVIII, […] a tentativa de afirmação de um governo forte e seguro na condução das ações do Estado", diz Martinez. "Não por acaso, Feijó foi celebrado durante a ditadura do Estado Novo, no centenário de sua morte. A mensagem: depois de mim, o caos, o fim das reformas e a perpetuação da instabilidade política e da insegurança econômica.">
Rezzutti diz que Feijó "era muito autoritário" e tentou "colocar ordem na casa". "Com isso, criou muitos inimigos. Mas buscou fortalecer o poder central em um cenário de várias revoltas nas províncias", pontua.>
"Ele tentou sedimentar um Estado mais uno e coeso. O Estado que Pedro II recebeu quando assumiu o trono foi fruto dessa tentativa de unificação do Brasil em torno de um poder centralizado", analisa o biógrafo.>
"Seu governo foi marcado como uma tentativa de conter as rebeliões separatistas que eram contestatórias em relação à centralização do poder político", afirma Ramirez.>
Enquanto isso tudo acontecia, o menino Pedro II era uma figura simbólica e meramente decorativa, "sem poder decisório algum", como enfatiza o historiador Martinez. "Era apenas um símbolo ostentado pelos monarquistas, uma espécie de fundo de reserva político da dinastia, da centralização política e do próprio regime monárquico", prossegue. >
"Um elo entre o passado e o futuro, da perpetuação do escravismo, da concentração da terra e do mandonismo senhorial como pilares do Estado nacional e fundamentos da Nação. A promessa da origem e do vínculo com a civilização europeia nos trópicos.">
"Nessa época ele era uma peça de enfeite", resume o biógrafo Rezzutti. "Era um símbolo nacional e vinha sendo tratado como tal, mas sem nenhuma função executiva nem mesmo consultiva.">
Mas, evidentemente, ele recebia uma educação própria para em algum momento assumir o império. "Ele estava no gabinete de instrução e vinha sendo preparado para se tornar o futuro imperador", diz Missiato.>
Feijó teve uma infância difícil. Foi o que se costumava chamar de "enjeitado", ou seja, filho provavelmente tido em situação fora do casamento que acabou abandonado criança na casa de um padre. Este o batizou e o criou como padrinho.>
Acabou recebendo sólida formação e sendo ordenado ele também sacerdote. Foi professor de gramática e escreveu ele próprio um compêndio de gramática latina. Quando tinha 29 anos vivia em São Carlos, onde começava a ser bem-sucedido. Segundo registros do recenseamento da época, chegou a ter no município paulista uma propriedade rural com 13 escravizados que produziam açúcar, cachaça, milho, feijão e arroz.>
De lá, mudou-se para Itu onde, autorizado pelo bispo, dava aulas particulares de filosofia. Foi ali que ele começou a se imiscuir no meio político, passando a integrar a chamada junta eleitoral da cidade — que congregava os poucos e abastados eleitores.>
Seu primeiro cargo eletivo foi como deputado enviado às cortes gerais e extraordinárias de Lisboa, naquele Brasil ainda parte do Reino de Portugal.>
Após a Independência, foi deputado por São Paulo em duas legislaturas. Mais tarde seria também senador.>
Seus últimos anos de vida foram marcados por problemas de saúde. Ele teve um acidente vascular cerebral e acabou hemiplégico, chegando a usar com frequência uma cadeira de rodas.>
Quando ele tinha 59 anos e enfrentava uma crise nervosa, decidiu sair para caminhar, caiu e bateu a cabeça em uma pedra. No hospital, acabou morrendo de parada cardiorrespiratória em 10 de novembro de 1843.>
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