Tatuagem não é não
Tatuagem não é não. Crédito: Ricardo Medeiros

Mulheres do ES contam como romperam com o ciclo da violência

Elas descobriram ser possível dar uma basta em todo tipo de violência, seja patrimonial, moral, psicológica, sexual ou física

Tempo de leitura: 7min
Publicado em 01/01/2020 às 05h59
Atualizado em 17/04/2020 às 11h51

A professora e cantora Rayanne Carrara, de 26 anos, entrou num relacionamento há dois anos compartilhando com o companheiro a mesma paixão: a música. Toda vez que ela falava sobre o assunto, entretanto, o até então namorado gostava de demonstrar que tinha conhecimento superior ao dela, não dava crédito ao que ela dizia, chegando ao ponto de ridicularizá-la entre os amigos. O fato fez com que a professora ficasse inibida, insegura, chegando ao ponto de ter vergonha de mostrar a própria opinião. 

A situação a machucava tanto que Rayanne procurou ajuda psicológica. Foi aí que ela descobriu estar num relacionamento abusivo. Tentando mudar o comportamento diante dele, começou a impor sua opinião, o que acarretou mais conflitos. O ápice das brigas foi durante uma discussão em que ele a empurrou no vidro da varanda, que estilhaçou todo no seu corpo. 

Após passar meses na terapia para conseguir entender toda aquela situação, e receber apoio dos amigos e familiares, ela decidiu romper com o ciclo da violência e a forma encontrada foi a separação. Assim como Rayanne, inúmeras mulheres descobriram ser possível dar uma basta na violência, seja ela patrimonial, moral, psicológica, sexual, seja física. A Gazeta foi em busca dessas histórias para a primeira reportagem do projeto Todas Elas.

Rayane é uma mulher que vivenciou um relacionamento abusivo, mas conseguiu romper com o ciclo da violência doméstica. Crédito: Ricardo Medeiros
Rayane é uma mulher que vivenciou um relacionamento abusivo, mas conseguiu romper com o ciclo da violência doméstica. Crédito: Ricardo Medeiros

Rayanne Carrara

Professora e cantora 

"Eu comecei a fazer terapia porque sentia que eu não conseguia ser eu mesma. Quando ele me jogou no vidro da varanda, eu decidi colocar um ponto final. Ele ainda me procurou pedindo perdão, mas sempre dizia que só chegou naquela situação por conta das minhas atitudes. Ignorei por diversas vezes, até o dia que cansei e ameacei chamar a polícia"

ANOS DE AGRESSÕES

Marilene*, 50 anos, casou-se em 1990 e manteve o relacionamento por 17 anos. Ela começou a sofrer violência doméstica numa época em que nem se falava sobre o assunto. Era humilhada na frente das pessoas, aguentou traições e agressões físicas. Inúmeros foram os pedidos de perdão, as idas e voltas no relacionamento. Além disso, a família dele ajudou a tornar a sua vida um filme de terror: na primeira gestação, quando começou a se sentir mal, a ex-cunhada lhe deu uma pílula abortiva no lugar de remédio para dor.

O basta veio em 2007, um ano depois da criação da Lei Maria da Penha. Na época, os filhos tinham 11, 9 e 8 anos. O divórcio aconteceu a pedido dele porque estava em outro relacionamento, apesar de insistir em frequentar a casa da ex-mulher e ser sustentado por ela. Isso encorajou Marilene a nunca mais voltar com ele.

Marilene*, 50 anos

*nome fictício para proteger a mulher

"“Eu quis me separar diversas vezes, mas os parentes me tiravam a ideia por causa dos filhos pequenos. Eu nunca escondi nada deles e, atualmente, eles que me apoiam a não voltar. Antes eu era boba, chorona, só que a vida me fez endurecer. Sempre me questionava se merecia passar por isso. Hoje digo que estou mais leve, passei a me valorizar"
Mulher vítima de violência doméstica prefere não mostrar o rosto com medo de represálias. Crédito: Carlos Alberto Silva
Mulher vítima de violência doméstica prefere não mostrar o rosto com medo de represálias. Crédito: Carlos Alberto Silva

A promotora de Justiça Claudia Santos Garcia,  coordenadora estadual do Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres (Nevid) do Ministério Público do Espírito Santo (MPES), esclareceu que violência contra a mulher sempre existiu, mas a Lei Maria da Penha acabou com a tradição de tolerância e trouxe visibilidade ao problema.

