Publicado em 25 de março de 2020 às 18:15
Análise por Igor Gielow, da Folha de São Paulo>
O isolamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) cresceu de forma exponencial nesta quarta-feira (25), e a crise sanitária do coronavírus coloca cada vez mais em dúvida sua capacidade de continuar à frente do cargo. Os próximos dias serão cruciais.>
O artífice do movimento foi João Doria. O governador tucano de São Paulo abriu um rombo no já combalido casco do navio governista, descontrolado pelo vaivém sempre tendendo à radicalização de Bolsonaro na condução da gestão da emergência.>
O presidente tentou trazer Doria para seu campo ao topar a série de reuniões com governadores via teleconferência, mas acabou mordendo a isca do tucano. O paulista fez uma apresentação dura, mas cordial, durante o encontro desta manhã com seus outros colegas do Sudeste.>
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Como o temperamento de Bolsonaro é previsível, o presidente reagiu aos berros. Se havia críticas que usualmente colariam em Doria, como a pecha de ter abandonado Bolsonaro uma vez que se aproveitou da onda conservadora que levou os dois ao poder, elas se diluíram na forma.>
A aposta radical do presidente, exposta claramente no caudaloso pronunciamento sem aviso prévio da noite anterior, tem um erro central de formulação: se é óbvio que a economia precisa ser preservada como o sistema de saúde, Bolsonaro e seu estilo agressivo carimbaram nele o selo de insensível.>
Há aspectos bastante imponderáveis na evolução da epidemia, como as diferenças entre diversos países demonstram. Mas, à falta de certezas científicas ainda em discussão, apostar no caso mais brando de crise não é a política mais sensata no momento. Citar "histórico de atleta", então, é tão eficaz como sugerir mascar alho para matar o vírus.>
Por outro lado, o debate acerca de quarentenas existe no mundo todo, com o conceito de confinamento vertical no centro. Sem entrar no mérito médico, é uma questão que pode, se bem comunicada, convencer parcela expressiva da população irritada com as restrições e dar fôlego a Bolsonaro fora de suas bolhas mais ideológicas.>
Doria é presidenciável, isso não é segredo para ninguém. Assim como Wilson Witzel (PSC-RJ) e, num delírio de parte da esquerda, Flávio Dino (PCdoB-MA).>
Bolsonaro também é candidato à reeleição, como disse no começo do mandato, e a aposta no terror econômico da crise, em detrimento de recomendações internacionais acerca do vírus, parece ter mais a ver com o temor de que uma recessão enterre suas chances.>
O tucano já formatou todo um discurso das marcas negativas que Bolsonaro criou exclusivamente para si nessa crise, como a lembrança dos mortos paulistas na pandemia. Caso todos cheguem a disputar só em 2022 a eleição, retóricas estão prontas de lado a lado.>
Isso dito, o trabalho de diferenciação de estilos de liderança parece consolidado. Doria venceu o duelo e viu sua ação recompensada com a debandada sequencial de aliados de Bolsonaro, o mais vistoso deles Ronaldo Caiado, governador goiano pelo DEM. O político é simbólico: comanda um dos estados centrais do agronegócio, setor que foi fulcral para a eleição do presidente.>
A reunião de governadores marcada para a tarde desta quarta será mais um ponto de inflexão na disputa. Do jeito que se desenha, o impasse no país na prática só se resolve com a renúncia de Bolsonaro, dado que não parece haver condições políticas para a abertura de um processo de impeachment.>
É isso que o movimento dos governadores indica, turbinado pela nota de repúdio ao presidente feita pela frente nacional dos prefeitos. Bolsonaro, desde que foi para os braços do povo que pedia o fechamento do Congresso e do Supremo, perdeu a interlocução civilizada com os outros Poderes. Com a crise do coronavírus apavorando populações, caberá a quem está na ponta manter as rédeas da governabilidade.>
Uma outra sinalização importante foi dada pelos militares, tão associados ao capitão reformado do Exército ora no Planalto. A ativa riscou uma linha no solo com o a mensagem sóbria do comandante do Exército, Edson Pujol, vendo a crise como "talvez a maior missão de nossa geração".>
Já os fardados no governo estão atônitos, segundo relatos disponíveis, com o fracasso na sua tentativa de enquadrar o presidente.>
As táticas adotadas por Bolsonaro são claramente de escalada de confronto, amparado em sua base digital e na porcentagem da população que o apoia --talvez um terço do eleitorado, mas isso parece fluido à medida que aumenta o volume dos panelaços.>
A alienação dos estados tem esse preço político, mas Bolsonaro conta com um ativo: o Ministério da Saúde. Não há como combater a crise do coronavírus sem coordenação nacionalizada, e estados mais dependentes de repasses federais têm menos espaço de manobra do que São Paulo, por exemplo.>
A própria posição de Witzel, que se disse otimista após a caótica reunião da manhã, sugere isso. O Rio está quebrado, e precisa de ajuda federal para evitar uma tragédia em seu sistema de saúde. De quebra, se Bolsonaro sair melhor do embate, ele não terá se desgastado tanto quanto Doria.>
No limite, há o risco de ser necessário decretar intervenções estaduais num pico de crise. Se isso ocorrer em série, o próprio conceito de federação se esvai. A disputa sobre respiradores, levantada por Doria no duelo da manhã, é um exemplo inicial desse problema.>
Essa é a queda de braço que está ocorrendo neste exato momento, com repercussões sérias sobre a estabilidade política do país. Virão mais anúncios de pacotes para a economia e, provavelmente, para o bem-estar da população.>
Mas ao emular o comportamento de seu ídolo, Donald Trump, Jair Bolsonaro esqueceu que não tem os trilhões de dólares à disposição do americano para socorros financeiros.>
O imbróglio político é o mais sério, e na realidade muito mais grave por envolver vida humanas, desde a crise que levou ao impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016.>
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