Publicado em 19 de junho de 2021 às 09:42
A crise na classe artística devido à pandemia de Covid-19, bem como a aposta em um boom do setor pós-pandemia, tem impulsionado uma modalidade de investimento pouco conhecida no Brasil: a comercialização de direitos autorais de compositores e de datas de shows de grandes cantores. >
A opção ficou conhecida mundialmente após o cantor e compositor Bob Dylan vender todas as suas mais de 600 canções para a Universal em dezembro, por cerca de US$ 300 milhões (R$ 1,5 bilhão). >
No Brasil, até então, o movimento era o inverso. Hoje cobiçados por fundos, Gilberto Gil e Caetano Veloso, por exemplo, recuperaram recentemente alguns de seus catálogos junto a editoras musicais, empresas que editam, comercializam e promovem partituras e letras de canções. Roberto Carlos e Erasmo Carlos estão na Justiça para também reaver a posse de músicas do início de suas carreiras. >
Com a falta de shows, porém, artistas voltaram a comercializar seus direitos. Isso porque a receita diária com reprodução de músicas é menor, já que a maior parte do valor fica com a gravadora. >
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Estima-se que o sertanejo Gusttavo Lima vendeu por R$ 100 milhões a sua agenda para 192 apresentações quando grandes shows voltarem a ser permitidos no Brasil. A compradora foi a gestora Contea Capital, que lançou em maio um fundo voltado à comercialização de datas de shows de grandes artistas. >
Ou seja, para agendar uma apresentação com Lima no pós-pandemia, o contratante terá que negociar com o fundo e não com o cantor. >
"Com a pandemia, a demanda represada é enorme. E estudos apontam uma expectativa muito forte. Pessoas querem voltar a ir ao cinema, a shows e a eventos", diz Paulo Marins, sócio da Contea Capital. >
O fundo com as datas de shows de Gusttavo Lima é um Fidc (fundo de investimento em direitos creditórios) não-padronizado, um instrumento capaz de adquirir diversos tipos de direitos creditórios com maior risco. Os padronizados comercializam títulos de crédito convencionais. >
Geralmente, os Fidcs comercializam créditos que uma empresa tem a receber, como precatórios ou recebíveis de cartão de crédito. Os investidores que adquirem as cotas desses fundos ficam indiretamente expostos aos retornos e riscos de tais recebíveis. >
"Há o risco de desvalorização do artista", diz Marins. >
Por serem mais arriscados, os Fidcs não-padronizados são restritos a investidores profissionais, ou seja, pessoas físicas que tenham mais de R$ 10 milhões investidos, instituições financeiras, fundos, profissionais autorizados pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários), entre outros. >
O investimento mínimo de um Fidc não-padronizado é R$ 1 milhão e de um Fidc comum é R$ 25 mil. Este último é restrito a investidores qualificados, com mais de R$ 1 milhão investido. Cada Fidc tem sua política de investimento e recebíveis, mas é comum que haja um retorno mensal. >
A gestora já comprou a agenda de outros dois grandes artistas dos ramos sertanejo e eletrônico, mas ainda não pode revelar o negócio por motivos contratuais. Há outros três músicos em negociação. >
"O segmento de entretenimento compreende várias possibilidades de investimento. Pretendemos diversificar os tipos de ativos do fundo", afirma Marins. Direitos autorais de compositores são uma das opções à vista. >
A Contea também planeja lançar outros dois fundos de investimentos alternativos: direitos creditórios de jogadores de futebol e de um clube de futebol. >
"Com a redução da taxa de juros, a busca por investimentos alternativos cresceu muito. E esses fundos têm, além do apelo financeiro, um apelo emotivo muito grande", diz o gestor. >
Os compositores de músicas podem ceder (vender) ou licenciar (emprestar por um tempo) seus direitos creditórios. Como pagamento, recebem, de uma vez, uma projeção de todo o valor a ser recebido descontado. >
Segundo o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), responsável pelo recolhimento dos créditos no Brasil, em 2020 foram arrecadados R$ 905 milhões, 19% menos que o R$ 1,12 bilhão de 2019. >
No Brasil, além de Fidcs, são utilizadas CCBs (Cédula de Crédito Bancário) para comprar direitos autorais de artistas e repassá-los a investidores. "Trata-se o direito autoral como um recebível comum, como um produto. Você pega o faturamento esperado e desconta o recebível", diz Carlos Duarte, sócio-fundador da Norte Invest. >
CCBs são títulos de crédito que podem ser emitidos por empresas ou pessoas físicas, com ou sem garantia, por meio de um banco. A remuneração da CCB pode ser prefixada, ou seguir a taxa de juros e a inflação. Geralmente, Fidcs que investem em direitos autorais fazem isso por meio de CCBs. >
A Hurst Capital é uma das empresas que comercializa CCBs de compositores, de uma maneira semelhante a um crowdfunding de investimento. No momento, são três catálogos disponíveis para investimento: rap e funk, com rentabilidade de 15,35% ao ano, trilhas sonoras (14% ao ano) e sertanejo (14,65% ao ano), todas com investimento mínimo de R$ 10 mil, com pagamento único ao fim de 361 dias. "Muita coisa já acabou, temos grande procura", diz Arthur Farache, presidente e fundador da Hurst. >
No catálogo de funk e rap estão músicas como "Parado no Bailão" e "Chorar Pra Que". No de sertanejo, estão hits como "Largado às Traças" e "Bebi Liguei". No de trilhas sonoras, estão os temas de abertura do Globo Esporte e do Jornal Hoje e "Chega de Saudade", de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. >
Segundo Farache, o catálogo com funk é o que rende mais por ser mais arriscado. "Quando a música de funk estoura, ela passa pouco tempo sendo muito ouvida e depois as reproduções caem". >
Em abril, a empresa comercializou as composições de Toquinho, com rentabilidade de 12% ao ano. >
Ele conta que a Hurst é proativa na busca por artistas. "Costumamos comprar uma pequena parte [do portfólio] e fazer o licenciamento de outra parte da obra. Também depende da necessidade de caixa dos artistas. Há aqueles que querem investir na carreira e antecipar valores futuros para despesas hoje". Nestes casos, os compositores abrem mão de partes maiores de seu repertório. >
"Quem vende, abre mão de um direito importante. Para resguardo da obra, o melhor é só um administrador e o artista tende a administrar melhor", diz Letícia Provedel, advogada especialista em direitos autorais e sócia do Souto Correa Advogados. >
Ela acompanha artistas e fundos na negociação dos direitos e diz que a procura de fundos aumentou nos últimos tempos, mas que compositores ainda estão relutantes em abrir mão de seus direitos autorais. >
No exterior, a comercialização dos direitos é mais comum. Algumas fatias de royalties são arrematados, muitas vezes, por meio de um leilão digital. É o caso da música "(I've Had) The Time of My Life" do filme Dirty Dancing. >
Em dezembro de 2019, royalties dela foram comprados por US$ 493,5 mil (R$ 2,5 milhões), de um lance inicial de US$ 300 mil (R$ 1,5 milhão), na plataforma Royalty Exchange. >
A projeção de rentabilidade anual é 8,11% e o comprador tem direito a receber os direitos autorais de reprodução por mais 70 anos após a morte do compositor que vendeu seu direito. >
Na mesma plataforma, acessível a brasileiros, foram negociadas músicas de Jason Derulo, Pitbull, Camila Cabello, Nicki Minaj, Rihanna, Cage The Elephant e até a música de um comercial da rede de fast-food Taco Bell. >
A Royalty Exchange também disponibiliza a comercialização via NFT, sigla para token não fungível, em inglês, que funciona como um certificado de propriedade ligado a um produto digital. >
Outra forma de investir em músicas é por meio da ação do fundo de direitos autorais Hipgnosis, listada na Bolsa de Valores de Londres e cotada a 124 libras (R$ 895) cada uma. É possível comprá-la com conta em corretora estrangeira com acesso ao mercado de ações inglês. >
Em seu catálogo, estão nomes como Debbie Harry e Chris Stein, da banda Blondie, The Chainsmokers, Kaiser Chiefs, Mark Ronson, Neil Young, Shakira e Timbaland. >
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