O secretário de Estado da Saúde Nésio Fernandes de Medeiros Junior
O secretário de Estado da Saúde Nésio Fernandes de Medeiros Junior
Nésio Fernandes

"Temor era de que houvesse desobediência civil e perdêssemos mais vidas"

Secretário de Estado da Saúde  faz um balanço sobre a pandemia do novo coronavírus no Espírito Santo, fala dos avanços na assistência aos doentes e também das pressões que marcaram a gestão da crise sanitária

O secretário de Estado da Saúde Nésio Fernandes de Medeiros Junior
Publicado em 02/08/2020 às 20h12
Atualizado em 02/08/2020 às 20h41

Nos últimos meses, a condução das estratégias para enfrentar e combater a pandemia do novo coronavírus foram marcadas por momentos muito tensos, como relata o secretário de Estado da Saúde, Nésio Fernandes.

Etapas em que seu grande temor era perder a capacidade de liderança da sociedade e, assim, não conseguir levar em frente as medidas que precisavam ser adotadas, o que poderia resultar na perda de mais vidas. “Porque sem a adesão das pessoas, a coesão social, a disciplina das famílias, não teríamos condições de implementar as medidas capazes de mitigar danos da pandemia”, explicou.

Mesmo estando seguro de que estava no caminho certo,  ele diz ter enfrentado muitas pressões, principalmente para a instalação de hospital de campanha. “Tivemos que sustentar a decisão, mesmo contra o apelo das redes sociais e de alguns formadores de opinião. Ao final do processo nós demonstramos que a decisão do governo foi acertada”. Confira abaixo outros pontos desta entrevista em que ele faz um balanço dos seis meses desde que o ES registrou o primeiro caso de coronavírus e cinco meses desde o coronavírus atingiu o status de pandemia.

Quase seis meses após a confirmação do primeiro caso do novo coronavírus no ES, no dia 27 de fevereiro, que avaliação o senhor faz da pandemia?

Primeiro reconhecer a dimensão internacional da doença, que desafiou todos os sistemas políticos do mundo. Uma pandemia que extrapolou o mundo da saúde, afetando a economia, as relações internacionais, a indústria, o desenvolvimento tecnológico, atrasou pesquisas em andamento, alimentou outras, abalou a circulação de pessoas no planeta. Uma doença com característica de um desastre epidemiológico que atingiu todos os setores da vida humana, cujo enfrentamento foi diferente em cada país.

Como?

Os países com uma infraestrutura melhor preparada, com um bom sistema de vigilância, boas lideranças nacionais, tiveram respostas mais adequadas. A China, por exemplo, teve problemas no início, mas com 1,4 bilhão de habitantes, com grau de unidade politica, coesão e investimento em tecnologia, conseguiu responder de forma muito rápida. Não chegaram a 5 mil óbitos. E olha o total de mortes dos Estados Unidos, mais de 156 mil. São dois países desenvolvidos, que disputam a liderança da economia no mundo, a guerra militar, e com uma resposta diferente em relação à Covid-19. Nos EUA houve muita testagem, o que por si só não altera a evolução da doença. Isso se consegue com a ruptura da cadeia de transmissão e o isolamento de sintomáticos. Então, a concatenação entre distanciamento social, diagnóstico de isolamento e tratamento adequado daqueles que precisaram de leito hospitalar é o que pode fazer com que um país tenha desempenho bom no enfrentamento da pandemia. E a China fez muito bem isto, assim como Nova Zelândia. 

E quem subestimou a doença?

Foi surpreendido com uma avalanche de óbitos. É o caso dos países europeus mais desenvolvidos, que inicialmente não praticaram um distanciamento social mais radicalizado, com um bom rastreamento dos primeiros casos, e acabaram de uma hora para outra vendo seus sistemas de saúde colapsarem, como ocorreu com a Itália, Espanha, Inglaterra, que viveram dias complexos, e foram obrigados a tomar medidas como lockdown, de ficar 90 dias fechados, com as pessoas sem poder sair de casa. 

