O governo federal contabilizou 4.879 violações de liberdades fundamentais por líderes religiosos no Brasil entre agosto de 2022, quando começou o levantamento, e novembro de 2023. Relatos foram feitos por alvos ou testemunhas à ouvidoria do hoje Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
A crença da vítima não está presente em todas as ocorrências. Dentre as que possuem, destacam-se protestantismo (151) e catolicismo (70). Não há dados de períodos anteriores, para comparação.
Os casos descritos envolvem desrespeitos a direitos sociais, vida, liberdade, integridade e igualdade. Episódios de LGBTfobia, por exemplo, chegaram a 153.
Matheus Ferreyra, 24, é um retrato disso. Morador do Recife, capital pernambucana, ele foi expulso de uma congregação por ser gay.
O vendedor cresceu como evangélico. Frequentou templo da infância à maioridade sob influência familiar. Segundo ele, todos notavam sua homossexualidade e, por meio de orações, suplicavam uma suposta cura. Logo, ele agia da mesma maneira. "Pedia muito a Deus para arrancar de mim o desejo por homens", lembra.
Seu pastor encontrou uma companheira para o jovem e insistiu na viabilidade desse relacionamento durante seis meses. Não funcionou, e o sacerdote expulsou Matheus do culto. Hoje, ele frequenta a terapia para tratar sequelas daquela época.
Após receber denúncia --que pode conter mais de uma violação--, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania examina seu teor e a encaminha às autoridades competentes.
Há, no entanto, um empecilho até essa última etapa, avalia Gustavo Coutinho, da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transexuais). Ele diz que muitos cidadãos preferem esconder as agressões homofóbicas sofridas pela possibilidade de julgamento no círculo religioso e até no seio familiar, muitas vezes parte do primeiro grupo.
"Porém, não devemos culpar a religião por todo o mal. O verdadeiro problema é o fundamentalismo", afirma. Coutinho diz ser importante incentivar expressões acolhedoras da fé.
Noite de sábado, 11 de novembro deste ano. Uma fila foi formada da porta ao púlpito da Igreja Cristã Contemporânea, no Tatuapé, zona leste paulistana. Era a recepção de novos membros, que recebiam abraços dos enfileirados. Você é amado, diziam todos aos recém-chegados.
A igreja acolhe pessoas não heteronormativas. Aos montes, elas chegam todas as semanas em busca de aceitação, palavra de ordem no espaço. "Sorria, Jesus te aceita. Este é o lema da igreja. Ninguém precisa mudar, precisa ser respeitado", diz o fundador, pastor Marcos Gladstone, 47.
O líder religioso criou sua congregação em 2002, após uma experiência penosa compartilhada com muitos de seus fiéis: ser injuriado em um templo por ser homossexual. Diz ter sofrido muito com a situação, da qual teve dificuldades de sair. Até uma esposa arranjou para tentar se encaixar.
"Viver no faz de conta é impossível. Com a minha voz, quero incentivar os seres humanos a mostrarem sua verdade", diz Gladstone, casado com outro homem há mais de uma década e pai de quatro filhos. "Apesar do meu esforço, sabemos que a esfera religiosa é ainda muito dura com LGBTs, e histórias de sofrimento se multiplicam", acrescenta.
Uma dessas histórias foi vivida pelo publicitário Lucas, 26. Ele prefere esconder seu sobrenome. Morador da cidade de São Paulo, ele se descobriu bissexual na adolescência. Ainda jovem, temia a opinião dos correligionários protestantes sobre o assunto.
Ao falar, fiscalizava a entonação da própria voz para soar viril. Andando, mantinha postura rígida, como entendia que deveria ser a locomoção masculina. Preferências musicais também eram omitidas. Nada de falar sobre divas do pop e seus novos álbuns e interpretações bombásticas. Isso, tinha certeza, o entregaria.
Em 2017, Lucas conheceu um rapaz. Os encontros eram cada vez mais frequentes. Alguém os avistou e delatou o caso à igreja que ele frequentava. Lá, surgiram ainda fofocas sobre romances com outros homens.
O pastor julgou ser usual a atração por semelhantes. Apenas mais um pecado dentre tantos. Se Lucas abdicasse da prática, seria perdoado e poderia frequentar o templo.
Inicialmente, o jovem aceitou esses termos, mas passou a sentir crescente desconforto. Decidiu então abandonar a igreja, mas não o credo. "Deus ama todas as suas criações e as moldou como são", diz.
A ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania possui diversos canais para denunciar ataques, perseguições a grupos minoritários e outros tipos de violações. Elas podem ser formalizadas de maneira anônima e ganham protocolo para acompanhamento.
O Disque 100 é o canal para atendimento via telefone. Também é possível buscar ajuda pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil, pelo WhatsApp --por meio do número (61) 99656-5008-- ou pelo Telegram, digitando "Direitoshumanosbrasil" na busca da plataforma.
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