Ela afirma que é possível  eliminar o ciclo de abusos, mas, para isso, é necessária uma rede que assegure a proteção a essas mulheres. “A atenção número um da lei é a proteção integral da mulher para que ela tenha coragem de buscar ajuda. Para isso, acabar com essa violência não significa apenas ir à delegacia. A mulher deve ter acesso ao mercado de trabalho, ao serviço de saúde. É necessário trabalhar com a sociedade e desconstruir padrões machistas, trabalhar com a mídia, com o homem agressor. Importante dizer que romper com o ciclo não significa, necessariamente, acabar com o relacionamento”, observa.

Integrante do Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (Nudem), Fernanda Prugner explica que a mulher em situação de violência pode levar anos até tomar consciência de que está presa nesse ciclo. Por isso a importância de se falar sobre o assunto, de acolher a vítima, de informar os seus direitos e apresentar os instrumentos jurídicos disponíveis para romper com ele. 

“As políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher devem ser prioridade para o Estado, com previsão de dotação orçamentária significativa, com a capacitação em gênero das profissionais que irão fazer o acolhimento e atendimento das vítimas, instalação de mais centros de referência especializados no atendimento à mulher em situação de violência, de campanhas educativas, inserção do tema nos currículos escolares”, frisou. 

MEDIDA PROTETIVA

Mulher conseguiu acabar com o ciclo da violência que sofria com o marido. Crédito: Ricardo Medeiros
Mulher conseguiu acabar com o ciclo da violência que sofria com o marido. Crédito: Ricardo Medeiros

Raissa*,  29 anos, precisou de uma medida protetiva em março deste ano para conseguir dar um fim à violência que sofria fisicamente, moralmente e psicologicamente. Isso porque, mesmo com o término do relacionamento, era perseguida pelo ex-namorado. Ela contou que, no início do namoro, ele se mostrou um homem maravilhoso, mas depois de um tempo começou a diminuí-la, dizia que ficava com ela por pena, além de difamá-la para os amigos. Durante a gestação, veio a agressão: ele torceu tanto o braço dela que Raissa começou a urinar na roupa de tanta dor, e ele só parou porque pensava que a bolsa tinha se rompido.

“Ele chegou a dizer que eu poderia matar meu filho porque a mulher que está com depressão pós-parto é amparada pela lei; a violência psicológica dói muito. A separação veio quando ele ameaçou levar meu filho. Acredito que é importante a ajuda do Estado, dos amigos para romper com esse ciclo porque eu ainda enxergo ele como uma ameaça”, contou Raissa. Hoje, a jovem tem projetos que ajudam a contar a história de várias outras mulheres que, assim como ela, sofreram com a violência doméstica. 

UNIÃO DAS MULHERES

Em comum, essas três mulheres não só interromperam esse ciclo da violência, como passaram a ajudar outras vítimas. Rayanne, que viu na música uma aliada para o seu empoderamento, hoje faz canções, se apresenta em shows e também através de canal no Youtube. As letras falam sobre mulheres, o modo como são vistas na sociedade e o significado do 'não'. Nas escolas em que atua como professora de artes, passou a falar sobre o tema e a levar personagens importantes na história que não estão nos livros didáticos.

“Romper com o ciclo requer um trabalho árduo, mas nós professores e artistas não podemos ficar alheios, temos que desconstruir. Eu mesma ainda não estou totalmente livre dessa história, foi muito traumática, mas sigo na terapia. Meus amigos e familiares são fundamentais”, contou.

Já Marilene e outras amigas criaram o Movimento de Mulheres Bertha Lutz para ajudar mais mulheres. O grupo cresceu tanto que atuam neles diversos profissionais de forma voluntária, como médicos e psicólogos. Atualmente, ela participa também de outro grupo nacional. “É um grupo de autoajuda em que muitas mulheres conseguem liberar de seu peito uma dor guardada há tempos. A pessoa se sente amparada e percebe que não é a única a guardar sentimentos ou angústia”, disse. Atualmente, é aluna de Administração e, para sustentar a casa, realiza trabalhos na área administrativa e faz bicos como cuidadora.

