Colunista do jornal A Gazeta e do Gazeta Online

"É preciso que os evangélicos sejam menos atraídos pelo poder"

Confira a entrevista

Publicado em 30/09/2019 às 18h15
Pastor Kenner Terra: "Ser cristão no mundo de hoje é fazer-se servo do bem, ser instrumento de paz e não de ódio, ter senso crítico em relação ao próprio sistema religioso e colocar a vida acima de qualquer outro interesse". Crédito: Divulgação
Pastor Kenner Terra: "Ser cristão no mundo de hoje é fazer-se servo do bem, ser instrumento de paz e não de ódio, ter senso crítico em relação ao próprio sistema religioso e colocar a vida acima de qualquer outro interesse". Crédito: Divulgação

Entrevista: Pastor Kenner Terra

Membro da equipe pastoral da Igreja Batista da Praia do Canto, o pastor Kenner Terra não tem medo de se expor. Para ele, o sistema religioso cristão, às vezes, se afasta do projeto libertador do Evangelho. “Quando uma comunidade de fé aceita, por exemplo, passivamente discursos de ódio, promove imagens e sinais de violência, apoia projetos políticos de poder ou esquece sua vocação para o amor e solidariedade, corre o risco de tornar-se espaço de promoção do antirreino e trair o espírito do Evangelho”, alerta o também escritor, professor, mestre e doutor em Ciências da Religião, entre outros títulos e atividades.

Em recente artigo sobre o governo e a Amazônia, o sr. defende que a igreja e suas lideranças precisam imediatamente de senso crítico e posicionamento profético. Os evangélicos estão alienados em relação a Bolsonaro?

Como tenho defendido, a diversidade de discursos e posicionamentos impede falar em evangélico como categoria homogênea. Talvez isso pareça retórico, mas basta uma olhada rápida em pesquisas para percebermos a multiplicidade dos evangélicos brasileiros. Dito isso, posso afirmar com segurança que ninguém tem legítima autoridade para dizer o posicionamento oficial da igreja protestante ou evangélica. Infelizmente, é comum a visibilidade somente de parte desse conjunto, especialmente das instituições com maior aparato midiático e publicidade. No entanto, não podemos negar que Bolsonaro angariou uma quantidade significativa de votos dos membros de igrejas evangélicas. À vista disso, e respondendo à questão, sim, muitos evangélicos permanecem acríticos em relação ao horizonte político do atual presidente. Entretanto, como mostram esses dados, boa parcela, depois de seis meses de governo, tem se decepcionado e discordado de suas articulações. Contudo, ainda há falta de senso crítico em um número significativo de apoiadores entre os membros de igrejas, mesmo diante de falas e perspectivas injustificáveis.

 

Em outro texto, no ano passado, o sr. afirmou que um cristão, especialmente o evangélico, não deveria votar em Bolsonaro. Por que a maioria dos evangélicos votou nele?

Na época em que escrevi esse texto, estávamos no primeiro turno. Bolsonaro despontava, mas ainda não havia ganhado tanta projeção entre os evangélicos e entre os católicos. No decorrer dos meses e das eleições, isso foi se intensificando e no segundo turno tínhamos grande porção das igrejas ao lado daquele que se consagraria presidente da República. Vários fatores contribuíram na construção desse quadro entre os evangélicos. Um deles seria a decepção com o final do governo petista. A narrativa da luta contra a corrupção ser sinônimo de enfrentamento ao PT fez com que os evangélicos encontrassem em Bolsonaro e seu radicalismo o enfrentamento contra a então causa da corrupção no Brasil. Mas a principal causa foi o atraente discurso moralista e conservador, o que revela o lugar de compreensão de parte da igreja evangélica brasileira. Mesmo não sendo a maioria, mas infelizmente pode ser constado, alguns encontraram em Bolsonaro um tipo de representante da sua visão de mundo, o que revelou uma face homofóbica, racista, violenta, com tiques fascistas e pouco misericordiosa, da igreja evangélica brasileira. Em suma, o moralismo conservador, a defesa de uma modalidade de família tradicional, a midiatização alarmante do terror, a superficial compreensão teológica e, em menor quantidade, a tendência antidemocrática de alguns evangélicos foram fundamentais para o apoio de grande parte da igreja brasileira.

