É cineasta e escritor. Criador da Agência de Redes para Juventude

Sem açúcar, com afeto

A constituição de 88 é repleta de direitos, mas não cumpridos. E essa selvageria cria privilégios para poucos. Grande parte da população não pode se dar ao capricho de escolher um alimento a outro.

Publicado em 20/10/2019 às 13h09
Redes de apoio via grupo de mensagens por celular podem ser uma boa forma de se manter informado e prevenido. Crédito: Unsplash
Redes de apoio via grupo de mensagens por celular podem ser uma boa forma de se manter informado e prevenido. Crédito: Unsplash

O principal assunto lá de casa, durante todos os dias da semana, é a nossa bebê. Nas conversas da cozinha até as rápidas trocas no WhatsApp falamos dela o tempo todo. Temos alguns pactos coletivos, um deles é não dar açúcar até os dois anos e apresentar o máximo de frutas, verduras e legumes para a pequena. Um dia desses, minha parceira de vida conseguiu encontrar um açaí sem açúcar do outro lado da cidade - não foi caro, mas determinou um esforço de tempo e fez muito sucesso batido com banana. Recebi a foto da pequena lambuzada de açaí, fiquei feliz. Mana Açaí, foi a legenda que imaginei olhando a imagem. No dia seguinte recebi outra foto, dessa vez acompanhada de frases indignadas em caixa alta: era um close no rótulo de uma embalagem de um produto industrializado recomendado para bebês a partir de seis meses. Meu olho foi direto na palavra açúcar como segundo ingrediente da fórmula, minha parceira fez um circulo para chamar atenção nessa parte da imagem. Por lei, os ingredientes precisam ser citados na ordem de presença no alimento. Em seguida, trocamos áudios de cumplicidade:

- Açúcar, amor. Um produto para bebês antes dos dois anos com açúcar!

- A Sociedade Brasileira de Pediatria não recomenda açúcar antes dos dois anos e uma marca internacional, que investe milhões em publicidade para dizer "faz bem", tem permissão pra botar no produto?

O assunto sumiu da tela nos dias seguintes. Bateu no peito um sentimento de desesperança. Sei que pode parecer menos importante diante da desigualdade social, o maior problema brasileiro. Mas teimo em acreditar que esse acontecimento é mais um fio dessa teia que nos espreme. Em resumo: Somos um país que naturaliza arbitrariedades. A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda uma coisa, a indústria faz outra, nenhum órgão governamental fiscaliza e o debate publico é silenciado. Ciência, sociedade civil e cultura, por exemplo, sofrem com perseguições que as desacreditam. O resultado é um conjunto de arbitrariedades que cria um terreno fértil para a selvageria. Não vejo outro nome para essa condição que vivemos. A constituição de 88 é repleta de direitos, mas não cumpridos. E essa selvageria cria privilégios para poucos. Grande parte da população não pode se dar ao capricho de escolher um alimento a outro.

Em 2019, somos pessoas buscando criar associações para não sucumbir a desesperança diante de tantas arbitrariedades. Minha esposa, por exemplo, faz parte de um grupo on line com 250 mães que muitas vezes ‘salvam sua vida’. Em rede pra existir! É o que de melhor tenho visto por aí.

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