É historiador e mestre em Estudos Urbanos pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Pesquisa a cultura capixaba e manifestações populares brasileiras. É comentarista da CBN Vitória, no quadro Histórias do Cotidiano

Festa das Canoas de Marataízes: uma tradição em transformação

Presenciar manifestações transformadas é um excelente exercício de reflexão sobre os rumos que vêm sendo impostos aos elementos da nossa cultura popular

Vitória
Publicado em 06/03/2025 às 05h00

“Finalizada a festa da carne, enterram-se os ossos!”

Assim os jornais, em tempos antigos, costumavam noticiar o fim da festa da carne, o carnaval, anunciando o longo período de penitência da Quaresma, espaço de tempo da tradição cristã marcado pela reflexão e abdicação de prazeres habituais.

Para os que habitavam os entornos do litoral sul capixaba e para aqueles que conheciam o território espírito-santense através da ótica cultural, porém, as cinzas da quarta derradeira se diluíam em água salgada e o silêncio litúrgico era interrompido por um bumbo, foguetórios, rezas, ladainhas e canoas ao mar!

Vamos ao que interessa, a história: Marataízes é uma cidade do litoral sul do Espírito Santo, cujo nome tem diversas versões de interpretação, sendo a mais difundida a que diz ser de origem indígena: em tradução do tupi-guarani, “água que corre para o mar”, em alusão à grande quantidade de lagoas que vão de encontro ao mar, presentes em seu território.

Tendo grande parte da sua história atrelada ao município de Itapemirim, ao qual fazia parte, se emancipando apenas na década de 1990, Marataízes aparecia anualmente para o estado através da cultura, quando, em todo segundo domingo do mês de março, sediava a Festa das Canoas.

Os festejos, em sua essência, representam as características e o cotidiano dos moradores do local. Famílias humildes, de pescadores, que viviam no simples.

Dependentes da pesca, viram-se em mares sombrios quando, no começo do século XX, a pescaria estava bastante escassa. Munidos da fé, os pescadores e suas famílias, como diz o mito de origem, rogaram ao Divino Espírito Santo e à Nossa Senhora da Penha, suplicando pelo retorno dos peixes às suas redes, prometendo uma grande comemoração, em terra e mar, caso o pedido fosse aceito.

Dito e feito! O sagrado atendeu e, em 1910, iniciaram o festejo que viria a ser conhecido como a Festa das Canoas, em referência ao tipo de embarcação comumente usado à época.

Dentro dos limites possíveis de uma coluna e com base em relatos de cronistas como Rubem Braga, Levy Rocha e Guilherme Santos Neves, é possível resumir o festejo de outrora da seguinte forma: uma manifestação que mobilizava toda a comunidade local, desde a véspera, em seus preparativos.

Mulheres encomendavam a confecção de roupas novas e homens, liderados pelos “festeiros", organizadores gerais, se empenhavam na fazedura do “pesado”. Chegado o dia, a bandeira com o Divino Espírito Santo, adornada em fitas coloridas e acompanhada de um bumbo de marcação, rezas e ladainhas, passava de casa em casa para dar a bênção e receber graças.

A faixa litorânea próxima à igreja de Nossa Senhora da Penha, palco da missa, era ocupada por barracas de decoração simples, que vendiam, entre outras iguarias, a mais importante delas: a cachaça! Não se espante. Assim como o tambor em ritmo sincopado, a cantoria e apresentações de jongo e participação dos povos de terreiro, a presença da “marvada” é um indício da herança cultural indígena e africana, em que o culto ao sagrado é manifestado de forma festejada, representando um potente cruzamento sincrético de práticas religiosas.

Os barcos, enfeitados com bandeiras e fitas coloridas, iam ao mar levando a imagem de Nossa Senhora da Penha e o mastro do Divino Espírito Santo, a bordo com pescadores e fiéis, focados no propósito da fé e na manutenção da tradição.

Enquanto não retornavam, o coro comia em terra. Música, dança, jogos, giras…

De volta à terra, às imagens sacras visitaram barraca por barraca, despedindo-se do encontro anual e abençoando a continuação dos festejos que, para os mais animados, varava a madrugada.

Uma festa local, familiar, sincretizada, cheia de identidade própria e que, a cada ano, fincava seu lugar no universo conhecido como cultura capixaba.

Ou, em outras palavras, como muito bem pontuou Guilherme Santos Neves: “...fixando a fundo, na alma de nossa gente, graças a Deus, aquela velha tradição do povo!”.

A programação da Festa das Canoas de 2025 começa nesta quinta-feira (6).

Aos mais atentos, é provável que surja o questionamento da razão de tecer toda essa prosa no passado, como se a festa já não existisse mais, e suas canoas navegassem apenas no mar da história.

Festa das Canoas de Marataízes de 2024
Festa das Canoas de Marataízes de 2024. Crédito: Paróquia Santíssima Trindade/Divulgação

Explico. A atual Festa da Canoas traz pouquíssimos desses elementos tradicionais, presentes em suas primeiras edições.

Apagamento? Embranquecimento? Apropriação? Reflexos naturais do tempo? Perguntas e respostas que dariam uma outra coluna para tratar exclusivamente do tema, expandindo a discussão para diversas outras festas tradicionais que enfrentam similares transformações.

Afirmo, porém, que tais transformações não são suficientes para se configurar em um desconvite ao festejo contemporâneo. Ao contrário.

Presenciar manifestações transformadas é um excelente exercício de reflexão sobre os rumos que vêm sendo impostos aos elementos da nossa cultura popular.

Nesses mares turbulentos e agitados da atualidade, de ondas de preconceito, apropriações e ressignificações, a história é uma âncora.

Canoas ao mar!

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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