E no Brasil?

Tivemos um caos no sentido da falta total de coordenação nacional no enfrentamento da doença e atraso nas respostas nacionais. Os Estados e municípios responderam mais rápido, com medidas concretas de enfrentamento a doença. Mas em um modelo de república federada como o nosso, compete à União o papel de coordenação nacional das políticas públicas de saúde, e o que tivemos foram Estados e municípios totalmente fragmentados, divididos, sem a concatenação da coordenação nacional. Isso, sem dúvida, prejudicou o desempenho do país no enfrentamento da doença.

E a situação no ES?

Avalio a nossa experiência como muito positiva, exitosa. Ao olharmos a curva de casos da doença nos Estados que já viveram as mesmas etapas que o Espírito Santo, percebemos que, no nosso caso, de fato, conseguimos achatar a curva. Se compararmos a nossa curva de óbitos com Estados como Ceará, Amazonas, Maranhão, Rio de Janeiro, você percebe que em nenhum momento tivemos formação de colina, de um pico abrupto, que cresceu muito. Ela faz um breve morrinho linear, tênue, de maneira muito diferente dos outros Estados. Nossa quantidade de óbitos fora do hospital é uma das menores do país. Além de achatarmos a curva de casos, conseguimos garantir acesso a todos os pacientes que se infectaram e precisaram de um leito de UTI. Nós conseguimos atrasar o crescimento da curva de casos com aquele distanciamento social que praticamos no início da pandemia e aproveitar aquele tempo para fazer o sistema de saúde se expandir, se estruturar, se reorganizar, e, concomitante a isso, tentamos unir as instituições do Estado.

Como?

Grande parte das igrejas católicas e evangélicas, dos poderes, parlamento, ampla maioria dos prefeitos, apoiaram de forma organizada as decisões que o governador Renato Casagrande foi tomando na condução da pandemia. No Espírito Santo houve muita coesão social. Em nenhum momento, o Estado foi protagonista de polarizações desnecessárias, de enfrentamentos desnecessários. A postura do Renato sempre foi mediadora, de construir consensos, opções de enfrentamento da pandemia, orientadas pela ciência, por parâmetros técnicos, mas isto não ocorreu no Brasil.

Houve quem não se preparou.

Sim, Estados que simplesmente menosprezaram a capacidade, a possibilidade de chegada da pandemia em lugares quentes e não se prepararam. Veja o que ocorreu com Tocantins, Ceará, Amazonas, locais de clima quente, onde se acreditava que haveria sazonalidade da doença, parecida com H1N1, e que ela seria mais forte no Sul e Sudeste. Como a Covid-19 não respeitou nenhuma sazonalidade ou correspondência climática, ela foi avassaladora  e todos eles colapsaram, tiveram dias muitos difíceis. No ES, por termos nos preparado para a pandemia desde a última semana de janeiro - fomos um dos primeiros a publicar um plano de contingência de enfrentamento à Covid-19 já em fevereiro e março -, começamos a realizar obras nos hospitais, a preparar a rede, o que vai ser deixado como legado mais a frente para o sistema de saúde pública.

Como estamos hoje?

Estamos vivendo uma etapa de consolidação da redução de casos na fase de recuperação na Grande Vitória, e vivendo uma fase ainda de ascensão da curva de casos, mas com velocidade menor, no interior. E se não temos a percepção no Espírito Santo de que ainda estamos vivendo um período muito perigoso da pandemia, é porque há uma percepção de risco reduzido com a doença, porque o sistema de saúde de fato se preparou para enfrentá-la. Veja, no último dia 28 nos tínhamos a mesma quantidade de pacientes internados em leitos de UTI que tivemos no dia 6 de junho, que foi um dos piores dias que tivemos. Lembro que foi um dia muito tenso, muito crítico, um dos piores no enfrentamento da pandemia.

Por quê?

No dia 6 de junho tivemos um crescimento da internação hospitalar muito rápido  e ainda estávamos inaugurando leitos. Era abrir um leito e ele era ocupado. Quando abrimos o Hospital de Vila Velha, com 40 leitos de UTI e 150 de enfermaria, o hospital encheu em duas semanas e meia. Havia um grau de medo grande nas pessoas, com 70% da população apoiando o distanciamento social, permeado ainda pela polêmica de abertura dos shoppings. No último dia 28 de julho nós tínhamos praticamente a mesma equivalência de pacientes internados em leitos de UTI que tivemos naquele período e quase o mesmo tanto de óbitos nos dois momentos. Mas a percepção da sociedade sobre o comportamento da doença não se compara com a tensão que havia naquele momento de junho. Agora, dada a capacidade do Estado no enfrentamento da pandemia, a percepção de risco das pessoas diminuiu. O gigantismo da estratégia de enfrentamento à Covid-19 deu a sensação de muita segurança para sociedade, ao ponto das pessoas caminharem na rua e tratarem com um grau de distensionamento muito grande a situação da pandemia no ES, com muitos acreditando que podem inclusive voltar todas as atividades, como se a pandemia já tivesse acabado.

Relaxaram mesmo com muitas mortes.

Há poucos dias falei em uma apresentação sobre uma característica muito ruim do ser humano em nossa época. Não esqueço do primeiro óbito por Covid-19. Foi uma tristeza imensa no Estado, todo mundo ficou muito abalado. Hoje perdemos de 25 a 30 por dia e as pessoas contabilizam como números, não como vidas perdidas. Vamos chegar a 3 mil óbitos em algum momento, muitas vidas que poderiam estar aqui se a humanidade tivesse enfrentado de maneira diferente a pandemia.

O que faltou? O que deixou de ser feito?

A demora em desenvolver medicamentos, vacinas, as disputas políticas desnecessárias que as nações se envolveram. Foi muito ruim e custou para a humanidade muitas vidas. No Brasil, ao final da pandemia, quando todos os Estados já tiverem passado por todas as etapas, principalmente naqueles em que o sistema de saúde colapsou, a quantidade de vidas perdidas vai ser gigantesca. Imagina se todos os Estados tivessem conseguido fazer o que realizamos, de achatar a curva, preparar o sistema de saúde, garantir o acesso de saúde para todos, muitos milhares de brasileiros teriam sido salvos. Mas, volto a repetir, a falta de coordenação nacional impediu que tivéssemos soluções nacionais. Foi cada um por si. O governo dos EUA, por exemplo, para proteger os interesses da nação, confiscou ventiladores do mundo inteiro, comprou lotes inteiros da China, se impôs diante do mercado internacional para garantir o interesse do país. Proibiu também a exportação de equipamentos e testes produzidos nos EUA. E o nosso governo, o que fez? Foi muito ruim a forma periférica como o Brasil se comportou no enfrentamento da pandemia e a ausência desse comando nacional mais agressivo na defesa do interesse nacional.

O senhor relatou que o ES se livrou de algumas arapucas, incluindo a polêmica envolvendo hospitais de campanha. Por quê?

Muitos fornecedores investigados, com grandes polêmicas em outros Estados, passaram aqui oferecendo os mesmos equipamentos. Mas não caímos em nenhuma dessas arapucas. Houve ainda a polêmica do hospital de campanha, e durante muito tempo sofremos um desgaste grande, mas a Sesa, de maneira muito técnica, sempre orientou o governo de que não seria necessário, o que nos livrou de outra arapuca. Veja agora o que está acontecendo com os hospitais de campanha no país. Hoje, enquanto outros Estados estão fazendo a desmontagem  e tendo que responder a investigações policiais, no Espírito Santo estamos abrimos leitos para pessoas com outros tipos de doença. Uma conquista da estratégia que adotamos.

E uma segunda onda da doença?