Delegada Claudia Dematté acredita que as mulheres estão mais encorajadas a denunciar os abusos. Crédito: Isaac Ribeiro
Delegada Claudia Dematté acredita que as mulheres estão mais encorajadas a denunciar os abusos. Crédito: Isaac Ribeiro

PORTA DE ENTRADA

A chefe da Divisão Especializada de Atendimento à Mulher, delegada Cláudia Dematté, acrescenta que, devido à rede de proteção que vem sendo construída desde a aprovação da Lei Maria da Penha, as mulheres estão mais encorajadas. Somente de janeiro a novembro de 2019 foram 8.050 medidas protetivas de urgência e 1.428 prisões em flagrante. O número é maior que no mesmo período de 2018 quando houve 6.785 medidas protetivas e 1.109 prisões em flagrante.

Ela acrescentou que hoje há várias portas de entrada para a mulher pedir ajuda, como as delegacias, Ministério Público, Defensoria Pública, Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Pontua ainda que, além desse acolhimento, é necessário o desenvolvimento de políticas públicas para dar independência financeira às mulheres. 

"Romper com esse ciclo não começa necessariamente pela delegacia. A pessoa pode procurar a prefeitura do município que tem  Cras e Creas para atendimento psicossocial. Lá ela vai receber a primeira orientação, acolhimento, e depois será encaminhada para a delegacia, caso necessário. Pode começar pela Defensoria Pública ou pelo Ministério Público. Sabemos que ainda há mulheres que sofrem caladas, isso se deve a diversos motivos: vergonha, medo de serem julgadas, ligação afetiva e, muitas vezes, a questão financeira. Existem mulheres que foram impedidas, proibidas pelo seu marido de estudar, trabalhar”, destaca Cláudia Dematté.

ONDE PROCURAR AJUDA?

Os casos de violência de gênero são frequentes no Espírito Santo. Crédito: Pixabay
Os casos de violência de gênero são frequentes no Espírito Santo. Crédito: Pixabay
  1. 01

    DELEGACIAS ESPECIALIZADAS

    A vítima pode procurar ajuda nas delegacias especializadas de atendimento à mulher. Caso não tenha no município, pode procurar qualquer delegacia. A polícia também pode ser acionada pelo Ciodes, no número 190, e, no Disque-Denúncia, pelo 181. 

  2. 02

    DEFENSORIA PÚBLICA

    A Defensoria Pública também é uma porta de entrada nos municípios que tenham o órgão implantado. Na Grande Vitória foi criado o Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (Nudem). A instituição pode ajudar com a elaboração de requerimentos de medidas protetivas de urgência, com a propositura do divórcio, guarda dos filhos menores e encaminhamentos para atendimento psicossocial. 

  3. 03

    MINISTÉRIO PÚBLICO

    A mulher que sofre com a violência doméstica também tem como primeira porta de entrada o Ministério Público do Espírito Santo. Atualmente, existe o Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres (Nevid)

  4. 04

    CRAS

    O Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) são de responsabilidade da prefeitura de cada município. Eles oferecem atendimento psicossocial gratuitamente. 

A GAZETA LANÇA PROJETO "TODAS ELAS" 

O progresso feminino na sociedade não é capaz de acabar com os desafios que as mulheres ainda enfrentam. A discriminação de gênero é real, elas recebem menores salários, são rejeitadas por serem mães, são alvos de assédio no ambiente corporativo. Em casa, muitas são vítimas de violência doméstica. Para dar mais visibilidade a esses problemas e as formas de enfrentá-los, A Gazeta criou o projeto Todas Elas, que entra na rotina da redação A Gazeta/CBN Vitória a partir de hoje.

Para isso, reportagens em vídeos, textos, infográficos, podcasts, todos relacionados ao tema, serão reunidos em A Gazeta. Também estão previstos encontros específicos para discutir esses desafios, como palestras em escolas e empresas. A editora-chefe da Redação A Gazeta/CBN, Elaine Silva, esclarece que o projeto só reforça o compromisso de A Gazeta em fazer o Espírito Santo melhor.

“Temos um alto índice de violência contra mulher e feminicídio ao longo de toda a história do Espírito Santo. É inaceitável. Mas não podemos simplesmente ficar paralisados enquanto vários casos se repetem aos quatro cantos capixabas. Por isso, decidimos assumir o compromisso de dar ainda mais visibilidade às histórias de mulheres que sofrem abusos e violências de todos os tipos. Mas não é só isso, não queremos apenas enumerar uma série de dores e traumas. Nosso propósito é tentar fazer todos refletirem. E mais ainda, queremos ajudar essas mulheres a superar seus sofrimentos e dar a volta por cima. O Todas Elas quer estimular a população capixaba a discutir o tema, propor ações para mudar essa realidade e não deixar que mais nenhuma mulher morra só por ser mulher”, ressalta.

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