Já começo afirmando, sem medo de titubear:
os criados em ruas, botequins e terreiros, ou aqueles que apenas são regidos pelos preceitos das tradições populares, já andam sentindo um gosto amargo na garganta diante da aproximação da Sexta-Feira Santa.
O amargor não é de angústia nem
tão pouco estou falando de uma daquelas histórias assombrosas que a crendice popular adora criar em torno da Semana Santa e da Quaresma. Refiro-me ao ritual de tomar o Fecha Corpo (também chamado de milome, quando feito com cipó de mesmo nome), uma bebida feita
à base de ervas, raízes e cachaça, tomada às Sextas-Feiras Santas pelo povo de terreiro, devotos de botequins e outros mais que acreditam na sua força de proteção.
Segundo a tradição, a bebida é fabricada, engarrafada e enterrada — sim, cava-se um buraco para enterrá-la — na Quarta-Feira de Cinzas, sendo desenterrada na véspera da Sexta-Feira Santa, quando é distribuída (não se pode cobrar) e tomada em dose única e pequena, sempre em jejum e acompanhada de rezas e pedidos para proteção do corpo e da alma.
Mas, sem muitas delongas, vamos ao que interessa: a história! Em buscas rápidas sobre a origem do Fecha Corpo, algumas narrativas surgem dizendo que a prática começou na cidade paulista de Monte Alegre do Sul, em 1948, quando um cidadão chamado Zezé Valente fundou um bar na rua principal da cidade.
Anos antes, em 1932, quando trabalhava como telegrafista na cidade de Piracicaba, havia sido acometido pela malária e, após incessante busca pela cura através da medicina tradicional, foi atendido por Benedita, uma senhora negra, benzedeira e ex-escravizada, que também atendia pela alcunha africanizada de Nhá Sabá.
Sabendo da situação do rapaz, ela acreditava que a enfermidade não se tratava apenas de uma doença infecciosa, mas também de mau-olhado e outras mazelas espirituais. Ofereceu-lhe, então, uma bebida feita à base de ervas e cachaça, confeccionada sob direcionamentos sagrados africanos. Foi tiro e queda!
Em pouco tempo Zezé Valente estava novo em folha e, como orientação, Nhá Sabá sugeriu que tomasse a mesma bebida uma vez ao ano, sempre na Sexta-Feira Santa, para protegê-lo dos males da alma. Quando retornou à sua cidade natal, em 1948, abriu um botequim e com ele iniciou a tradição de distribuir o Fecha Corpo na data estabelecida por Nhá Sabá.
Não discordo nem tampouco duvido da narrativa. Acho pouco provável, porém, que tenha sido o início da tradição em todo o Brasil. Explico. Os rituais de fechamento de corpo são bastante comuns nas religiões de matrizes africanas e também indígenas. Desde o início da colonização brasileira, tais práticas e ritos incorporaram-se às datas e manifestações católicas como estratégia de sobrevivência diante de uma realidade de constante perseguição e tentativa de aniquilação de tudo que fosse não católico.

Sendo a Páscoa a data voltada à ressurreição, cura espiritual e outras virtudes ligadas ao renascimento, é impossível precisar quando foi a primeira vez que um Fecha Corpo foi tomado em uma senzala, quilombo ou aldeamento, como prática sincretizada de renovação espiritual e proteção do corpo. Sintoma disso é a distribuição da bebida também em terreiros, acompanhada de rezas e louvação para divindades como Oxalá, caboclos e pretos e pretas-velhas, e não apenas em bares e botequins.
Os mais velhos do povo de terreiro, quando perguntados acerca da longevidade da prática, citam a manifestação da mesma feita por gerações cuja a data da existência ultrapassa a década de 1940. Mas tudo isso é mera formalidade historiográfica. Quando se trata de manifestações e tradições populares, as diversas versões de origem e ramificações das práticas são parte de um potente mosaico que expressa a capacidade do nosso povo de criar e recriar formas de entendimento e pertencimento ao mundo, pouco importando qual de fato foi o verdadeiro marco inicial e sim a resistência e existência em dias atuais.
São de uma importância cultural, social e religiosa tremenda as movimentações na alvorada de uma Sexta-Feira Santa, em que as giras e rezas ao raiar do sol, as mesas improvisadas em calçadas, os botequins com altares improvisados representam faces de um Brasil forjado na fé e esperança por dias melhores.
Distribuição de Fecha Corpo em Vitória:
- Bar do Afonso: Av. Presidente Costa e Silva, 657 - Bairro República.
- Bar do Alemão: Rua Martinho Gomes, 9 - Bairro República.
- Centro Espírita Nossa Senhora dos Navegantes: Rua Osmerina Ribeiro Gomes - Goiabeiras (às 6h da manhã).
- União Espírita Umbandista Pai Oxalá: Rua José Mota Fraga, 338 - São Cristóvão (às 6h da manhã).
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