Túmulo da Cigana no cemitério Santo Antônio
Túmulo da Cigana no cemitério Santo Antônio . Crédito: Carlos Alberto Silva

Professor dá aula em cemitério para explicar desigualdade social

Antônio Alves de Almeida explica que o Cemitério Municipal de Santo Antônio, em Vitória, referenciado por ele como "cidade dos mortos", foi dividido em seis partes. A divisão mostra as desigualdades e preconceitos presentes na "cidade dos vivos"

Publicado em 02/11/2019 às 18h25

Início da manhã, o professor chega à sala de aula e pede que os alunos arrumem as coisas para uma aula de campo: “Vamos todos para o cemitério!”, diz, em voz alta. Logo, alguns estudantes arregalam os olhos e não disfarçam o espanto. Já outros se mostram animados. Diante da proposta, são muitas as dúvidas sobre o porquê da visita ao local onde descansam os que já partiram.

A aula é do professor universitário Antônio Alves de Almeida, que na disciplina de Humanidades quer ajudar seus alunos a compreender as relações sociais dos vivos a partir dos mortos, a explicar a cultura e também a analisar as desigualdades sociais. Para isso, o local escolhido foi o Cemitério Municipal de Santo Antônio, em Vitória. Para ele, os cemitérios são objetos de estudos para além da história. São também reflexo do comportamento das pessoas que vivem ao seu redor.

Antônio Alves de Almeida

Professor universitário

"O cemitério é a 'cidade dos mortos' construída pelos vivos e sempre vai representar, vai ser o espelho, da cidade dos vivos. Por exemplo: Se o cemitério é bem cuidado, limpo e organizado, normalmente a cidade também é. Se você vir um cemitério com muitos símbolos cristãos ou muito símbolos muçulmanos você vai ver que a cultura do entorno, a religião, é também assim"

DIVISÃO DO CEMITÉRIO

Segundo o professor, o cemitério reflete a sociedade: mostra as desigualdades o preconceito, a discriminação e as diferenças de classes sociais. Um exemplo claro dessa análise é o Cemitério Municipal de Santo Antônio. O local é dividido em seis planos e cada plano possui um valor diferente a depender da localização do túmulo. Para ser enterrado no primeiro plano, local das belas sepulturas de mármore, seu familiar terá que desembolsar R$ 1.558,46. Já o sexto e último plano custa R$ 268,93.

"No primeiro plano ficam os túmulos opulentos, feitos com mármore carrara. Se você for se distanciando do Centro da cidade, assim como o Centro de Vitória, que tem prédios maravilhosos, você vai se distanciando para um segundo plano, que já é uma classe média. Os túmulos já não são mais tão opulentos. Você vai para o terceiro e quarto planos e lá estão sepultados realmente pessoas que vivem na periferia de Vitória. Ou seja, os túmulos da periferia desta cidade são semelhantes às casas da periferia. Aqui é realmente um espelho dos vivos", afirmou Antônio.

RELIGIÃO E PRECONCEITO

Outro exemplo da divisão do Cemitério de Santo Antônio é a parte da religião, que revela as crenças de cada território e o preconceito presente nas nomenclaturas que existem nas falas dos visitantes. 

Antônio Alves de Almeida

Professor universitário

"Aqui tem o cruzeiro neste cemitério chamado “Cruzeiro do Mal”. Qual é a cor dele? Preta. E tem outro espaço que já é no Centro da cidade, no espaço dessa cidade dos mortos, que é o “Cruzeiro do Bem”. Aí a cor já é branca. No primeiro citado, a religião predominante é o Cristianismo. No segundo citado, predominam as religiões de matriz africana"

“ESTAMOS APAGANDO NOSSA HISTÓRIA”

Antônio Alves destaca que outra coisa interessante a ser observada nos cemitérios. É a compreensão do passado no estudo dos túmulos com seus símbolos e arquitetura. O Cemitério Municipal de Santo Antônio, por exemplo, possui jazigos do final do século XIX que fazem parte da cultura material e imaterial.

Mas diante das transformações da pós-modernidade, ele alerta que nos próximos anos esse estudo poderá não ser mais possível. Isso porque as novas covas são feitas na terra e recebem apenas grama em seu entorno e uma lápide que indica quem ali está enterrado. Nesta forma de sepultamento não é apresentada nenhuma informação se comparar aos antigos cemitérios, ou seja, é um método que apaga a história

“Quando você não investe financeiramente em um túmulo e você não torna público que é seu, você acaba se fechando e ficando individualista. O individualismo é uma marca forte da pós-modernidade. Então até na morte está se refletindo. É importante que ninguém saiba quem foi a sua família, quais são os seus valores religiosos, suas crenças e os seus símbolos”, explicou Antônio.

ENTREVISTA

Por que é importante conhecer e estudar o cemitério?

