Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

O axé music anos 90 volta com força em disco de Marcia Castro

Em "Axé", cantora Marcia Castro homenageia a música pop feita na Bahia dos anos 1990 e também olha para o que ela pode representar no futuro

Vitória
Publicado em 21/10/2021 às 01h51
Cantora Marcia Castro
Cantora Marcia Castro. Crédito: Divulgação

Marcia Castro era uma adolescente nos anos 1990, no “boom” da música baiana pelo Brasil. Hoje, com 42 anos, a cantora revela que era mais ligada à contracultura da época e se incomodava com o domínio absoluto do axé music na Bahia de algumas décadas atrás. “Não existia espaço para mais nada enquanto música de mercado. Como podia, num lugar tão musical, a música se restringir apenas a um gênero?” diz, antes de completar, em meio a risadas: “eu vivi o axé music, era foliã de carnaval, ouvia as músicas, mas em termos ideológicos, era contra”.

Significa muito, assim, que o quinto álbum da carreira de Marcia, que chega hoje às plataformas digitais, se chame simplesmente “Axé”. Com 10 faixas inéditas que conversam com a música baiana noventista, o disco é quase uma continuação do que Márcia já havia iniciado em “Treta” (2017), no qual misturou elementos eletrônicos à música da Bahia. “Eu parti de um desejo ancestral de fazer música com elementos baianos e fui pra vanguarda disso, misturando música eletrônica. Senti que falou algo, uma ponte com a minha relação com a música baiana”.

“Axé” é uma volta à compreensão da música baiana como fenômeno pop, quando as paredes de percussão já se encontravam com o balanço do reggae baiano nas levadas de letras solares, leves, solares e envoltas em melodias grudentas. O disco produzido por Leitieres Leite e Lucas Santtana tem compositores do nível de Emicida, Teago Oliveira (Maglore), Nando Reis, Russo Passapusso e Carlinhos Brown, e participações de Ivete Sangalo, Margareth Menezes e Daniela Mercury. O resultado é um disco solar, alegre, com várias camadas, da balada ao axé de trio, um trabalho pronto para se tornar a trilha sonora ideal de um verão.

O “Axé” de Marcia Castro dialoga diretamente com o que o jornalista Hagamenon Brito, pejorativamente, apelidou de “axé music”, termo criado para uma música que “perdia suas raízes” e se voltava para a música pop - mal sabia ele que criava um termo que levaria a música e a cultura baiana para todo o Brasil.

Pensado como um disco de vinil (formato no qual ainda será lançado), o disco abre com “Que Povo é Esse”, um frevo baiano com levada e energia à lá Chiclete com Banana, uma música feita para o trio. O disco segue com “Bolero Lero”, de Russo Passapusso, um jogo de palavras que passa do título à métrica da cantada de Marcia; é pop, é sexy, cheia de percussão e uma levada quase latina. “Holograma”, com Ivete Sangalo, é um samba-reggae com naipe de metais marcante e balanço contagiante.

Os destaques seguem no "lado B", que se inicia com "As Paulinas dos Jardins”, de Carlinhos Brown, com participação de Daniela Mercury. Marcia, inclusive, diz ter o disco “Feijão com Arroz”, o quarto da carreira de Daniela, como grande inspiração. “É um dos grandes discos da música brasileira”, afirma.

Outro destaque é “Macapá”, a balada do disco. Escrita por Nando Reis sob encomenda, a música é outra lembrança de Marcia e Marcus Preto, produtor do disco, do axé dos anos 90. “A gente via Herbert Viana escrevendo para Daniela, para Ivete, aí a gente pensou em quem escreve as melhores baladas hoje. Só poderia ser o Nando”, diz a cantora.

Fechando o disco, “Coladinha em Mim”, cantada do lado do rapper Hiran, é a ligação dos anos 90 com a contemporaneidade. O raggaeton com samba-reggae mistura a cantada de Marcia às rimas de Hiran numa levada mais moderna. Ao fim, “Arco-Íris do Amor” eleva novamente os bpm no single que já foi inclusive lançado no carnaval de 2020, antes de o mundo parar.

“Axé” foi todo concebido antes da pandemia e já estava pronto para ser lançado antes de o mundo mudar. O disco foi segurado e agora sua mensagem solar e de alegria ganha novos significados inclusive para Marcia. “Como a gente ia lançar um disco solar no meio de um negócio que a gente não sabe nem onde vai dar, o que vai acontecer, se nosso pai, nossa mãe, nosso irmão, nosso filho vai morrer ou não? Resolvemos segurar pra ver qual vai ser. Será que o eu estava cantando tinha a ver com o momento que vivíamos?”, indaga a baiana.

Abaixo, confira na íntegra a entrevista na qual Marcia Castro fala sobre a Bahia dos anos 90, o monopólio do axé nas rádios da época, a pandemia e, obviamente, sobre seu “Axé”.

Seus últimos trabalhos tinham uma pegada mais de música pop brasileira, MPB, por que essa guinada pra música baiana dos anos 90 nesse novo disco?

Na verdade isso já era algo que eu queria fazer e já tinha começado a fazer no "Treta", em que parti de um desejo ancestral de fazer uma música com elementos baianos e fui pra vanguarda disso, pro eletrônico misturado aos elementos baianos. Eu senti que falou uma ponte principalmente com a minha relação com a música baiana. Eu fui de uma referência à vanguarda dela. Eu conversei com o Marcos Preto sobre o desejo de fazer essa ponte e ele falou "vamos fazer um disco inspirado nessa música baiana dos anos 90", o retrato mais pop dessa música. Não deixa de ser o disco com essa influência pop, mas um pouco concentrado nessa baianidade que eu já trago desde o segundo disco. Em 2009, pouco depois de eu lançar o "Pecadinho", eu comecei a conversar com um músico argentino naturalizado baiano que é o Ramiro Musotto, ele foi um dos principais percussionistas dentro da nossa história, embora seja argentino. Conversei com ele em 2009 sobre meu desejo de fazer o disco e que ele produzisse, mas aí ele faleceu. Aí deixei o projeto engavetado e ele ressurgiu com o "Treta", mesmo que com outra forma. Meu desejo era fazer uma música que eu vivenciei. Eu vivenciei muito essa fase do axé, era uma adolescente vivendo aquela história. Pra mim é importante dentro do meu percurso musical ter esse retrato.

Eu também era adolescente nos anos 1990, mas sempre fui muito envolvido com a cena punk /hardcore daqui. Tinha aquela coisa adolescente de não gostar do mainstream. Todo mundo gostava de axé aqui no Espírito Santo, mas eu achava descartável - acho que de um cenário parecido vem a criação do termo "axé music" pelo Hagamenon Brito. Acho que só depois de adulto eu fui enxergar essa música de outra forma, como uma manifestação cultural e com qualidade artística. Tá rolando essa valorização tardia do axé anos 90?

Sem dúvida! Embora eu não tenha sido do rock, sempre fui muito amiga da galera do rock. Na Bahia tinha essa contracultura muito forte, o rock era muito forte, e quando surgiu o axé, o rock bombou. Mas eu era contracultura MPB (risos) e estava começando a cantar, mas já percebia que não havia espaço para essa música. Na Bahia dos anos 90, só existia espaço para o axé music enquanto grande música de mercado. Isso nos deixava um pouco claustrofóbicos musicalmente. Como podia, num lugar tão musical, a música se restringir a um gênero? Naquele momento, eu vivi o axé music, era foliã de carnaval, ouvia o axé music, mas termos ideológicos eu era contra aquele sistema (risos), ele suprimia a minha arte.

Era o que dominava tudo, né?

Era o sertanejo da época, dominava tudo. Fazer "apologia" ao axé music era terrível. "Você vai compactuar com isso aí"? (risos). Não dava. O tempo foi passando, nada como o tempo pra colocar as coisas nos lugares, e quando o próprio movimento começou a arrefecer enquanto força de mercado e até musicalmente mesmo. O axé deixou de se reinventar, vieram outros ritmos como o pagodão, mas o axé como a gente entendia ficou paralisado. Aí, nesse momento, a gente começou a ver com outros olhos, passou a ver a riqueza do que era produzido, das coisas mais comerciais até os lados B. Isso fez com que, de fato, as pessoas da Bahia e de fora da Bahia vissem o axé de outro jeito. O axé virou cult.

Marcia Castro

Cantora

"Como podia, num lugar tão música, a música se restringir a um gênero? Naquele momento, eu vivi o axé music, era foliã de carnaval, ouvia o axé music, mas termos ideológicos eu era contra aquele sistema (risos), ele suprimia a minha arte."

Recentemente o documentário "Axé", disponível na Netflix, fez bastante sucesso até entre quem nunca deu valor ao axé music...

Mesmo não gostando tanto daquilo, você vai lembrar de alguma música daquela época

Eu me lembro de todas (risos)...

Eu também! Aquilo gera uma conexão afetiva, nostálgica que é inevitável. Foi a música de um tempo, um retrato de uma época. É como a gente futuramente vai ouvir algumas coisas que tocam hoje e nas quais a gente mete o pau... É claro que o movimento tem muitas coisas que são criticáveis, questionáveis, a gente sabe disso, mas musicalmente sempre foi muito rico, com músicos extremamente competente participando da história, como o Leitieres, que é produtor do meu disco. Ele atravessou todas as fases da música baiana sendo uma figura muito central nisso. Não tem como menosprezar e dizer que é um "lixo".

Seu disco tem um encontro de gerações de produtores, com o Leitieres Leite e o Lucas Santtana. Isso ajudou a dar uma identidade mais única ao disco?

Por isso que a gente quis essa junção. Não que Leitieres não se comunique com essas coisas mais modernas, ele traz muito isso nas produções, mas Lucas já vai além disso. Ele é super vanguardista, está sempre um passo à frente. Quando você chega no lugar, ele já tá um passo à sua frente (risos). Eu queria esse olhar mais visionário, mas ele também tocou com várias bandas, então tem um domínio da linguagem e uma leitura de um passo adiante do movimento. Não era a ideia fazer uma leitura contemporânea do axé, mas também não queríamos não fazer essa releitura, sabe? A gente queria fazer um disco e ver no que ia dar. Não teve nenhuma restrição de nada.

Existiam mais músicas além das 10 selecionadas ou vocês foram bem pontuais na escolha?

A gente foi contactando as pessoas que a gente queria que participasse do disco e basicamente foi isso. Algumas foram mais ao acaso, como "Holograma", que nasceu de uma conversa que eu tava tendo com o (rapper baiano) Hiran. Ele me mostrou essa música, que ele tava cantando nos shows e eu achei que tinha tudo a ver com meu disco. Mas a gente queria ter o Teago (Maglore), o Russo (Passapusso, Baiana System), tem que ter Carlinhos Brown... Aí quando chegamos às 10 músicas, achamos que o disco estava coeso. Bora ver como esse disco vai ser recebido pra talvez a gente desdobrar ele depois, sabe?

Tem uns compositores que a gente não imagina num disco de axé, né? Emicida, Nando Reis, o próprio Teago...

No Nando a gente pensou de cara. Poxa, a gente se inspirou muito nas cantoras dos anos 1990, na Daniela (Mercury) e o álbum "Feijão com Arroz", que é uma grande inspiração pra mim e um dos grandes discos da música brasileira. E nele você tem "À Primeira Vista", uma balada romântica. Todo disco de axé tem uma balada romântica e a gente queria a nossa balada romântica (risos). Herbert Viana compunha pra Ivete, então a gente queria essa referência, essa composição no nosso disco. Quem é o cara que compõe baladas incríveis? É o Nando. Bora pedir pra ele (risos). Com o Emicida a gente queria uma música que flertasse com essa religiosidade, essa ancestralidade nossa, e que tivesse uma coisa meio "Andar com Fé", do Gilberto Gil. O axé sempre foi muito positivo, não existia muita sofrência no axé, é uma música solar. A gente ia lançar o disco pré-pandemia, mas ele faz bem mais sentido agora, a mensagem dele, nesse período quase pós-pandêmico. Acho que o mundo precisa mais de mensagens assim.

Foi por isso que vocês seguraram o disco até agora? Não faria tanto sentido lançá-lo antes?

Como a gente ia lançar um disco solar no meio de um negócio que a gente não sabe nem onde vai dar, o que vai acontecer, se nosso pai, nossa mãe, nosso irmão, nosso filho vai morrer ou não? Resolvemos segurar pra ver qual vai ser. Será que o eu estava cantando tinha a ver com o momento que vivíamos? Não tinha cabimento, mas agora faz muito sentido, com a gente começando a vislumbrar uma alegria. Quando eu escuto algumas músicas, me dá uma injeção de ânimo, como "As Paulíneas dos Jardins", que fala "e no fim nada acabará"... Faz sentido pra mim.

E como foi esse período pandêmico pra você?

Eu fiquei aguardando as coisas do disco, fiz muitas lives desse repertório que me inspirou. Brinquei com o conceito de "live axé 90", mas só fiz isso, não produzi disco novo, música nova. Agora, em junho, por conta do mês da visibilidade, eu fiz duas faixas que eu levei pra esse lugar. Uma delas eu compus pra um casamento homoafetivo de um amigo e quis levar pra esse momento a minha contribuição artística. Nada muito maior do que o disco, porque eu estava me entendendo, entendendo o mundo. Foi estranho para a vida, o entretenimento ficou parado. Fiz as lives pra me sentir viva, mas sem grandes pretensões.

Como você imagina os shows desse disco?

No primeiro momento uma banda com cinco músicos. Hoje acho que é uma banda grande. A gente tem visto que até os artistas "grandões" estão diminuindo suas bandas. O espírito do axé que a gente quer é com banda. Dá pra fazer acústico, como eu fiz, mas a gente quer banda.

Eu conversei com o Silva esses dias e ele disse que quer voltar com tudo, com a maior banda que puder, sopro, percussão, "na quebradeira"...

Amo o Silva!! É isso, sabe? É muito doido porque a gente tá nesse momento de reabertura, mas ainda não tem nada muito consistente. Talvez tenha pro mainstream, mas pra gente, artista mais independentes, não há uma certeza, uma agenda, tá tudo muito solto. Eu fiz o primeiro evento teste de Salvador, mas foi experimental, com as pessoas em curraizinhos... Agora em dezembro a gente tem agendado um show corporativo, mas estamos entendendo como o start do disco em shows pra ver o que vai acontecer depois. Já tem reuniões de carnaval, mas ainda não tem uma definição, um "vai ser assim!". Vai levar um tempo pra ver como vai ser, mas já estamos pensando em agenda de verão, mais até do que na de agora.

O disco foi pensado como um vinil. De onde veio essa ideia?

A ideia foi do Marcus Preto. Um axé 90 tinha que ter uma materialidade, um objeto físico, algo retrô. Como não se faz mais CD, tinha que ter o vinil. As músicas são organizadas como um disco de dois lados. No digital é difícil a gente pensar em ordem de músicas, o raciocínio é outro, não é enquanto obra, mas enquanto algorítimo.

Podemos pensar em um "Axé" volume 2 no futuro, o projeto pode se tornar algo maior?

Sem dúvida. A gente sempre ama os discos que faz, né? Mas esse é um disco que eu ouvi muito, eu nunca escutei tanto um disco meu. A gente acompanha muito na produção, grava, mixa, masteriza, ouve, ouve, ouve... (risos), mas esse é um disco que eu tenho escutado. Gosto muito dessa sonoridade, dessa solaridade da música baiana. Eu sinto falta disso enquanto público. Eu quero trabalhar nesse sentido, nessas sensações, nesse clima. Existe muito repertório com possibilidade de inéditas, que é incrível e vasto. Depois do disco eu recebi muita coisa boa. Fora o nosso repertório de acervo, né, que é incrível! Tem muito lado A que parece lado B, por estar tão lá atrás, que pode ser revisitado.

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