É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Nada a perder

É lei da natureza: quem tem alguma coisa a perder, tem medo. Seguindo essa lógica, quem tem dinheiro, quem tem sucesso, quem tem reputação, quem tem cabelo e quem tem joelho, tem sempre algum medo

Publicado em 15/11/2020 às 05h00
mulher com patins
E lá foi ela de patins. Deslizando aos trancos, trombado em uns, segurando em outros, rindo nervosamente e quase chorando. Crédito: Freepik

Certa vez Jim Morrison disse que os maiores erros de sua vida foram cortes de cabelo. Claro, esse era só um jeito irônico de dizer que ele não levava nada muito a sério. Porque qualquer roqueiro que se preze sabe perfeitamente que a liberdade para fracassar é o principal ingrediente do sucesso.

Falando nele, é bom lembrar que ter o sucesso como professor, é péssimo.

Ora, se a gente cresce, aprende e amadurece com os erros; se não há melhor lição que um engano, uma mancada, um fracasso, um tombo, um tropeço; se só eles nos ferem e se inserem fundo o bastante para deixar cravada na alma (e na carne) uma marca; se apesar de delicioso, o sucesso é um fruto estéril... Polido, brilhante e correto suficiente para ser enfeite.

Então era à isso que Jim Morrison se referia quando proclamava que a liberdade é o triunfo daqueles que se expõe aos seus medos mais profundos.

Pensando nisso, me lembrei de uma amiga que há pouco ouviu da terapeuta o que seria um desafio, se não fosse um conselho: "escolha um dos seus medos e o enfrente".

Maria Sanz Martins

Cronista

"Me lembrei de uma amiga que há pouco ouviu da terapeuta o que seria um desafio, se não fosse um conselho: "escolha um dos seus medos e o enfrente"

Pois bem, no final de semana seguinte, ela foi até a garagem, abriu o armário de quinquilharias e avistou no fundo, virado de cabeça para baixo, um pé do seu antigo par de patins. As rodas vermelhas, pouco rodadas, a lâmina empoeirada e o cadarço novinho, apesar de encardido pelo excesso de tempo guardado...

Segurou ele nas mãos, sentou no chão e gastou alguns minutos fitando aquele velho monstro assombrado. Foi esse o início da sessão. Catou o outro pé em meio à bagunça e tomou a decisão: ligou o carro, o rádio e quando deu por si, já estava em Camburi, no estacionamento do calçadão.

Sentada no meio-fio, calçou as botas e se viu presa às rodas. Olhou para os joelhos e passou a mão pela antiga cicatriz. Era um corte profundo, uma mancha escura, uma dor e um susto. Respirou fundo, ficou de pé e, segurando no capô do carro, ela corajosamente (em nome da ciência terapêutica e da evolução da espécie) quebrava, enfim, o juramento feito há mais de oito anos (o de nunca mais pôr os pés num patins).

(Medo!)

É lei da natureza: quem tem alguma coisa a perder, tem medo. Seguindo essa lógica, quem tem dinheiro, quem tem sucesso, quem tem reputação, quem tem cabelo e quem tem joelho, tem sempre algum medo.

E lá foi ela. Deslizando aos trancos, trombado em uns, segurando em outros, rindo nervosamente e quase chorando.

O que aconteceu?

Advinha.

Quebrou o braço. Foi socorrida por um corredor suado e levada ao hospital. Colocou gesso, ficou de licença no trabalho e foi (com o tal corredor) ao cinema assistir "Os intocáveis" (um filme francês, retrata duas pessoas que ganham tudo, exatamente porque não têm absolutamente nada a perder).

Maria Sanz Martins

Cronista

"Se você entra no trem errado, não adianta sair correndo na direção certa. Melhor sentar na janela e bater um papo"

Ela me telefonou há pouco, de braço quebrado e alma maravilhada.

Parabéns para ela! Porque é aquela história: se você entra no trem errado, não adianta sair correndo na direção certa. Melhor sentar na janela e bater um papo.

Portanto, meus caros, o medo de perder (tempo, dinheiro, prestígio ou sei lá o quê) é que é o verdadeiro atraso.

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