Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

Frank Miller e Tom Wheeler falam sobre "Cursed", da Netflix, e sua relação com o mundo

Me sentei virtualmente com Frank Miller e Tom Wheeler, criadores da série "Cursed: A Lenda do Lago" para conversar sobre o lançamento da Netflix e o processo criativo dos dois

Publicado em 25/07/2020 às 06h00
Atualizado em 25/07/2020 às 06h00
Katherine Langford como Nimue em
Katherine Langford como Nimue em "Cursed". Crédito: Des Willie/Netflix

Não é todo dia que você é convidado para entrevistar um dos maiores quadrinistas de todos os tempos. Por isso, quando recebi o convite de me sentar virtualmente com Frank Miller, o frio na barriga foi inevitável. Frank, afinal, é o sujeito responsável por obras como "Batman: O Cavaleiro das Trevas", "Demolidor: Homem Sem Medo", "A Queda de Murdock", "Sin City", entre outras.

Afastado dos quadrinhos desde a péssima recepção para o péssimo "Holy Terror", ele agora se dedica, ao lado de Tom Wheeler, também presente na entrevista (e até mais falante), a "Cursed: A Lenda do Lago", série lançada pela Netflix que reconta as lendas arturianas pela visão de Nimue, a Dama do Lago, adaptando livro homônimo também lançado pela dupla.

"Cursed", a série, é uma fantasia medieval com pegada adolescente, levando para a Netflix uma pegada diferente da do livro, muito mais cru e violento. A série explora algumas possibilidades do universo das lendas do Rei Arthur e inverte o protagonismo para uma personagem feminina. "Queria que minha filha, que tinha 10 ou 11 anos na época das filmagens, tivesse uma personagem com a qual ela pudesse se conectar", conta Wheeler.

Apesar da pegada adolescente, a série não evita tocar em assuntos como intolerância religiosa e corrupção pelo poder. "Essas coisas ecoam na cabeça das pessoas. Pense nas coisas que incomodam hoje em dia, elas estão na série", pondera Miller.

Na entrevista, realizada virtualmente ao lado de alguns colegas jornalistas de diferentes lugares do mundo, a dupla fala sobre seu processo criativo, sobre se colocar nos personagens, e, claro, sobre a natureza humana de "Cursed". Confira.

Tom, como um cara como Frank Miller e um cara como você, que já desenvolveram tantos personagens em tantos cenários e histórias diferentes, abordam e escolhem que histórias contar e desenvolver?

Frank Miller: Da minha parte eu posso dizer que... (pensativo) eu tenho que me apaixonar pela história pra fazê-la um de meus livros. Eu costumo encontrar algo histórico ou trabalhar em uma história própria e bagunçá-la até que ela comece a me incomodar, a importar pra mim, e me faça querer saber o que acontece nela. Se for uma história de "Sin City", por exemplo, eu escrevo o que vai acontecer nos primeiros capítulos e depois eu começo o livro e vejo aonde ele me leva. Se for algo histórico ou que eu já saiba como vai terminar, porque precisa terminar como realmente aconteceu, precisa ser algo que eu saiba que vai ser bom o suficiente. Se eu quero mesmo fazer eu continuo me jogando na história todo dia por um longo período.

Tom Wheeler: Eu concordo com isso, mas para "Cursed", por exemplo, você pode abordar um mundo. Quando você tenta começar uma história por motivos de "oh, gosto muito desse universo', às vezes você acaba correndo atrás da história e você acaba não encontrando um personagem que realmente começa a conversar com você. Para mim foi assim com Nimue. Foram as atitudes dela enquanto eu trabalhava nas cenas, as escolhas que me surpreendiam, e eu comecei a ficar interessado no que ela faria a seguir. Isso nem sempre acontece, às vezes você tem que forçar os personagens a fazer coisas para a história caminhar, eles não são tão cooperativos. Nesse caso eu senti que acertei em algo com ela e ela começou a comandar a história. Isso foi muito divertido, pois criou muitas oportunidades e ótimas surpresas.

Frank: É nesse momento que os personagens ganham vida e conversam com você que você se identifica, que você sabe que algo está acontecendo.

Frank Miller, escritor e quadrinista
Frank Miller, escritor e quadrinista. Crédito: Netflix/Divulgação

Queria saber de vocês dois sobre como vocês tiveram o conceito de escrever uma história com uma mulher (Nimue) que normalmente está ao redor do protagonista masculino, Arthur, e então inverter a linha para essa personagem complexa e até nova para a maioria da audiência. De onde veio essa ideia de contar a lenda através de Nimue?

Tom: Tudo começou conversando com Frank. Eu sempre fui um grande fã de Frank Miller e colaborar com ele no mundo arturiano era uma ideia excitante, mas nos concordamos que seríamos obrigados a trazer algo novo à mesa. Por mais que eu quisesse ver a visão de Frank sobre Merlin e o Rei Arthur, já houve muitas histórias sobre eles, a espada e a pedra. Nós amamos esses personagens e suas histórias, mas eu também queria que minha filha, que tinha 10 ou 11 anos à época, tivesse um personagem com a qual ela pudesse se conectar. Quando começamos a olhar praquela imagem da Dama do Lago, a espada saindo da água, com o braço, ela nos sugeriu muito de magia, romance, tragédia... E à medida que fomos retrocedendo naquilo e encontrando uma história para Nimue, as oportunidades começaram a pipocar, afinal, como chegaríamos à mitologia que nós conhecemos, como seria a jornada para chegar ao Rei Arthur como conhecemos, ao Merlin como conhecemos? Isso nos desafiou a mudar esses personagens e dar a eles uma longa jornada, mostrando como eles teriam sido influenciados por Nimue. Tem um momento que foi muito marcante pra mim, que foi quando minha filha pode estar no set e viu Katherine (Langford) como Nimue, com a espada do poder, e foi um momento muito legal, pois foi a primeira associação dela com as lendas arturianas, uma mulher forte e poderosa que foi corajosa uma real líder. Foi muito divertido e Katherine também curtiu muito esse momento. Acho que foi quisemos oferecer novos pontos de vista para personagens que amamos através do mundo de uma personagem que não conhecemos tão bem.

