Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

Você consegue separar o artista da obra que ele produz?

Em tempos de cancelamentos, você consegue consumir a obra de um músico, cineasta, ator, escritor independentemente do que ele faz em sua vida pessoal?

Publicado em 30/05/2020 às 06h00
Atualizado em 30/05/2020 às 06h01
O cineasta americano Woody Allen, de 82 anos
O cineasta americano Woody Allen. Crédito: Divulgação

A discussão gerada pela coluna da semana passada, com foco nas bobagens ditas por Digão, dos Raimundos, em suas redes sociais, foi longa; ofensas e ameaças se misturaram ao apoio recebido principalmente por pessoas que também compartilhavam daquele sentimento e se sentiam ofendidas pela música da banda.

A questão que trago agora é outra, mas ainda ligada àquela discussão: você consegue separar o artista de sua obra?

A carreira de Kevin Spacey, por exemplo, foi destruída pelas acusações de assédio sexual que o ator sofreu há cerca de três anos. À época super em alta com a popularidade de “House of Cards”, na Netflix, o ator foi demitido da série que ajudou a tornar popular e que acabou sendo concluída sem seu personagem, Frank Underwood, o sujeito que tornava a série interessante. Spacey não voltou a trabalhar depois disso.

Outro caso é o do lendário Woody Allen, sempre às voltas com as acusações de sua ex-esposa, Mia Farrow, de que teria abusado da filha adotiva do casal, Dylan Farrow. Posteriormente, Allen se casou com Soon-Yi Previn, filha adotiva de Mia. Woody Allen sempre negou as acusações e foi inocentado delas em investigações policiais. Um dos filhos do casal, Moses, está do lado do pai. Todo o processo fez com que o diretor nova-iorquino, um dos mais talentosos da indústria de cinema, fosse colocado um pouco de lado, mesmo que ainda não totalmente ignorado, como foi o caso de Spacey.

O mesmo acontece com Roman Polanski. Acusado de ter abusado de uma menina de 13 anos em 1977, Polanski fez um acordo, se declarou culpado e fugiu após ficar preso por 42 dias e ser libertado com pagamento de fiança. Desde então ele vive na Europa em países que não podem extraditá-lo para os EUA.

Polanski, assim como Allen, é um gênio do cinema. Seu prestígio entre seus pares pouco foi alterado, e seus projetos continuam sendo realizados. Ele não foi boicotado.

Talvez exista, aqui, uma diferenciação a ser feita: o quanto dessas posições ou atitudes o artista leva para seu trabalho? Os Ramones, por exemplo, são idolatrados até hoje e os fãs pouco se importam com seus posicionamentos políticos - como dito na semana passada, o controlador Johnny Ramone, um gênio da guitarra, era conservador republicano convicto. Da mesma forma, os The Smiths também continuam relevantes apesar dos rompantes machistas, racistas e xenófobos de Morrissey, seu eterno vocalista. É difícil imaginar, no entanto, Allen ou Polanski sendo bem recebidos com um filme sobre pedofilia.

Já Clint Eastwood, republicano e conservador fervoroso, ainda é um dos grandes cineastas vivos. Aos 90 anos (completados neste domingo), ele continua levando para as telas suas crenças, às vezes de forma panfletária, como no belicista “Sniper Americano” (2014), outras de maneira mais contida, como no bom “O Caso Richard Jewell” (2019). Por mais que a direita reclame que “a lacração tomou conta de Hollywood”, não parece haver nenhum movimento para boicotar Eastwood.

Kevin Spacey como Frank Underwood, em
Kevin Spacey como Frank Underwood, em "House of Cards". Crédito: Divulgação/Netflix

Monteiro Lobato, um dos maiores autores da língua portuguesa, era parte da Sociedade Eugênica de São Paulo, um movimento social formado por advogados, médicos e intelectuais da época que pregava a superioridade da raça branca, crença presente em seus textos. Quando morou nos EUA, tentou publicar por lá um livro que foi rechaçado pelo conteúdo racista - sua resposta? Lamentou não ter tentado publicar o livro antes lá, quando a violência contra os negros era mais “liberada” - na mesma carta lamentou não haver uma Ku Klux Klan no Brasil. É, sim, um recorte da época, mas também diz muito sobre o autor, que tinha ideias de um “branqueamento” da população brasileira com a imigração europeia. Monteiro Lobato era, sim, racista, mas não foi “cancelado” pela cultura brasileira.

Aonde quero chegar é ao ponto de que há casos e casos, e uma maneira individual de lidar com eles. Separar ou não o artista de sua obra é opção pessoal - quer ouvir os Raimundos sem se preocupar com o que as letras ou o vocalista dizem? Quer se concentrar no aspecto positivo da obra de Monteiro Lobato (são muitos), ou na delicadeza do texto de Woody Allen, ou no talento de Kevin Spacey para atuação? Manda bala, apenas entenda a quem você está conferindo poder e popularidade.

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