Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

Martinho da Vila: "Quando a sigla MPB foi criada, vinha embutida com racismo"

Lançando o novo disco, "Mistura Homogênea", Martino da Vila conversou sobre música, carnaval da Vila Isabel, a amiga Elza Soares, planos para show no ES e muito mais. Confira

Vitória
Publicado em 14/03/2022 às 16h56
Martinho da Vila lança o disco
Martinho da Vila lança o disco "Mistura Homogênea". Crédito: Albert Andrade/Divulgação

Desde "Unidos e Misturados", que abre "Mistura Homogênea", o novo disco de Martinho da Vila já mostra a sua identidade.  Ao lado de Teresa Cristina, Martinho canta sobre união em um samba com pegada rural e teor político. "A mistura é a solução. Na minha família tem umbandista, candomblecista, evangélico, católico... A gente se reúne todo ano. Cada um leva uma comida, a gente bebe, come, canta reza. Todo mundo junto. Manda um cântico protestante depois da umbanda, é assim que tem que ser", explica o cantor no material de divulgação do disco.

O disco segue com "Vocabulário de Partideiro", com participação de Zeca Pagodinho e Xande de Pilares, reunindo diferentes gerações e fazendo piadas com isso até em citação a Carlos Lacerda. Foi esse Martinho bem-humorado, de voz tranquila e disposto a conversar e contar histórias foi quem atendeu a chamada de vídeo para divulgação do disco e, humilde, afirmou "comigo quase nada é novidade, é tudo diferente, mas quase nada uma novidade".

De fato, "Mistura Homogênea" traz o afago da voz de Martinho, suas poesias e métricas impossíveis de não serem cantaroladas, mas o disco tem vários experimentos com um ar de novidade e frescor. Na ótima "A Era de Aquarius", Martinho convida o rapper mineiro Djonga em um canto de otimismo. Já em "Semba Africano", o sambista junta a canção angolana "Muadiakime" à sua "Semba dos Ancestrais" para celebrar a ancestralidade ao lado da filha Alegria Ferreira, que estreia como cantora.

Entre partidos altos, poesia e rap, "Mistura Homogênea" vai até o fim, quando explode em "Canta Canta, Minha Gente! A Vila é de Martinho", celebração da família ao próprio Martinho. Na música, homenagem que será samba-enredo da Vila Isabel no próximo carnaval, cantam Mart’nália, Tunico, Analimar, Martinho Antônio, Maíra, Juliana, Alegria e Preto, além dos netos Raoni e Dandara. O clima de Sapucaí é reforçado pela bateria da escola do coração de Martinho. "Meu coração é bom, seguro bem as emoções, mas essa é muito forte. O lance é que vou ter que cantar o samba sobre mim? (risos) Vou dar meu jeito!", diz o veterano quando questionado sobre como será o desfile de sua Vila Isabel.

Na entrevista abaixo, Martinho obviamente fala sobre o novo disco, mas também sobre a MPB, o samba, os Racionais MCs, além de lembrar uma história vivida ao lado da grande e saudosa Elza Soares (1937 - 2022). Confira.

O disco tem uma reunião de geração e estilos diferentes do samba, tem poesia, tem política... Como foi a construção dessa identidade do disco?

É por isso que ele se chama Mistura Homogênea (risos), essas coisas não se separam, música e poesia são coladas. A ideia surgiu quando eu gravei "Unidos e Misturados" com a Teresa Cristina e pensei que era uma boa ideia pra fazer alguma coisa bem misturada.

Essa mistura sempre fez parte do seu trabalho, né?

Comigo quase nada é novidade, é tudo diferente, mas quase nada uma novidade (risos).

Não é bem assim. O disco tem um frescor de estilo, umas parcerias novas como com o Djonga em "A Era de Aquarius"...

Eu fiz a música e o meu filho (Martinho Antônio) e o Celso (Filho), produtores desse disco, sugeriram "você podia meter um rap aí pra falar disso. Que tal o Djonga?" Eu não o conhecia, mas tinha visto alguns clipes e gostava muito. Ele topou e eu falei "fala o que você quiser, o que vier à cabeça como os rappers fazem". Ele teve liberdade pra cantar o que quisesse. Gostei muito.

