Publicado em 13 de maio de 2024 às 16:02
"Só de ouvir o barulho da chuva já fico desesperada. Vem aquela ansiedade, o coração fica acelerado e começo a chorar. Quando chove à noite eu não durmo e fico na janela olhando o rio para ver se ele está subindo".>
O relato é da guia de turismo Carla Suzart, de 47 anos, que mora no bairro Coqueiral, em Recife (PE), e há dois anos viu a casa ser invadida pelo transbordamento do rio Tejipió, após os temporais, que, ao todo, mataram ao menos 147 pessoas na Região Metropolitana do Recife.>
Sentimentos como os relatados pela guia de turismo são comuns em pessoas que enfrentaram alguma tragédia ou trauma e podem desencadear o transtorno de estresse pós-traumático – o TEPT, como as vítimas das enchentes que atingem cidade do Rio Grande do Sul.>
Em 2022, segundo Carla, a água chegou a atingir mais de um 1,5 metro de altura dentro de casa e a família perdeu diversos móveis e eletrodomésticos. Sem conseguir deixar a residência, que é própria, ela conta que a família precisou adaptar a casa para se proteger das enchentes.>
>
Os móveis hoje são de cimento para evitar que se estraguem com o contato com a água e ela construiu com o marido mais um andar no imóvel.>
"Nessa época de chuvas, subimos geladeira, fogão e móveis para esse andar e na nossa casa deixamos apenas o colchão, que é fácil de tirar em caso de enchente. E quando a água do rio começa a subir, nós vamos para a casa da minha cunhada, porque apesar de não atingir o andar de cima, a gente não sabe se a estrutura aguenta a força da correnteza", diz.>
Apesar de há dois anos Carla não ter perdas materiais devido às enchentes, ela conta que todo o sentimento de angústia vivida em 2022 veio à tona ao acompanhar a tragédia no Sul do país. >
"Evito acompanhar porque me dá crises de choro e me vem à cabeça todos os momentos de desespero que passamos aqui, quando a água passou da altura da nossa cintura", diz ela, diagnosticada com o transtorno. >
Segundo especialistas ouvidos pela reportagem da BBC News Brasil, a pessoa reage à experiência com medo e impotência, revivendo o ocorrido em pesadelos, pensamentos que surgem com ou sem gatilho e até mesmo tendo flashbacks —quando a pessoa sente como se estivesse passando pela situação novamente.>
"Voltam sons, imagens e sentimentos do momento vivido que gerou o trauma e isso começa a afetar a qualidade de vida. A pessoa pode se isolar, evitando pessoas e locais, começar a ter alteração de humor, choros constantes, insônia e perda de apetite", explica a psiquiatra Jéssica Martani.>
O diagnóstico do transtorno de estresse pós-traumático é realizado quando os sintomas persistem por mais de um mês após a situação que gerou o trauma, podendo surgir até seis meses depois do ocorrido. Segundo especialistas, é preciso atenção a essas pessoas, já que o transtorno pode até levar ao suicídio.>
Até a década de 1980 o transtorno era chamado de "neurose traumática de guerra" por ser muito comum nos sobreviventes desse tipo de situação.>
Como aumento do eventos extremos por conta das mudanças climáticas, sentimentos como esse também estão sendo chamados de "ansiedade climática".>
Atuando como voluntária no atendimento e acolhimento às vítimas do Rio Grande do Sul, a psiquiatra e psicoterapeuta Graziela Stein, moradora de Gravataí (RS), explica que os primeiros atendimentos de acolhimento das vítimas são muito importantes para que elas consigam lidar com a dor da situação e minimizar as chances de desenvolver o transtorno.>
"É importante ouvir essa vítima e acolhê-la com empatia. Deixar ela contar sobre o que passou, sobre os sentimentos daquele momento, dar espaço para que ela possa processar e externar a dor. Isso pode fazer com que a situação não se transforme em um trauma", explica Stein.>
Ainda segundo a médica, após esse primeiro impacto gerado pela tragédia, o desafio é fazer com que essas pessoas sejam encaminhadas para equipes de psicólogos permanentes em cada um dos municípios afetados.>
"A maioria dessas pessoas perderam tudo, inclusive familiares. Quando essa primeira fase da tragédia acaba, essas vítimas só querem reconstruir suas vidas e trabalhar. E isso é um desafio, porque a saúde mental acaba ficando de lado e o problema pode surgir meses depois", acrescenta.>
Em nota, a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul explicou que profissionais capacitados e voluntários vêm fazendo esse primeiro atendimento à população e que o Estado irá repassar recursos específicos para esse fim aos municípios prioritários – mais afetados.>
Segundo a pasta outras ações tomadas pelo governo estadual são:>
O TEPT pode afetar também aqueles que não ficaram diretamente expostos durante a tragédia, mas que perderam parentes e os voluntários que trabalham para ajudar as vítimas.>
Profissionais de saúde mental alertam que o transtorno pode adoecer até mesmo pessoas que não tem qualquer relação com as vítimas e ou cidades afetadas, mas que acompanharam a tragédia por meio de fotos, vídeos e reportagens nas redes sociais ou na imprensa.>
"Pessoas que são muito sensíveis e empáticas podem apresentar o transtorno. Isso porque elas acabam se colocando no lugar das vítimas e passam a sentir aquela dor de maneira intensa, como se a dor fosse realmente delas", detalha Martani.>
Para o tratamento do TEPT é necessário acompanhamento com psiquiatra e psicólogo. Pode ser necessário também o uso de medicamentos para amenizar os sintomas e melhorar a qualidade de vida do paciente.>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta