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Camila Rocha: 'Esquerda avançou em temas sensíveis aos conservadores'

Camila Rocha: "Esquerda avançou em temas sensíveis aos conservadores"

Pesquisadora da USP explica que o surgimento da nova direita se deu a partir da combinação do radicalismo pró-mercado e da ideia de combate a uma suposta hegemonia cultural da esquerda

Publicado em 2 de março de 2019 às 23:21

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(LEO MARTINS/Agência Estado)

Um fenômeno que teve início há mais de dez anos, por muito tempo ignorado pelas instituições tradicionais e que se tornou mais evidente somente com o início do processo eleitoral de 2018, a nova direita é um movimento social e político que hoje já ocupa importantes espaços de poder.

Combinando o radicalismo pró-mercado com a ideia de combate a uma suposta hegemonia cultural da esquerda, a nova direita também tem grande responsabilidade no aumento da musculatura política de Jair Bolsonaro (PSL) e sua chegada à Presidência, embora ainda sejam poucos partidos orgânicos identificados nesta linha – por enquanto, o PSL, o PSC e o Novo.

Essa foi a conclusão da pesquisadora Camila Rocha, de 34 anos, em sua tese de doutorado em Ciência Política, apresentada há um mês na Universidade de São Paulo (USP), e que vai virar livro ainda este ano. Intitulado “Menos Marx, mais Mises: Uma gênese da nova direita brasileira”, o trabalho de análise, que durou quatro anos, mostra os fatores que possibilitaram o empoderamento do discurso conservador e liberal, e o fez ganhar ecos na sociedade.

A senhora estuda o surgimento da nova direita brasileira. Quando ela começou a se formar?

O que eu chamo de nova direita começou a se formar em 2006, por meio de várias pessoas que começaram a participar de fóruns digitais, redes sociais, na época principalmente no Orkut e em blogs. Também começaram a fundar uma série de novas organizações da sociedade civil: o Instituto Mises Brasil, organizações do tipo Estudantes pela Liberdade, Ordem Livre, o próprio Movimento Brasil Livre, de 2013, têm ligação com esse pessoal. A maioria também lia a obra do Olavo de Carvalho (escritor direitista) ou os sites que ele mantinha e divulgava as ideias dele. São pessoas que começaram a se organizar, fazer protestos de rua, principalmente em relação a essas pautas pró-mercado. Esse pessoal é muito mais radical em relação à privatização de empresas e de bens públicos do que a direita tradicional, do que a direita que atuava no Brasil desde a redemocratização até a metade dos anos 2000, que aderiu ao neoliberalismo.

O que deu o “empurrão decisivo” para que ela começasse a se manifestar?

Outro elemento novo que eles trouxeram foi um combate a uma suposta hegemonia cultural da esquerda, ideia contida nas obras do Olavo de Carvalho (escritor, conhecido como “guru” de Bolsonaro), e que veio se difundindo. Uma hegemonia nas universidades, nas editoras, em ONGs, até mesmo no jornalismo tradicional, de que a maioria dos jornalistas tradicionais seria de esquerda e que também seria responsável por uma penetração de certas pautas ligadas a direitos humanos, feminismo, do movimento negro, indígena. Pautas que estariam sendo difundidas na sociedade civil e que seria preciso combatê-las. Nessa mesma época, houve o escândalo do mensalão, que foi fundamental para que esse movimento da nova direta pudesse agregar cada vez mais pessoas, já que gerou muita indignação, inclusive em pessoas que haviam votado no Lula. Várias dessas pessoas começaram a acompanhar na internet a formação dessa nova direita e começaram a aderir a algumas ideias, a se tornar militantes.

Como ficou a “antiga direita” nesse processo e quais elementos ela agregou para a nova?