Primeiro é importante dizer que o cemitério é uma cidade dos mortos construída pelos vivos, e essa cidade, o cemitério, sempre vai representar, vai ser o espelho da cidade dos vivos. Por exemplo: se o cemitério tem ruas largas, é arborizado, e normalmente a cidade também. Se o cemitério é bem cuidado, limpo e organizado, normalmente a cidade também é. Se você ver um cemitério, por exemplo, com muitos símbolos cristãos ou muito símbolos muçulmanos você vai ver que a cultura do entorno, a religião, é também assim. Então o olhar da antropologia, da sociologia, da história, da psicologia social nos faz compreender muito os vivos a partir dos mortos.

O que se percebe na "cidade dos mortos" se a compararmos com a "cidade dos vivos"?

E aqui também se percebe nessa cidade que tem desigualdades sociais, como tem a cidade dos vivos. Por exemplo: no cemitério de Santo Antônio, aqui onde estamos, ficam os túmulos opulentos. São túmulos de famílias com alto poder aquisitivo. Existe mármore carrara nesse espaço. Se você for se distanciando do centro, assim como Centro de Vitória, que tem prédios maravilhosos, você vai se distanciando para um segundo plano que está à minha esquerda, onde ficam os de classe média. Os túmulos já não são mais tão opulentos, assim como as casas da cidade de Vitória. Aí você vai para o terceiro e quarto planos, onde estão sepultadas pessoas que vivem na periferia da Grande Vitória. Ou seja, os túmulos da periferia dessa cidade são semelhantes às casas da periferia da Grande Vitória. Aqui é um reflexo, é realmente um espelho dos vivos. Vamos dar um exemplo: aqui tem o cruzeiro neste cemitério chamado “Cruzeiro do mal”. Qual é a cor dele? Preta. E tem outro espaço que já é no centro da cidade, no espaço da Elite desta cidade dos mortos, que é o “Cruzeiro do bem”, qual é a cor? Branca.  Então nós estudamos os mortos sim, mas para compreendermos os vivos e ajudamos os vivos a serem pessoas melhores do que já são.

Como são as aulas no cemitério?

Eu ministro aulas no cemitério já há alguns anos. Na Europa isso já se faz há muito tempo. Lá em São Paulo eu levei meus alunos ao cemitério, e eles visitaram o túmulo do Monteiro Lobato, da Marquesa de Santos, muito lindos, de Victor Brecheret. E aqui também eu trouxe meus alunos ao cemitério de Santo Antônio e eles adoraram as aulas, porque desmistificamos o cemitério. Fui explicando túmulo por túmulo. Aqui nós temos túmulos de pessoas que fazem milagres. Na verdade, nós não discutimos se o milagre acontece ou não. O importante é entender por que as pessoas acreditam que uma cigana pode fazer milagres. Por que as pessoas acreditam que uma criança que morreu supostamente num acidente pode fazer milagre? Estamos estudando a religiosidade, as crenças, os valores dos vivos, e os alunos foram passando aqui, vendo cada túmulo, vendo as desigualdades sociais. Eles se encantaram e saíram maravilhados.

Como o senhor vê os novos cemitérios que não possui túmulos?

Infelizmente para nós historiadores, antropólogos, sociólogos, está acontecendo algo muito negativo. Os cemitérios agora estão ficando sem túmulo, somente estão colocando uma grama e nessa grama, nesse cemitério todo gramado, ali se identifica onde está enterrando a pessoa, e nesse apartamento nós temos praticamente informação nenhuma. Estão apagando a história até dos cemitérios.

Por que isso está acontecendo?

Na verdade isso faz parte de um projeto maior da pós-modernidade. Na pós-modernidade a ideia é que se apague a história e também tem a questão de customização. Quando você não investe financeiramente em um túmulo e você não torna público que é seu, você acaba se fechando e ficando individualista. O individualismo uma marca forte da pós-modernidade. Então até na morte está se refletindo. É importante que ninguém saiba quem foi a sua família quais são os seus valores religiosos suas crenças e os seus símbolos.

Quais os túmulos mais famosos do cemitério de Santo Antônio?

Esse é um dos mais belos que eu já vi porque tem muita história e os túmulos são fantásticos. Os túmulos que mais despertam a atenção, como não poderia ser diferente, são o túmulos da Elite, do Centro dessa ‘cidade dos mortos”. E aqui nós temos, por exemplo, o túmulo do Marinheiro. É um túmulo que desperta curiosidade porque os marinheiros não entraram muito na história. Um outro é o de uma cigana. Veja, os ciganos são nômades, as pessoas têm preconceito, senso comum, e dizem que os ciganos roubam criança, roubam seu dinheiro. Já aqui, por incrível que pareça, o túmulo da cigana é bastante visitado. O túmulo da cigana é o túmulo de todo mundo e as pessoas acreditam que ela faça milagres. Tem inúmeras oferendas, como garrafa de champanhe, fotografias, moedas e dinheiro em papel. É um túmulo riquíssimo para conhecer. Um outro túmulo, também importante, é o de uma criança que morreu supostamente em um acidente e essa criança também faria milagres. Eu mesmo já vim várias vezes a este cemitério e vi uma pessoa, em oração, pedindo para que Deus operasse milagre na vida dela, e pedindo isso à criança que estava sepultada.

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