Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

Incomodado com o Jesus gay? É só não assistir

Mesmo já cassada, determinação da justiça de retirar do ar vídeo do Porta dos Fundos reflete a intolerância que religiosos dizem combater

Publicado em 11/01/2020 às 04h00
Atualizado em 11/01/2020 às 04h01
 Crédito: Netflix/Divulgação
Crédito: Netflix/Divulgação

Sim, a Justiça exigir a retirada do filme “A Primeira Tentação de Cristo”, do Porta dos Fundos, da Netflix é censura. Na verdade, a decisão do desembargador Benedicto Abicair é tudo menos justiça, uma vez que não possui base jurídica alguma. Mais grave ainda: a sentença praticamente endossa o ataque à sede da produtora, o desejo dos atacantes, afinal, foi atingido.

Em seu texto, Abicair disse ser “mais adequado e benéfico, não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã, até que se julgue o mérito do agravo, recorrer-se à cautela, para acalmar ânimos, pelo que concedo a liminar na forma requerida”. A Netflix, claro, recorreu ao STF, instância na qual o ministro Dias Toffoli suspendeu a decisão.

O mesmo Abicair, vale lembrar, se disse contra a censura ao votar na acusação de homofobia contra…(pausa dramática)... Jair Bolsonaro. Na ocasião, o magistrado escreveu: “Não vejo como, em uma democracia, censurar o direito de manifestação de quem quer que seja”. Em miúdos: ser homofóbico é perfeitamente aceitável para ele, o que não pode é incomodar a “comunidade cristã”.

Claro que não é a primeira vez que uma obra considerada polêmica é alvo de cristãos - praticamente toda dramaturgia que faz sua livre interpretação dos escritos bíblicos é alvo de tentativa de censura. A boa notícia para o Porta dos Fundos é que eles estão bem acompanhados. Martin Scorsese, um dos maiores cineastas da história, teve seu “A Última Tentação de Cristo” (1988) alvo da fúria cristã mundo afora. Um grupo fundamentalista cristão atacou uma sala que exibia o filme em Paris com coquetéis molotov (coincidência, né?) e deixou treze pessoas feridas, algumas com queimaduras gravíssimas.

O filme de Scorsese, porém, não mostrava um Jesus gay, mas sim uma versão humanizada do mesmo. O Cristo do cineasta, ao contemplar seus últimos momentos na cruz, se imagina tendo uma vida normal que o permite se casar com Maria Madalena após salvá-la do apedrejamento e ter filhos.

Outra lenda da Sétima Arte, Jean Luc Godard viu “Eu Vos Saúdo Maria” (1985) ser censurado no Brasil pelo então presidente José Sarney. O filme reinventava Maria como uma jovem francesa que fica milagrosamente grávida e tem problemas quando conta isso para seu namorado, José. Godard foi atacado por manifestantes durante o Festival de Cannes e um grupo católico francês conseguiu roubar uma cópia após invadir um cinema. Por aqui, à época, o cantor Roberto Carlos chegou a enviar um telegrama ao então presidente o congratulando pela decisão: “não é obra de arte que mereça a liberdade”, escreveu. Democrático, né? Para alguns, a liberdade parece só ser merecida se a obra seguir o padrão de suas crenças.

Para encerrar a breve lista, “Dogma” (1999), de Kevin Smith, rendeu ao cineasta cerca de 30 mil e-mails raivosos e algumas ameaças de morte. A comédia ironizava vários dogmas do cristianismo, trazia um 13º apóstolo negro (Chris Rock) e dois anjos expulsos do céu (Matt Damon e Ben Affleck). Ah... falei que Deus era mulher (Alanis Morissette) e que o roteiro questionava a virgindade de Maria?

Vale ressaltar que, à época do lançamento, Alanis era uma das mais populares cantoras do mundo, e Kevin Smith um cineasta em ascensão. Por aqui, grandes redes (Severiano Ribeiro e Cinemark, por exemplo) se recusaram a exibir o filme, que acabou restrito ao circuito alternativo - em Vitória foi exibido no Cine Metrópolis, na Ufes, com grandes filas e salas lotadas.

O que deve-se entender é que o filme do Porta dos Fundos não impede ninguém de exercer sua crença. O artigo 5º da Constituição Federal diz que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Alguma dessas garantias foi atingida?

A questão é tão simples que impressiona: se não lhe agrada, não assista. Intolerância religiosa não é retratar Jesus gay ou Deus, mulher, mas demonizar as religiões de matriz africana. Intolerância é atacar e destruir terreiros de umbanda e candomblé, prática de grupos evangélicos no Rio de Janeiro, ou atirar coquetéis molotov em uma produtora de vídeos.

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