É presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005). Escreve aos domingos

Considerações entre Veneza de 1200 e Brasília de 2020

Enrico Dandolo foi eleito, em 1192, como doge de Veneza e prometeu que não iria  conduzir os negócios sem a aprovação do conselho do doge

Publicado em 03/05/2020 às 08h12
Atualizado em 03/05/2020 às 08h12
O Grande Canal de Veneza. Cidade cresceu entre pontes, aterros e canais
O Grande Canal de Veneza. Cidade cresceu entre pontes, aterros e canais. Crédito: Gerhard Gellinger - Pixabay

Em 1204, Veneza tornou-se senhora de uma vastidão de terras, passando a controlar 3/8 do Império Bizantino, várias ilhas, a costa ocidental da Grécia e outras regiões, resultado de uma guerra lendária.

Enrico Dandolo comandava a armada de Veneza na cruzada ungida pelo papa Inocêncio 3º. Peripécias levaram os invasores a tentar reaver o trono usurpado do herdeiro de Bizâncio. Constantinopla era a cidade mais impressionante da cristandade, e o ataque inicial foi rechaçado.

O velho líder não teve dúvidas e mandou sua embarcação avançar solitariamente em direção à costa. Inacreditavelmente, foi bem-sucedido. A bandeira de Veneza foi fincada em solo. Seus aliados o seguiram.

Após a vitória, Dandolo negociou habilmente os espólios e morreu pouco depois, sendo enterrado na grandiosa Hagia Sofia. Veneza, porém, recusou o império legado. Controlar estrangeiros custava caro e a desviava da sua fonte de riqueza, o comércio. Apenas não aceitava perder o controle da sua rota de navegação.

Em "Venice: A New History", Thomas Madden conta a história da cidade inesperada.

A laguna no norte da Itália possui muitas ilhotas. No fim do Império Romano, com as seguidas invasões bárbaras, moradores da redondeza passaram a ocupá-las para se proteger. Sua sobrevivência dependia da pesca e da extração de sal para comercialização.

As guerras acabaram por induzir a povoação nas terras inóspitas no centro da laguna, que, com muito aterro e pontes, tornou-se Veneza.

A natureza e o domínio da navegação resultaram em uma sociedade peculiar. Sem terras, não havia regime feudal. A cidade dominada por comerciantes era liderada pelo doge, escolhido pela população. Alguns tentaram transformar o cargo em hereditário, mas Veneza em geral descartava os herdeiros.

Em 1192, a cidade elegeu, por vias indiretas, Dandolo como doge. Ele tinha 85 anos e era cego havia duas décadas.

Seu juramento de posse foi, em boa parte, dedicado a prometer o que não iria fazer, como divulgar segredos de Estado ou conduzir os negócios comunais sem a aprovação do conselho do doge. No governo, ordenou a codificação das leis, entre outras reformas.

Quando dignitários vieram negociar a participação na cruzada, explicou que não tinha autoridade para fazer acordos. Seguindo a governança, a proposta foi apresentada ao conselho do doge, que estimou os custos da empreitada. Posteriormente, foi aprovada pelo conselho da corte.

Dandolo iniciou a travessia aos 95 anos e, aos 97, liderou, cego e em pé na proa, o desembarque em Constantinopla.

A Veneza de 1200 parece saber mais do Estado de Direito do que o mandatário em Brasília.

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