É possível dizer que a direita era representada partidariamente pelo PFL, que depois se tornou o Democratas, e que defendia o neoliberalismo na economia e era razoavelmente conservador em relação a pautas morais. Mas até a metade dos anos 2000, não houve um grande enfrentamento em relação a essas pautas. Foi a partir do segundo governo Lula que a esquerda começou a ter avanços em relação a esses temas, que deixaram os conservadores receosos. Por exemplo: em 2006, teve a Lei Maria da Penha; em 2009, a demarcação das terras indígenas da reserva Raposa Serra do Sol (Roraima); em 2011, teve a Marcha das Vadias, a Comissão Nacional da Verdade, o reconhecimento civil da união homoafetiva; em 2012, as cotas raciais; em 2013, a PEC das Domésticas. A esquerda foi tendo vários avanços em temas que eram sensíveis para quem era conservador. Então, a direita começou a reagir. A “nova direita” tem laços com a “velha direita”. Tanto que vários personagens da nova direita, como Fernando Holiday, do MBL, foram eleitos pelo DEM. O Instituto Millenium também foi fundado por duas lideranças ultraliberais, Hélio Beltrão e Rodrigo Constantino. Há tensões e laços importantes. Mas a nova direita é muito mais radical.

Por que ela é mais radical?

Principalmente por esse movimento de reação aos avanços da esquerda, a continuidade do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder por muitos anos, e pelo sentimento de falta de representatividade em relação a partidos e a políticos tradicionais. Os militantes sentiam que o sistema não representaria seus anseios e pautas, o que também levou a uma certa radicalização, como se fosse: “esse pessoal está muito moderado”. Lula terminou o governo com aprovação recorde, então havia uma percepção de que a oposição era fraca, ou até inexistente no Brasil. Seria necessária uma radicalização para que o sistema político se renovasse. E há a questão geracional, pois em sua maioria, os militantes da nova direita são mais jovens, de 18 a 40 anos. É um pessoal que foi influenciado por uso criativo na internet de memes, piadas, valorização do indivíduos. Ecos do maio de 68, mas pela direita, o que traz uma espécie de radicalidade na forma e na linguagem com que eles se expressam.

Qual é o papel da nova direita para eleger Jair Bolsonaro (PSL)?

Há dois fenômenos diferentes que se cruzaram: a formação da nova direita e o “bolsonarismo”. Este segundo surge em 2014. Jair Bolsonaro já era uma liderança conhecida dessa militância da nova direita, mas até 2010 ele tinha um patamar de votação de 100 mil votos e era um político do baixo clero do Congresso. No mandato de 2011 a 2014, ele começa a defender pautas mais ideológicas, em comparação a suas antigas pautas, do militarismo, e começa a ter mais visibilidade. Ele consegue surfar nesse sentimento de indignação em relação ao PT e aos avanços da esquerda, ficou conhecido e, em 2014, foi o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro, passando a figurar como um político proeminente de direita. A militância da nova direita, que já existia, identificou nele alguém que pudesse ser o candidato a presidente, apoiando-o desde essa época. A campanha pró-impeachment, iniciada em novembro de 2014, foi muito importante para isso, reunindo toda a nova direita. Os dois movimentos passaram a caminhar juntos, até que na eleição de 2018 a família Bolsonaro chegou ao poder e a nova direita conseguiu eleger a maioria de suas lideranças para cargos legislativos. Os partidos orgânicos da nova direita são o PSC, PSL e o Novo. Também foram eleitos governadores desses partidos em vários Estados.

Os apoiadores de Bolsonaro, tanto na campanha eleitoral quanto na composição do governo, podem ser divididos em “alas”: a “Lavajatista”, a econômica, a militar e a conservadora. Agora no poder, elas podem entrar em colisão?