Nós desenhamos uma estratégia que ampliou a testagem, e se acontecer, temos capacidade de examinar mais pessoas em curto espaço de tempo, e temos uma rede hospitalar que ampliou de maneira robusta. Desde o início, quando comecei a tratar do tema da segunda onda, tenho afirmado que ela não será maior que a primeira e o tamanho da rede que construímos pode absorver um aumento de casos críticos no ES. Mas também melhoramos muito a capacidade de responder com a atenção primária e a nossa rede de atenção à saúde perdeu o medo da doença. Hoje médicos, enfermeiros, profissionais de saúde têm mais segurança no manejo dos pacientes suspeitos de Covid-19. Nas primeiras semanas da pandemia existia um medo, uma ansiedade muito grande, porque a nossa curva de aprendizagem tinha caminhado muito pouco naquele momento. Hoje também existe uma segurança sanitária maior em todos os níveis de atenção, tanto na primaria, pré-hospitalar, hospitalar. Então, há melhores condições de enfrentamento de uma segunda onda da doença.

Houve algum momento de preocupação durante os últimos meses na condução dos trabalhos?

Meu grande temor era perder a capacidade de liderança da sociedade, de não conseguir caminhar com a opinião pública,  ter uma grande desobediência civil estabelecida no Estado e que, assim, perdêssemos mais vidas. Isso sempre foi meu grande temor, porque sem a adesão das pessoas, a coesão social, a disciplina das famílias, não teríamos condições de implementar as medidas capazes de mitigar danos da pandemia. O Espírito Santo ganhou muito com a liderança de Renato Casagrande, que conseguiu coesão com a maioria das instituições, pessoas, atores do processo, mesmo com a ofensiva de alguns grupos políticos extremistas inconsequentes que tiveram no ES, e, mesmo com algumas polêmicas nacionais, no nosso Estado conseguimos manter a união. Sempre tive muito seguro de que as medidas que tomamos do ponto de vista assistencial, tanto para unir os gestores municipais desde o início da pandemia - tínhamos a disciplina de reuniões semanais com secretários municipais de saúde -, quanto de preparar a atenção básica, ampliar a rede de urgência e emergência, pré-hospitalar, melhorar o Samu, a remoção, qualificar a regulação.

Houve alguma dúvida, como em relação à instalação de hospital de campanha?

Tinha segurança de que estávamos no caminho certo, tomando as decisões possíveis, mesmo diante de pressões, como a destinada a abrir hospital de campanha. Confesso que foi descomunal, desproporcional o clamor naquele momento em que teve um apelo popular e tivemos que sustentar a decisão, mesmo contra o apelo das redes sociais e de alguns formadores de opinião. Ao final do processo nós demonstramos que a decisão do governo foi acertada. A tese que sustentamos no período mais difícil estava muito correta, no entanto, naqueles dias foram bem complexos. O ES vai demonstrar ao final, para o país, um exemplo de boas práticas no enfrentamento da doença. 

Houve erros?

Tivemos algumas deficiências, questões que vamos avaliar ao longo do processo, e que vamos pensar: se tivéssemos avançado em tal perspectiva, em tal momento, o resultado teria sido melhor? Mas decidimos com as convicções e os recursos disponíveis em cada momento histórico. Sempre que se olha para trás é mais fácil dizer o que poderia ter sido feito, mas quem vive o momento, precisa decidir no momento, ainda mais diante de uma doença que não tinha tantas convicções firmadas, é muito difícil.

E a pandemia ainda não acabou.

Não. Ainda nos restam meses até a consolidação da fase de recuperação, da retomada do período pré-epidêmico, da disponibilidade de uma vacina e tratamento específico. Até este momento, precisamos manter muitas das nossas atitudes de segurança. Lá na frente, talvez, possamos abraçar, beijar, ter o contato que tínhamos antes. Mas ainda e preciso resiliência de todos. E é importante que a sociedade entenda isto e que saiba que, quem se oferecer para a pandemia, não será recusado. Ela não rejeita nenhuma oferta.

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.