Martinho da Vila

Cantor e compositor

"Há pessoas que criticam os otimistas e só gostam dos positivistas (risos). Todas as mudanças que aconteceram no mundo foram feitas pelos otimistas. O pessimista não faz nada, já diz que não vai dar certo logo de cara"

Essa música é superotimista, o disco todo é otimista. Você é um sujeito otimista com o que vem pela frente?

Sou um otimista. Há pessoas que criticam os otimistas e só gostam dos positivistas (risos). Todas as mudanças que aconteceram no mundo foram feitas pelos otimistas. O pessimista não faz nada, já diz que não vai dar certo logo de cara. Já eu digo "nós (Martinho é torcedor do Vasco) vamos ganhar o Campeonato Carioca" e vamos subir para no outro ano ganharmos o brasileiro (risos). (Nota do colunista: o positivismo no Brasil está presente no lema "Ordem e Progresso" da bandeira. Para o movimento positivista, o progresso está diretamente ligado à ordem e deve ser comandado por quem detém o poder, não por movimentos sociais ou grandes revoltas populares)

Eu, apesar de flamenguista, não fico feliz em ver o Vasco na segunda divisão dois anos seguidos...

Tem vergonha do Flamengo não? Vocês tão ganhando muito (risos). Podiam ficar um pouco mais acanhados.

Meu problema com o Flamengo hoje é fora de campo (risos), mas vamos falar de música! É engraçado essa reunião do rap com o samba e outros ritmos populares porque o samba era perseguido como o rap e o funk também já foram. Essa união funciona muito bem e tá chegando à velha guarda. Qual a importância dessa mistura que vai além da música?

São ritmos todos parentes, tudo música preta, origem dos batuques africanos. A mistura é boa e isso vai andando. Você falou da perseguição, mas o rap hoje deve ser o gênero mais ouvido no mundo.

Hoje tá muito em alta, mas mesmo quando o Racionais MCs estourou, nos anos 1990, era considerado música de bandido...

E o Racionais eles falavam com o pessoal da periferia, pessoal da base e diziam que não fariam shows em grandes casas, casas da burguesia. Um dia eu tava fazendo um show no Tom Brasil, em São Paulo, e o Mano Brown ligou e perguntou "vem cá, queria ir aí no teu show. Como eu faço?". Respondi que era só chegar, mas ele completou "queria um lugar bem atrás (risos) pra eu entrar depois que o show começar e vou embora sem ninguém me ver". Assim foi feito, mas no final do show ele não aguentou e foi lá no camarim e foi ótimo.

É um dos maiores nomes da música brasileira e agora tá se mostrando um ótimo comunicador no programa dele, com aquele jeitão sisudo...

Tá se revelando um grande entrevistador. Esse jeitão faz parte dele, da característica do rap (risos), faz parte do perfil. Eu vou ser entrevistado (no podcast "Mano a Mano"), estamos só vendo a data.

Martinho da Vila

Cantor e compositor

"É que essa sigla, MPB, quando foi criada, vinha embutido de racismo, de discriminação. Havia as rádios AM e FM. As FMs só tocavam músicas de compositores de uma determinada origem, não tocava samba."

Dia desses fui a um bar com a minha esposa e tinha uma menina tocando. Pedimos para ela tocar um samba e ela disse que só tocava MPB...

(Risos) É que essa sigla, MPB, quando foi criada, vinha embutida de racismo, de discriminação. Havia as rádios AM e FM. As FMs só tocavam músicas de compositores de uma determinada origem, não tocava samba. Felizmente isso foi mudando e hoje já tá melhor.

Você fez alguns shows em dezembro de 2021, mas voltou pro isolamento quando surgiu a Ômicron. Como está a agenda agora?

Fiz algumas coisas com cadeiras intercaladas, distanciamento e essa coisa toda. Agora estou com agenda recheada. Tem show no Rio de Janeiro em abril e, em maio, logo em seguida, vou fazer uma temporada na Europa, em seis países. Vai ser muito legal. A temporada vai ser com músicas do novo disco, mas sempre permeado com sucessos e canções. Tem que ser assim.

Imagina vir para o Espírito Santo e não tocar "Madalena do Jucu"..

Tem que tocar (risos). No próximo eu vou cantar o show todo e acabar sem tocar "Madalena", aí o pessoal vai berrar. Eu volto, canto outras músicas e saio fora (risos). Aí eles berram mais um pouco e eu canto "Madalena" (risos). O mesmo show que eu bolo pra fazer em um teatro eu faço numa escola de samba ou num teatro sem problema.

Na pandemia você conseguiu produzir, né?

Aproveitei bem. Eu tinha um livro de contos que tava meio magrinho e eu engordei ele na pandemia, "Contos Sensuais e Algo Mais". Contos sensuais são histórias de amor e o "algo mais" são coisas fora disso. Eu tinha umas músicas mais ou menos rascunhadas e tava por aqui, sem fazer nada, aí comecei a mexer nelas e daqui a pouco completei o disco. Então eu fui pro estúdio com todos os cuidados pra gravar.

Como foi esse processo?

Os produtores iam para o estúdio com os músicos, gravavam as bases, mandavam pra eu conferir. Depois eu ia pro estúdio só com o técnico de som e o produtor para gravar. Sem perigo nenhum e bem tranquilo. Tecnologia permite isso. No disco tem uma música que chama "Oração Alegre" e eu queria chamar o Carlinhos Brown pra fazer a percussão. Mandamos a música pra ele, ele gostou, fez a percussão toda lá em Salvador e mandou pra gente. Ainda falou "Martinho, quero cantar também" (risos) e soltou a voz no final (cantarola o trecho cantado por Brown).

O disco nasceu com essa ideia de ser uma grande festa da música brasileira?

É isso. É muito bom quando a gente planeja e consegue realizar. Às vezes a gente planeja e na realização não sai daquele jeito que a gente pensava. O estúdio é um lugar de criação e recriação e às vezes acaba tomando outro caminho.

Em "Dois Amores" você declama "elas são homogenia indecantável, inseparáveis como cachaça e mel, sal e água, samba e Vila Isabel". Se tudo correr como o esperado este ano, o samba enredo da Vila Isabel que te homenageia vai desfilar este ano. Como é a sensação de ver a escola do coração com essa homenagem?

Já tô chateado com esse vírus, rapaz. Era pra ter sido no ano passado. Perguntei até se o pessoal mudaria de ideia (risos), mas tá confirmado. Aliás, essa ideia é antiga. Em 2010 a diretoria me chamou e falou que eu seria o enredo. Não concordei e eles ficaram assustados (risos). Falei "esse ano é o centenário do Noel Rosa, melhor homenagear o Noel". Eu fiz o enredo, fiz o sambe e fizemos um carnaval bonito. Ser figura central do enredo vivo é uma coisa rara, ainda mais na minha própria escola. Caramba... Eu nem sei como vou me comportar. Meu coração é bom, seguro bem as emoções, mas essa é muito forte. O lance é que vou ter que cantar o samba sobre mim? (risos) Vou dar meu jeito!

A gente tá falando de ser homenageado em vida e a Elza Soares foi homenageada pela Mocidade em 2020. Eu achei vários momentos do "Mistura Homogênea" a cara da Elza...

Ela viveu bastante, teve uma parte muito sofrida, mas teve muitas alegrias, foi muito querida, ovacionada e ainda foi homenageada em vida. Elza era uma grande pessoa. Eu a conheci antes de virar estrela. Eu fazia uns bailes aos domingos com música mecânica e às vezes com um grupinho de músicos que tocavam meio precário. Um amigo comum era muito colado com ela e sugeriu de levar a Elza. Falei que não dava porque ela tava estourada. A chamei para marcar presença, nem ia cantar. Só isso já causou uma polvorosa. No dia do baile as pessoas se arrumaram, colocaram roupa de festa e a Elza não chegava... Quase no final da festa ela chegou, atravessou a quadra direto, foi pro palco e fez um show fantástico. Não é uma história bacana?

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