Publicado em 24 de dezembro de 2025 às 17:44
Há alguns anos, Muhammad Yaqoob Baloch e sua família quase abandonaram a casa onde viviam em Keti Bandar, no sul do Paquistão, depois que rios e poços secaram.>
Ficou difícil encontrar água para beber, e as colheitas passaram a fracassar repetidamente.>
"Pessoas de Nova Deli, de Mumbai e da China costumavam vir comprar nosso arroz, trigo e legumes", diz Baloch, que também é agricultor. "Mas mais de 50 mil hectares de nossas terras se tornaram improdutivas.">
Muitos moradores abandonaram as terras herdadas de suas famílias, e Baloch esteve prestes a fazer o mesmo até que o governo inaugurou uma usina de dessalinização e passou a produzir água potável a partir do mar da Arábia.>
>
>
Hoje, muitos dos que ainda vivem na região conseguem se sustentar com a criação de caranguejos em canais de irrigação, agora tomados por água salgada, enquanto continuam a cultivar o que é possível.>
O Paquistão é um dos vários países do mundo que ampliaram a dessalinização da água do mar, à medida que o aquecimento global torna a água doce cada vez mais escassa.>
>
Até pouco tempo atrás, a prática se restringia, em grande parte, a países ricos e áridos do Oriente Médio, mas o aquecimento global mudou esse cenário.>
Segundo a Global Water Intelligence (GWI), empresa que fornece análises de mercado para o setor de água, cerca de quatro em cada cinco países (80%) hoje produzem água do mar dessalinizada para consumo humano e outros fins, e o número só aumenta.>
Segundo o levantamento, o Brasil registrou um aumento de 189% na quantidade de água do mar dessalinizada entre 2010 e 2025, chegando a 1,4 bilhão de litros por dia.>
Entre as iniciativas em operação no país está uma planta no Espírito Santo, erguida por uma siderúrgica que usa a água dessalinizada em seu processo industrial. >
Há projetos em andamento para construção de usinas de dessalinização no litoral de São Paulo, em Ilhabela, e na capital do Ceará, Fortaleza, ambas para consumo humano da água dessalinizada. >
Nesse último caso, ideia que causou polêmica em 2023 por causa do local então escolhido para a obra, muito próximo dos cabos submarinos que conectam o Brasil com o resto do mundo e compõem a rede de internet do país. >
Diante da repercussão negativa entre especialistas e empresas de telecomunicações, o governo cearense mudou o local do empreendimento.>
Em países como Kuwait, Omã e Arábia Saudita, mais de 80% do abastecimento de água agora vêm da dessalinização, seja da água do mar, seja de fontes subterrâneas de água salobra — aquela que tem mais sais dissolvidos do que a água doce, mas menos do que a água do mar.>
Durante o recente ataque de Israel e dos Estados Unidos às instalações nucleares do Irã, autoridades do Catar expressaram preocupação com a possibilidade de contaminação do Golfo, que hoje é a principal fonte de água do Catar, dos Emirados Árabes Unidos e do Kuwait.>
Aqui está o problema. Quase dois terços (67%) da superfície do planeta são cobertos por água. No entanto, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), apenas 0,5% desse total é água doce utilizável, e mesmo essa parcela vem diminuindo rapidamente por causa do aumento das temperaturas e das secas.>
Em relatório divulgado em 2023, a Comissão Global sobre a Economia da Água alertou que pode haver um déficit de 40% na oferta até 2030, enquanto a população mundial deve chegar a 9,7 bilhões em 2050.>
Corrupção e má gestão dos recursos hídricos também contribuíram para a escassez aguda de água em muitos países.>
Como os oceanos concentram mais de 95% da água do mundo, muitos defendem que a água do mar seja uma possível resposta, embora sua participação no uso global total de água ainda seja bastante limitada.>
Usinas de dessalinização surgiram em mais de 20 mil locais ao redor do mundo, quase o dobro do registrado há dez anos, segundo estudos.>
"O mercado de dessalinização deve acelerar o crescimento nos próximos cinco anos, impulsionado principalmente pelo Oriente Médio e Norte da África, pela Ásia-Pacífico e por alguns países da Europa", afirma Estelle Brachlianoff, CEO da Veolia, uma das principais empresas internacionais de água com atuação na área de dessalinização.>
Dados reunidos pela GWI mostram que cerca de 160 países já têm usinas de dessalinização que tratam água do mar.>
Em média, 60% da água produzida é destinada ao abastecimento público de água potável, segundo a entidade.>