 

O sr. se considera um pastor de esquerda? É possível um cristão evangélico ser socialista, por exemplo?

Como seguidor de Jesus, entendo o Evangelho do Reino não como instrumento de salvação simplesmente da alma, mas horizonte de enfrentamento a qualquer projeto pecaminoso de desumanização. Naturalmente, justiça social, direitos humanos, relação igualitária de gênero, luta por políticas públicas que produzam dignidade e qualquer ação relacionada ao bem comum pertencem à vocação da tradição judaico-cristã. A pobreza, a má distribuição de bens, os autoritarismos opressores e a ganância geradora de desigualdades sempre foram criticados pelos profetas, denunciados nos Salmos e expostos como pecado por Jesus. Além disso, historicamente a tradição protestante sempre esteve envolvida em questões da esfera pública a partir da fé evangélica. Um cristão evangélico pode ser de esquerda ou direita liberal, mas não deve confundir qualquer dessas posições com o próprio Reino ou anular seu senso crítico a ponto de não se dar conta da transitoriedade de qualquer projeto político e ideológico. Mais do que isso, negar a possibilidade de um cristão evangélico ser socialista ou de esquerda, por si só, já seria antiprotestante, porque viola a liberdade e autonomia do sujeito. Então, não diria que sou um pastor de esquerda, porque ao mesmo tempo em que encontro vários pontos louváveis nesse horizonte político, sei de suas contradições e fragilidades. No máximo, aplicaria a mim o termo usado “protestante progressista”.

 

A pauta evangélica é considerada conservadora e, por vezes, até reacionária. Essa imagem corresponde à realidade?

Dizer que a pauta evangélica é conservadora não seria uma mentira, mas não é toda verdade. Grande parte dos evangélicos no Brasil legitima, defende, promove e se relaciona com perspectivas muitíssimo conservadoras e reacionárias. Um exemplo disso é a bancada evangélica, a qual não pode ser citada sem as bancadas da bala e do boi. Não obstante, há políticos evangélicos, igrejas, membros e lideranças cuja teologia e posicionamento não se enquadrariam nessa perspectiva. Ao mesmo tempo em que na Marcha para Jesus deste ano em São Paulo tornaram o púlpito em palanque, a Frente Evangélica pelo Estado de Direito tem se articulado em torno da defesa da laicidade do Estado. Essa mesma tensão pode ser percebida em nossa cidade. Na Grande Vitória temos igrejas e políticos historicamente relacionados às agendas mais conservadoras. Por outro lado, este ano, a partir do Fórum Evangelho e Justiça, realizamos um workshop a fim de discutir o compromisso dos evangélicos com os direitos humanos, no qual reunimos representantes de diversas comunidades de fé da região. Então, entre os evangélicos encontramos disputa de narrativas, mesmo que em uma primeira e superficial análise tenhamos a sensação de existirem somente as conservadoras e reacionárias.

 

O pastor Caio Fábio, um dos líderes do movimento evangélico do país, disse recentemente que Cristo não está presente nas igrejas cristãs. O sr. concorda?

Eu diria que Cristo, a despeito de tantas coisas, está inclusive nas igrejas cristãs. Talvez, o mais justo seria confessar que o sistema religioso cristão e suas tendências institucionais, por vezes, afastam-se do projeto libertador do Evangelho confundindo sua missão e ocultado o testemunho de Cristo. Quando uma comunidade de fé aceita, por exemplo, passivamente discursos de ódio, promove imagens e sinais de violência, apoia projetos políticos de poder ou esquece sua vocação para o amor e solidariedade, corre o risco de tornar-se espaço de promoção do antirreino e trair o espírito do Evangelho. Contudo, como afirma o visionário João, há alguns que não mancharam suas vestes.

 

O que precisa mudar nas igrejas cristãs, principalmente as evangélicas?

