A resistência antimicrobiana (RAM) não é mais uma ameaça futura. Ela já está entre nós — silenciosa, letal e estruturalmente invisibilizada. Em 2024, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, foi direto: “A RAM ameaça apagar um século de progresso em saúde”. E os números falam por si: mais de 1,27 milhão de mortes diretas por ano no mundo, ultrapassando HIV/AIDS e malária combinados. As projeções são ainda mais graves: 39 milhões de vidas perdidas até 2050, com quase 10% desse total concentrado na América Latina.
Entre os principais agentes desse cenário está a Klebsiella pneumoniae, resistente a carbapenêmicos — antibióticos de última linha. Em algumas regiões do mundo, mais da metade dos tratamentos já são ineficazes.
No entanto, a resistência antimicrobiana se alimenta de extremos. Países ricos enfrentam o uso indiscriminado de antibióticos; países em desenvolvimento, como o Brasil, ainda lidam com o acesso precário a tratamentos eficazes. Estamos diante de uma crise de iniquidade: vidas seguem sendo perdidas não apenas pela força dos microrganismos, mas pela fragilidade de nossos sistemas de saúde e governança global.
No Brasil, essa dicotomia é brutal. Um estudo publicado este ano revela que, apesar de contar com um dos sistemas de vigilância mais avançados da América Latina, os gargalos operacionais perpetuam desigualdades intoleráveis. Em 2019, de 101 mil pessoas com infecções por bactérias resistentes a carbapenêmicos, apenas 363 receberam o tratamento adequado — apenas 0,36% dos casos. A estimativa é que a RAM seja responsável direta por 34 mil mortes por ano no Brasil, com impacto indireto em outras 138 mil. Um total de 172 mil vidas perdidas anualmente, superando muitas neoplasias.
A escassez de testes rápidos e o custo elevado de tecnologias como o sequenciamento genético fazem com que médicos prescrevam sem a certeza de estarem tratando o microrganismo corretamente e, sem diagnóstico, não há tratamento eficaz.
Apesar do cenário, há respostas emergindo. O Brasil vem construindo políticas públicas que dialogam com a estratégia global da Uma Só Saúde — abordagem integrada entre saúde humana, animal e ambiental. O Plano Nacional de Ação contra RAM (PAN-BR) adota a classificação AWaRe de antimicrobianos.
A classificação AWaRe (Acesso, Vigilância, Reserva) é uma ferramenta da OMS para categorizar antibióticos, promovendo seu uso racional e combatendo a resistência antimicrobiana. Regulamenta a venda com receita médica (RDC 20/2021) e avança na vigilância integrada.
O SUS continua sendo um pilar estratégico: programas como o Programa Nacional de Imunizações (PNI) e a Rede Nacional de Laboratórios de Saúde Pública (Lacens), conforme discutimos em recente comentário na revista The Lancet Regional Health - Americas.
Além disso, na 2ª Reunião de Alto Nível da ONU sobre RAM, em setembro de 2024, com a participação ativa de países do Sul Global, incluindo o Brasil, foi firmada uma Declaração Política vinculante, com metas concretas:
- Reduzir em 10% a mortalidade por RAM até 2030;
- Diminuir em 20% o uso inadequado de antibióticos em humanos e em 30% na agropecuária;
- Garantir financiamento justo para novos antibióticos e diagnósticos acessíveis.
Estive lá, representando o Brasil e levando as vozes do Sul Global, onde a equidade, o controle social e a abordagem intersetorial não são opcionais — são indispensáveis.

A RAM não se isola das demais crises planetárias. O documento da ONU foi inovador ao relacioná-la diretamente às mudanças climáticas e às desigualdades estruturais. Simulações mostram que o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) pode reduzir a RAM em 5,1%, mais que o dobro do impacto da redução isolada no uso de antibióticos. O oposto, como estamos vendo em zonas de conflito, sem acesso à água potável ou saneamento, pode acelerar o avanço da RAM.
Hora de agir: resistir à RAM é defender a vida. Precisamos implementar a Declaração da ONU de 2024 com compromisso real de todos os países. No Brasil, temos a tarefa de garantir financiamento sustentável ao SUS; expandir a vigilância integrada em Uma Só Saúde conforme a declaração aprovada no Brasil durante a sua presidência do G20 e incluir populações negligenciadas nas políticas de acesso.
Na luta contra a resistência antimicrobiana, cada dia de inação fortalece as superbactérias e enfraquece nosso pacto civilizatório. É hora de fazer das políticas públicas uma barreira contra as mortes que podem ser evitáveis.
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