Publicado em 28 de julho de 2022 às 05:53
SÃO PAULO - A carta é uma defesa da democracia, mas não traz a palavra "golpe", um fantasma que voltou a pairar sobre o Brasil. Ela critica ataques contra o processo eleitoral, mas não menciona o presidente Jair Bolsonaro (PL), contumaz difamador das urnas eletrônicas. >
Timidez de seus autores? Receio de represálias caso fossem mais explícitos? Sinal de que buscam reanimar uma candidatura de terceira via? Nada disso.>
O documento foi concebido com expressões moderadas para atrair o maior número possível de signatários. Não podia conter nada que soasse radical, divisivo, pró-PT, anti-Bolsonaro ou de qualquer forma partidário.>
Parece ter dado certo, porque a "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito", que será lida em encontro na Faculdade de Direito da USP no dia 11 de agosto, já ultrapassa 160 mil assinaturas - e quem quiser aderir ainda pode fazê-lo pelo site "Estado de Direito Sempre!".>
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Chegar à versão final foi um processo de cautela e detalhismo.>
"Se uma palavra pudesse tirar apoio, a gente trocava, suprimia", diz Dimas Ramalho, conselheiro do TCE-SP (Tribunal de Contas do Estado de São Paulo) e um dos autores do manifesto.>
"Se tivesse 'golpe', por exemplo, certas pessoas não assinariam. Então fomos falando as coisas com outras palavras. Não adianta querer um manifesto para convertidos", afirma.>
Não só isso. O texto foi sendo burilado até que todos os setores da sociedade pudessem assiná-lo, caso o desejassem, sem que se sentissem de algum modo impedidos por razões profissionais.>
Um grupo que poderia ficar de mãos atadas diante de um texto mais explícito, segundo os autores, é o dos magistrados, proibidos por lei de exercer atividade político-partidária.>
Seria um problema e tanto, porque um dos articuladores da carta é o juiz federal Ricardo de Castro Nascimento.>
No começo de junho, ele teve uma conversa com o advogado Roberto Vomero Mônaco sobre a escalada golpista de Bolsonaro.>
Amigos desde os tempos da Faculdade de Direito da USP, recordaram-se de 1977, quando o professor Goffredo da Silva Telles Jr. leu a "Carta aos Brasileiros", um documento histórico contra a ditadura militar.>
Ambos concordaram que caberia, no momento atual, um manifesto semelhante.>
Colega do juiz na faculdade, o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) participou do encontro e fez duas sugestões: que o movimento fosse suprapartidário e que incluísse antigos dirigentes do Centro Acadêmico XI de Agosto, o grêmio estudantil do direito USP.>
Antonio Roque Citadini seria o canal de contato. Conselheiro do TCE-SP, Citadini formou-se no final da década de 1970 na São Francisco, como é conhecida a Faculdade de Direito da USP, onde foi contemporâneo de Dimas Ramalho, seu colega de tribunal hoje em dia e presidente do XI de Agosto em 1978.>
Os dois viram Goffredo ler sua carta há 45 anos e se empolgaram com a ideia de ter participação ativa em algo parecido.>
Ramalho e Citadini incluíram na conversa Thiago Pinheiro Lima, que é procurador-geral do Ministério Público de Contas, e Luiz Antonio Guimarães Marrey, contemporâneo dos dois na São Francisco e procurador-geral de Justiça de SP por três mandatos, além de secretário municipal e estadual -sempre em gestões do PSDB.>
De acordo com o juiz Ricardo Nascimento, a chegada dessa turma ocorreu no começo de julho. "A partir daí, a coisa pegou fogo", afirma.>
Os seis começaram a trabalhar num texto sem viés partidário, sintético, focado no essencial: o Brasil terá eleições e seus resultados serão respeitados.>
Com o esboço em mãos, foram ao diretor da Faculdade de Direito da USP, Celso Campilongo. Não cogitavam lançar a carta em outro lugar que não fosse a São Francisco.>
Campilongo, que também estava na faculdade em 1977, vinha tratando com entidades empresariais a leitura de algum manifesto no dia 11 de agosto, quando serão comemorados os 195 anos da fundação dos cursos jurídicos no Brasil.>
Entendendo que as duas iniciativas se complementavam, Campilongo se somou ao grupo para chegar à versão final da carta.>
"Um grande mérito do documento é ter essa linguagem capaz de abarcar todas as ideologias. É algo bastante simbólico do que pensa a maioria da sociedade brasileira neste momento, que não está disposta a aceitar retrocessos", diz o diretor.>
No dia 18 de julho, o colegiado sacramentou a união num jantar na casa de Citadini, ao qual compareceram outros articuladores do manifesto: o advogado Flávio Bierrenbach, ex-ministro do Superior Tribunal Militar e figura fundamental na carta de 1977; o advogado Gustavo Ungaro; e Ana Elisa Bechara, Floriano de Azevedo Marques Neto e Ignácio Poveda Velasco, professores de direito da USP.>
Decidido a pôr a carta no ar até 26 de julho, o grupo buscou coletar signatários para dar corpo ao movimento. Novas pessoas passaram a ajudar nessa reta final, como advogada Raquel Preto, que conseguiu centenas de adesões.>
"É uma carta de chamado da sociedade para respeitar os pilares da democracia. Foi uma tentativa de acordar a sociedade jurídica, mas agora já extrapolou essa comunidade, com pessoas de diversas áreas", diz Preto.>
Entre os signatários, há ex-ministros do Supremo Tribunal Federal, como Nelson Jobim, Joaquim Barbosa e Celso de Mello, e banqueiros, como Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles (copresidentes dos conselho de administração do Itaú Unibanco).>
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