"A dessalinização já está ajudando muitos países a lidar com o estresse hídrico crônico", diz Rachael McDonnell, diretora-geral adjunta do Instituto Internacional de Gerenciamento de Água (IWMI, na sigla em inglês), organização de pesquisa dedicada à segurança hídrica.>
"Embora a dessalinização não seja uma solução milagrosa para todas as regiões propensas à seca, ela já desempenha um papel fundamental ao ajudar muitos países a reforçar sua segurança hídrica diante da estiagem e do aumento da demanda.">
>
A GWI estima que o setor cresce a uma taxa superior a 10% ao ano.>
Segundo a organização, nos últimos 15 anos a produção de água potável dessalinizada aumentou de forma significativa em mais de 60 países, em todas as regiões do mundo.>
O levantamento mostra que, enquanto muitos deles registraram aumentos de duas, três ou até quatro vezes — Singapura, por exemplo, teve crescimento de 467% —, outros tiveram uma expansão ainda mais expressiva, de 10 a 50 vezes.>
A Arábia Saudita é o país que mais produz água do mar dessalinizada: 13 bilhões de litros por dia — volume suficiente para encher 5.200 piscinas olímpicas, segundo a GWI.>
Bangladesh, Índia e Paquistão usam a tecnologia de dessalinização não apenas para a água do mar, mas também para tratar água salobra em áreas onde o avanço do mar contaminou a água subterrânea.>
Já o Afeganistão emprega a técnica para dessalinizar águas subterrâneas que são salobras por outras razões.>
A dessalinização é feita principalmente de duas maneiras.>
A primeira, mais comum e energeticamente mais eficiente, é a osmose reversa, que consiste em aplicar pressão para forçar a passagem da água por uma membrana semipermeável, que retém o sal e outras substâncias químicas.>
O segundo método é a dessalinização térmica. Nesse processo, a água do mar ou a água salobra é aquecida; em seguida, ela evapora, e o vapor condensado é recolhido como água doce.>
Tradicionalmente, a dessalinização é uma tecnologia cara, mas o uso de fontes renováveis de energia mais baratas e o aumento da eficiência reduziram os custos nos últimos anos.>
Segundo especialistas, o custo de produção da água dessalinizada caiu até 90% desde 1970.>
Pesquisa do IWMI aponta que a combinação da dessalinização com energia solar pode torná-la ainda mais viável economicamente até 2040 em muitas áreas costeiras.>
Ainda assim, uma grande usina de dessalinização com capacidade para produzir 500 milhões de litros de água por dia exige um investimento de cerca de US$ 500 milhões (aproximadamente R$ 2,7 bilhões), de acordo com a Veolia.>
Outro custo relevante é o transporte da água do mar dessalinizada para regiões secas no interior.>
"Nos países em desenvolvimento, os custos continuam sendo um obstáculo", afirma Shakeel Hayat, especialista em mudanças climáticas, água, saneamento e higiene da WaterAid, organização internacional que ajudou a instalar cerca de 100 pequenas usinas de dessalinização no Sul da Ásia.>
"Para muitos [desses] países, usinas de pequeno porte e movidas a energia solar, voltadas à transformação de água salobra em água potável, são mais viáveis do que grandes projetos de dessalinização da água do mar.">
Um dos maiores desafios do processo de dessalinização é o descarte da salmoura — a água altamente concentrada em sal que sobra após a retirada da água potável.>
O despejo dessa salmoura de volta ao mar aumenta a salinidade e a temperatura da água e pode afetar gravemente os ecossistemas marinhos, chegando a criar zonas mortas ao redor dos pontos de liberação.>
"Na maioria dos processos de dessalinização, para cada 1 litro de água potável produzido, são gerados cerca de 1,5 litro de líquido poluído com cloro e cobre", afirmou o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).>
"Se não for devidamente diluída e dispersa, essa descarga pode formar uma pluma densa de salmoura tóxica, capaz de degradar ecossistemas costeiros e marinhos.">
Cientistas já mediram efeitos negativos significativos sobre corais e algas no Golfo de Aqaba, que separa o Egito da Arábia Saudita.>
Apesar desse custo ambiental, a expansão da dessalinização não parece perder força em quase todas as regiões de um mundo que aquece rapidamente e enfrenta escassez crescente de água.>
*Com reportagem de Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil. >
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta