Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

"Mank": filme da Netflix é ótimo, mas para um público restrito

Cotado para o Oscar do ano que vem, filme de David Fincher conta como o roteirista  Herman Mankiewicz deu origem ao clássico "Cidadão Kane"

Vitória
Publicado em 04/12/2020 às 20h44
Atualizado em 04/12/2020 às 20h44
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Filme "Mank", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

A autoria do roteiro de “Cidadão Kane” (1941) é uma das mais longas confusões do cinema. Considerado um dos melhores filmes de todos os tempos, ele “oficialmente” foi escrito pelo diretor Orson Welles e pelo roteirista Herman Mankiewicz, que garante ter escrito o roteiro todo sozinho, sem a presença de Welles, tendo dito isso, inclusive, quando recebeu o Oscar pelo texto.

Em 1971, mais de 30 anos depois do lançamento do filme, Pauline Kael publicou um artigo na “New Yorker” chamado “Raising Kane”. O texto confere a autoria de “Cidadão Kane” e Mankiewicz e diz que o roteirista foi apagado dos anais de Hollywood pelos fãs de Orson Welles. Por outro lado, o historiador de cinema Richard Jewell garante que suas pesquisas garantem a contribuição de Welles no filme. Essa história provavelmente nunca será esclarecida, mas o diretor David Fincher (“Garota Exemplar” e “A Rede Social”) fez dela o centro de “Mank”, que chegou nesta sexta (4) à Netflix com grandes aspirações ao Oscar 2021.

Fincher escolhe um lado, o de Pauline Kael, mas não concentra seu filme na questão de quem é o autor ou não do filme. Ao invés disso, o cineasta prefere explorar a criação do clássico e o contexto dessa gênese. No texto de autoria de Jack Fincher, pai de David, Herman Mankiewicz (Gary Oldman) é um roteirista boa praça, falastrão e com alguns problemas com álcool e apostas. UEle circula no alto escalão da indústria cinematográfica, mas se vê cada vez mais como um pária ali dentro.

“Mank” explora bem os bastidores da indústria e o faz com diversas referências a figuras famosas da época. O filme tem início em 1940, quando Orson Welles (Tom Burke), uma estrela em ascensão, recebe carta branca do estúdio para um projeto com Mank - o roteirista, lidando com as sequelas de um acidente automobilístico, teria 60 dias para escrever um roteiro, em teoria, sem álcool. É a partir dali, com flashbacks e uma narrativa não-linear, que vamos entendendo a construção do que viria a ser “Cidadão Kane”, no qual ele, à sua maneira, representava o magnata das comunicações William Randolph Hearts (Charles Dance) e sua esposa, a atria Marion Davies (Amanda Seyfried).

Todo em preto e branco, “Mank” tem uma fotografia espetacular. O diretor de fotografia Erik Messerschmidt, que trabalhou com Fincher na série "Mindhunter", abusa dos contrastes e recria vários frames em homenagem a “Cidadão Kane”. A trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross, também parceiros habituais do cineasta, está presente durante quase toda a projeção e também merece destaque, ajudando na ambientação de época. “Mank”, porém, tem alguns problemas…

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Amanda Seyfried e Gary Oldman no filme "Mank", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

O primeiro deles é depender quase totalmente de que seu público não apenas tenha assistido a “Cidadão Kane”, mas também de que ele se lembre de detalhes do filme de 1941. Para essa audiência, “Mank” é um espetáculo, um mergulho nos anos dourados de Hollywood. No entanto, para quem o termo “rosebud” e os nomes Charles Foster Kane e Susan Alexander Kane nada representam o filme tem pouco a oferecer.

Há, sim, outros interesses em cena. O filme mostra como a indústria de cinema e os estúdios manipulavam a opinião pública com notícias falsas para influenciar em eleições - hoje a Califórnia é um Estado de maioria democrata, mas nem sempre foi assim. O texto também mostra uma época de mudanças em Hollywood, que saía da Crise de 29 e começava a formar seus sindicatos (roteiristas, atores, produtores etc.).

Mesmo interpretando um personagem quase 20 anos mais novo, Gary Oldman se sai muito bem e permite que o filme até brinque com isso. O ator encarna o aspecto fanfarrão de Mank, mas também o lado herói trágico, o sujeito que sucumbiu à indústria e ao álcool sem abrir mão de suas convicções. Amanda Seyfried é outra que se destaca com uma atuação precisa. Expressiva, a atriz protagoniza com Oldman os melhores diálogos do filme, aqueles que nos fazem entender um pouco mais as motivações do quase herói, um idealista romântico.

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Filme "Mank", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

“Mank” funciona como um resgate, mesmo que talvez não fiel aos fatos, mas também como uma homenagem ao idealista herói incompreendido - as citações de “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, não são gratuitas. “Cidadão Kane”, em “Mank”, é quase uma vingança, um grito por liberdade, um ato de guerra, e o filme funciona muito bem se enxergado dessa maneira.

O filme de David Fincher deve agradar os votantes da Academia, que adora uma homenagem à indústria, e provavelmente acabará com méritos no Oscar do ano que vem. Ainda assim, “Mank” carece de emoção. O roteiro até tenta, em duas subtramas, conferir um aspecto mais pessoal ao filme, mas não consegue. Ao fim, “Mank” é um filme para apaixonados e conhecedores de cinema, o que o afasta muito do público que buscar apenas se divertir ou se emocionar com uma obra.

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