As transições animadas dos episódios chamam muita atenção. De onde veio essa ideia e como foi aplicar isso no desenvolvimento da série?

Frank: Acho que a intenção é ser um lembrete de que a série se relaciona com literatura histórica. Eu queria que tivesse uma sensação de um livro de história. Não é o principal, mas funciona como um lembrete de que você está lendo uma história de dias antigos, de parte da lenda do Rei Arthur.

Tom: Nós sempre falamos sobre essa ideia da história de Nimue ser um tipo de conto de fadas sombrio. Eu achei muito legal para fazer justiça às artes de Frank presentes no livro. Foi uma maneira divertida de nos colocar em outras cenas ou de nos tirar de uma cena nos transportar para outra com um pouco de informação, de mágica... Se tornou algo que gostamos muito de fazer.

Nós temos visto muitas séries de sucesso como "Vikings", "Game of Thrones", "Last Kingdom", "The Witcher". Por que vocês acham que as pessoas se interessam tanto por essas séries históricas?

Frank: (pensativo) Essas coisas estão ecoando na cabeça das pessoas. Pense nas coisas que incomodam as pessoas hoje em dia. As pessoas estão preocupadas sobre a civilização, e isso é sobre o nascimento da civilização; as pessoas se preocupam com vírus, e o mundo morria de uma praga naquele período. Há também conflitos políticos, com reinos em conflitos gigantes na época, não havia paz. E contra tudo isso há elementos que são sempre verdadeiros e valiosos, como romance, há o bem e há o mal, está tudo nesses elementos.

Tom Wheeler

Escritor e produtod de "Cursed"

"Nós vemos isso hoje na juventude dos Estados Unidos e ao redor do mundo, os jovens de todas as raças estão dizendo que não está nada ok e que as coisas precisam mudar, e isso você pode ver espelhado em "Cursed". Claro que o que acontece no mundo é muito mais importante do que o que acontece em uma série, mas esses objetivos por que lutamos são universais"

A gente pode dizer então que "Cursed" é uma série sobre a natureza humana? Se temos luta por poder, romance, intolerância religiosa...

Tom: Claro! Acho que tivemos uma oportunidade porque pudemos contar a história no livro e agora tivemos 10 horas para examinar a natureza desses personagens e conhecê-los, o que às vezes não é fácil em um filme, pois você está espremido em um curto tempo. Então sim, nós pudemos conhecê-los intimamente. Nós vemos algumas características nossas nesses personagens, a luz e a escuridão. Podemos relacionar com a última resposta da Frank, sobre o porquê de sermos puxados para essa ideia de Camelot como um momento idealizado e romantizado de união. A gente fugiu disso e esperou que alguém pudesse nos trazer de volta para aquele caminho, com todas as raças, todos juntos, sabe? Almejamos isso agora e havia o sonho disso antes. Frank sempre descreveu Arthur como um personagem que trazia civilização a um mundo bárbaro, e eu acredito que Nimue também tem essa característica de ser uma liderança jovem ascendendo para mudar o status quo, para lutar pelo que acredita mesmo contra as possibilidades. Nós vemos isso hoje na juventude dos Estados Unidos e ao redor do mundo, os jovens de todas as raças estão dizendo que não está nada ok e que as coisas precisam mudar, e isso você pode ver espelhado em "Cursed". Claro que o que acontece no mundo é muito mais importante do que o que acontece em uma série, mas esses objetivos por que lutamos são universais e sempre atuais e é por isso que essa mitologia é são atuais.

Frank Miller e Tom Wheeler no lançamento do livro de "Cursed"
Frank Miller e Tom Wheeler no lançamento do livro de "Cursed"

Há algo da personalidade de vocês nos personagens de "Cursed"? Como as suas ideias se refletem em tela?

Frank: Pra mim, eu posso dizer que normalmente é totalmente consciente (risos). Às vezes eu digo que farei um personagem para me livrar de algo, vou usar parte de mim para criar um personagem, mas em outras vezes eu faço sem ter a menor ideia do que estou fazendo, só vou perceber anos depois quando alguém pede para que eu autografe algum livro e eu olho para os desenhos e penso "ooooh, isso eu fiz por conta daquela briga que tive com fulano naquele dia e o quão mal eu me senti com aquilo" (risos). Então eu acho que muitas coisas vêm de dentro de mim tanto na maneira como escrevo quanto na maneira como desenho. Muitas vezes eu sei exatamente de onde está vindo, mas em muitas outras, como disse, eu não faço ideia.

Tom: Concordo 100% com isso. Claro que existem características minhas... É engraçado porque às vezes funciona, mas às vezes a diversão é escrever justamente o personagem que não poderia ser mais diferente de mim, é uma maneira de ser outra pessoa, de experimentar algo que eu nunca faria em vida, sabe? Você fica comandando um você diferente, um doppelganger que funciona de maneira diferente, mas de vez em quando, como Frank disse, você vê algumas coisas e percebe que aquilo já estava lá. É algo engraçado do processo criativo, mas sim, você está desenhando da sua vida, de suas experiências, de seus intintos, alguns são universais, mas outros são únicos seus, e algumas vezes a audiência percebe isso.

Frank: Isso poderia ser objeto de uma dissertação ou de um livro ou de uma palestra (risos). Isso é delicioso de se discutir.

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