Publicado em 26 de maio de 2020 às 10:10
Se, antes do coronavírus, higienizar toda embalagem que vem da rua e só sair quando fosse essencial poderiam parecer exagero, hoje são recomendações essenciais para evitar o contágio. Mas a tensão constante de ser infectado pode fazer com que esses hábitos sejam repetidos mais do que o necessário.>
"Em uma época de pandemia, que obriga todo mundo a ficar em reclusão e a tomar cuidado, todos nós vamos estar muito mais paranoicos e obsessivos do que antes", diz Marcos Oreste Colpo, psicólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). "Toda essa ameaça de contaminação e da doença, que pode ser leve ou fatal, nos deixa com uma ansiedade e uma tensão enormes.">
É quando esses sentimentos se intensificam, explica Colpo, que as pessoas desenvolvem hábitos como forma de aliviar essas tensões - é o caso, por exemplo, de limpar repetidamente uma superfície ou checar compulsivamente a existência de sintoma de coronavírus.>
Letícia Silvério, 18, estudante de medicina em Pelotas (RS), é uma das que intensificou a limpeza da casa no isolamento.>
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"Antes da quarentena eu conseguia olhar para coisas que não estavam perfeitamente limpas e organizadas e pensar 'ok, mais tarde eu arrumo isso'. Agora, eu fico agoniada se não faço na hora", conta.>
Ela conta que, em uma das vezes que teve que ir ao mercado, lavou as mãos assim que entrou em casa. Quando terminou a lavagem percebeu, no entanto, que havia encostado na mesma torneira que abriu com as mãos sujas e resolveu higienizar também a torneira. Mas, tocando de novo a torneira, sentiu necessidade de lavar ainda mais as mãos.>
"Eu penso em limpar mais porque é uma atividade que faz o tempo passar e, quando terminada, me traz uma sensação boa. Então eu acabo buscando essa sensação mais vezes e, consequentemente, limpando mais vezes.">
Nem toda repetição é considerada algum tipo de doença - e há critérios que ajudam a diferenciar hábitos exagerados, mas ainda considerados saudáveis, de possíveis compulsões.>
Letícia Silvério
EstudanteDaniel Costa, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, explica que há dois sintomas centrais para diagnosticar um transtorno obsessivo-compulsivo, conhecido como TOC.>
O primeiro são as obsessões, que são os pensamentos, ideias e imagens que tem um caráter repetitivo, intrusivo e de conteúdo desagradável. É o caso, por exemplo, do medo de contaminação, que pode se manifestar em crises de ansiedade e falta de ar.>
O segundo sintoma dos casos são as chamadas compulsões, comportamentos repetitivos que têm como função aliviar o desconforto que a obsessão traz.>
"É muito comum o ritual de limpeza e lavagem para quem tem medo de contaminação, pessoas que usam luva para tudo, exageram nas recomendações de isolamento", explica o psiquiatra. >
Mas só a presença de sintomas não é suficiente para se ter um diagnóstico. Como parâmetro, afirma Costa, as compulsões têm que consumir pelo menos uma hora do dia do paciente e estar associadas a algum tipo de prejuízo cotidiano. >
Ele adverte, no entanto, que é preciso rever esses critérios no período de pandemia. "Temos que levar em conta as recomendações sanitárias. É muito provável que muita gente esteja gastando mais tempo com esses comportamentos de limpeza." >
Adryan Barbosa, 19, que tem saído para trabalhar no setor portuário em Vitória (ES), conta que uma das suas maiores preocupações são possíveis sintomas de coronavírus. >
"Para mim, é comum sintoma de gripe e de alergia porque eu tenho rinite alérgica. Só que como os sintomas da Covid são muito parecidos com os da gripe, acaba ficando aquela dúvida na minha cabeça." >
Desde que a pandemia começou, ele, que já tinha problemas de ansiedade, sentiu uma piora no quadro. >
"Acabo medindo minha temperatura muitas vezes por dia. Começo a sentir frio e aí quando vou medir a temperatura, está lá, 36ºC. É uma coisa psicológica." >
Ayla Melo, 20, que faz cursinho em Maceió (AL), também criou o hábito de checar se está com febre. >
"O único que está trabalhando em casa é meu pai aqui e fiquei paranoica com isso. Chequei minha temperatura mais que o normal, estava realmente achando que tinha febre, mas não estava. Comprei até outro termômetro por achar que o meu estava quebrado", conta. >
Ela, que tem quadros de sinusite e rinite, acha difícil diferenciar os sintomas e também começou a se isolar no quarto quando algum deles aparecia. >
"Para lidar com a ansiedade, estou procurando terapia online, meditação em casa. Uso alguns aplicativos para fazer ioga, exercício físico", diz Melo. >
"Uma noção importante de saúde e doença é que a doença é restritiva", explica o psicólogo Marcos Dalpo. >
Mesmo em isolamento, por si só uma situação limitante, é possível criar parâmetros para perceber se esses afazeres estão ocupando mais tempo que o normal. >
Ayla Melo
Estudante"Tem muita gente trabalhando em casa, com projetos, e quando percebe que está deixando de fazer essas coisas em troca dessas ritualizações, isso pode ser um sinal importante", afirma. >
Além disso, o psiquiatra Daniel Costa também explica que há sinais mais concretos. É o caso de pessoas que, de tanto lavar as mãos, começar a ter uma dermatite de contato, exemplifica. >
Ele afirma que houve um aumento na demanda de trabalho no consultório em que atua. "Pacientes que estavam estáveis pioraram da ansiedade, depressão, voltaram a ter crise de pânico, houve gente que começou a beber mais. Vi muitos pacientes com TOC que pioraram muito no contexto de pandemia". >
A terapia comportamental e tratamento medicamentoso são os duas possibilidades para lidar com o transtorno. A primeira envolve orientar o paciente a enfrentar os medos que sente e evitar fazer os rituais. >
"Estamos vivendo um momento histórico marcado por muito estresse, mudança muito radical do nosso estilo de vida, famílias lidando com morte ou adoecimentos. Tudo isso é fator de risco para toda e qualquer doença mental", afirma Costa. "Mas podemos especular que, em um futuro próximo, quando a situação estiver normalizada, mesmo não sabendo se vamos voltar ao normal, podemos esperar um aumento de casos [como esses]." >
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