Sua sensibilidade em relação aos temas relacionados à política, direito e justiça. Ainda somos muito dualistas e pouco nos preocupamos com temas relacionados à vida. Ou quando fazemos, erramos por falta de melhor análise teológica. É preciso urgentemente que as igrejas evangélicas tenham maior consciência em relação à histórica defesa protestante pela laicidade do Estado, construam espaços maduros e que sua presença pública seja tratada com responsabilidade, não se permitam abraçar acriticamente projetos políticos partidários, realimentem sua função profética de denúncia, sejam menos atraídas pelo poder e não se permitam mais confundir agenda reacionária com defesa da fé. De alguma maneira, isso significa abertura contínua de autoanálise e abertura para reformas periódicas.

 

Qual a sua avaliação sobre líderes neopentecostais como Edir Macedo, Silas Malafaia e Valdomiro Santiago?

É importante entender que cada nome citado nessa questão representa discursos teológicos e políticos diferentes. Poderíamos, inclusive, inserir entre neopentecostais Edir e Valdomiro, enquanto o Silas Malafaia deveria ser colocado entre pentecostais, por ser ele da Assembleia de Deus. Entendo que esses líderes representam esperança e consolo pastoral para muita gente. Essas pessoas precisam ser levadas em consideração e respeitadas. Exatamente por esse dado, esses personagens têm indiscutível influência. Por essa razão, a visão de mundo, teologias e envolvimento políticos suspeitos desses líderes servem de paradigma para grupos enormes de pessoas, ao mesmo tempo em que geram tantas desconfianças na arena pública. Entendo que a maneira como tratam, cada um com suas peculiaridades, temas sérios da política brasileira aparentam mais desejo de poder do que promoção do evangelho. Eles e seus pares políticos não me representam.

 

As igrejas protestantes históricas são minorias no Brasil. O espírito da Reforma Martinho Lutero se perdeu com o tempo?

Sim, segundo os dados, as igrejas históricas são minorias no Brasil. No entanto, não sei bem se isso seja a razão da perda do espírito da Reforma. Precisamos lembrar que a Reforma Protestante foi um movimento plural e se desenvolveu historicamente em diversos fenômenos. Talvez, o que se perdeu, ou tem se ocultado, é o que o teólogo alemão Paul Tillich chamaria de “princípio protestante”, o qual afirma ser a criticidade o etos do protestantismo. Valeria muito aos grupos dessa tradição resgatar ou intensificar seu lugar de crítica a qualquer sistema autoritário e desumanizador. Nesse sentido, sim, as igrejas protestantes, históricas ou não, perderam esse caráter.

 

Qual sua avaliação sobre o papa Francisco? É possível uma aproximação maior entre as igrejas evangélicas e a católica?

O papa Francisco representa um avanço para a cristandade. Sua humildade, a maneira como trata temas caros no cristianismo e o seu cuidado especial com grupos mais fragilizados é modelo de testemunho cristão. No entanto, como acontece entre os evangélicos, há grupos tradicionais e conservadores resistentes a ele. Basta acompanharmos as reações contrárias à agenda do Sínodo da Amazônia para percebermos tal realidade. O pontífice já demonstrou grande interesse de aproximação com os ortodoxos, protestantes e pentecostais. Sua visita à Suécia, na ocasião da comemoração dos 500 anos da Reforma, seu contato com a Igreja Luterana em Roma, o pedido público de perdão por conta das perseguições católicas às outras igrejas e vários atos simbólicos demonstram sensibilidade e espírito de unidade, apontando para a construção de diálogos mais amistosos e frutíferos entre protestantes e católicos, o que já vem sendo realizado em alguns setores da igreja desde o Vaticano II. Assim, reconheço o grande avanço dessa temática com o atual papa.

 

O que é ser cristão no mundo de hoje?

Viver a vida e fazer escolhas seguindo o modelo de Cristo. Isso significa amar a justiça, dedicar-se à retidão, lutar pela equidade, solidarizar-se com os oprimidos, posicionar-se profeticamente contra todo projeto desumanizador, defender a liberdade, denunciar a violência, respeitar a diversidade e laicidade, fazer-se servo do bem, ser instrumento de paz e não de ódio, ter senso crítico em relação ao próprio sistema religioso e colocar a vida acima de qualquer outro interesse. Ou seja, trazer à memória o eixo central da fé anunciada por Jesus: amar a Deus e ao próximo como a si mesmo.

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