Existem muitas tensões entre esses diferentes grupos e, por enquanto, nesses primeiros dois meses, há um esforço para acomodá-los, mas aparentemente tem fracassado na maioria das vezes. A despeito disso, é possível que eles consigam encontrar uma forma de convergir, pois o governo ainda está sendo montado. O Gustavo Bebianno (ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência) acabou de sair, então há uma dança das cadeiras. Até se estabilizar razoavelmente, essas tensões vão continuar. Mas eles podem conseguir um mínimo de coesão para governar e se acomodar na estrutura do Estado, inclusive pensando na aprovação das pautas importantes que defendem. Um exemplo disso é que, ao que tudo indica, deve ser aprovada uma reforma razoavelmente radical.

No Congresso, a pauta conservadora nos costumes tem mais simpatizantes e uma base mais fiel ao novo governo do que a econômica?

É possível que a maior parte dos eleitores de Bolsonaro apoiem o conservadorismo e tenham a postura reativa aos avanços da esquerda. Considerando que entre o eleitorado evangélico, 71% declarava voto em Bolsonaro. Se os evangélicos são 1/3 da população e boa parte deles é conservadora, existe uma demanda desse segmento por representação na política. Já as políticas pró-mercado mais radicais ainda não têm muita representatividade em grandes fatias da população. Tem técnicos, economistas, acadêmicos que defendem, mas são intelectuais, sem tanta correspondência na sociedade.

Apesar do apoio popular, as pautas conservadoras devem ficar para um momento mais à frente?

Na Ciência Política, observa-se que geralmente no primeiro ano dos governos é o ano em que se aprova as medidas mais impopulares, e as com mais apelo, deixa-se para os anos finais. É possível que seja assim. Aproveita-se que as pessoas ainda estão entusiasmadas com o governo atual e tenta-se aprovar as medidas duras. O que não quer dizer que mais para a frente não vão tentar aprovar leis e políticas reativas a esses avanços progressistas e de esquerda.

O crescimento da nova direita e a chegada dela ao poder vão fazer com que partidos se tornem mais ideológicos?

Existe um esforço nesse sentido, de ideólogos e militantes da nova direita, de influenciar os partidos a defender pautas mais ideológicas, terem programas mais definidos. O movimento de recriar a UDN pode manifestar isso. Os mais ideólogos querem migrar, pois percebem que não têm muito espaço para atuar na sigla, porque os políticos de lá não se pautam por ideologias específicas. O próprio Bolsonaro teria saído do PSC também por razão ideológica, porque o partido teria feito alianças com partidos como o PCdoB.

Nos Estados Unidos, o conservadorismo é organizado intelectualmente e partidariamente, ao contrário do Brasil. Estamos engatinhando para isso?

O próprio Olavo de Carvalho tem grande responsabilidade nisso, pois atuou para que vários intelectuais conservadores norte-americanos fossem publicados no Brasil por editoras, ajudou a difundir essas ideias aqui. Internacionalmente, a direita tem feito um esforço para tentar se coordenar, produzir um discurso parecido. Agora, ganhou um aliado de peso com Bolsonaro. Aqui, o PSL, PSC e talvez essa nova UDN dizem se inspirar no Partido Republicano dos EUA. Então existe inspiração, influência intelectual importante e tendência de formar alianças internacionais.

A segurança pública é um problema há décadas. Por que a nova direita conseguiu se apropriar desse nicho?

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Já é razoavelmente antigo, no Brasil, o discurso mais punitivista, de “direitos humanos para humanos direitos”, pedir a redução da maioridade penal, entender que uma repressão maior à criminalidade vai solucionar o problema. Na era Lulista, a criminalidade se alastrou para cidades menores e outras capitais. Antes o tráfico e as facções criminosas estavam mais nas cidades maiores, como São Paulo e Rio. Esse discurso punitivista começou a ganhar mais adeptos, porque oferece uma resposta mais imediata ao problema: encarcera mais pessoas, constrói mais presídios, dá uma liberdade maior à polícia e até armar as pessoas comuns. O discurso foi crescendo à medida em que a criminalidade também aumentou. Provavelmente o Bolsonaro dos anos 90 já defendia essas medidas para a segurança pública.

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