“Você sabe com quem está falando”? A pergunta – que pressupõe um interlocutor merecedor de privilégios impossíveis de republicanizar – faz parte do imaginário da brasilidade há tempos – e com fartos exemplos na literatura, como o conto machadiano “A teoria do medalhão”.
No conhecido texto, publicado em 1881, um pai cioso do futuro promissor do filho, que acabara de completar 21 anos, diz que é preciso ter um ofício de “estabilidade superior” – e, no catálogo das possibilidades profissionais, nada supera o de “medalhão”.
Como um “medalhão” é justamente aquilo que se mostra para ser distinguido, a analogia de Machado de Assis sinaliza a aspiração de uma determinada posição social ou profissional que diferencia – quem nela chega – das demais. Para além da óbvia crítica de uma sociedade organizada em estamentos bem recortados, o texto não poupa a limitação intelectual de quem aspira “ser medalhão”. Claro. Um “medalhão”, para chegar lá – ensina Machado – precisa necessariamente submeter-se às tradições que limitam ideias próprias, ficando não apenas preso ao passado como, no mais, refratário ao pensamento complexo. Parece atual? Cheira a terraplanismo?
Pois bem. Escrito num Brasil ainda imperial, o conto machadiano oferece crítica com a cara dos nossos tempos. Veio a República ainda no século XIX, mas certas práticas são difíceis de republicanizar mesmo no século XXI. Uma delas é a perspectiva de que, sim, há um estamento de gente superior que, pelo “medalhão”, fica legitimada a certas práticas possíveis a um seletíssimo grupo.
Recentemente, aliás, vimos um “medalhão” de perto. Tratava-se de um senador da República que, com o telefone no viva-voz, num restaurante de Vitória, tentava resolver seus problemas pessoais num call center. Os demais precisaram – incluindo os autores desse texto – almoçar ouvindo suas negociações, com réplicas e tréplicas, em alto e bom som. Poderia ser apenas uma pessoa sem educação, como muitas por aí, que resolvia sentar à mesa dos outros sem convite? Poderia.
Mas era claramente um “Janjão”, e isso ficou claro quando a interlocutora do call center, para fins cadastrais no sistema, perguntou “sua profissão” – lembrem-se, ele estava no viva-voz e, por isso, ouvíamos as duas pontas da conversa. Veio a resposta: “Senador”! Pronto! Ser senador “virou” profissão e, agora, a atendente finalmente “sabia com quem estava falando”.
E já que sabia, poderia – com deferências, sorrisos, boa vontade e tapetes vermelhos – apertar o botão de facilidades para quem carrega, no peito, um “medalhão” que possa diferenciar os merecedores de privilégio da plebe rude.
Triste cena de um orgulhoso “Janjão”. Com a naturalização dessas cotidianidades – que certamente cada leitor ou leitora de A Gazeta pode puxar na memória um sem-número de exemplos – parece sempre tíbio não apenas um ideário de igualdade – em que o passaporte da cidadania não se tira (ou não devia se tirar) com “medalhões”.
Mais que isso, esse comportamento cotidianizado boicota a própria autonomia do Estado de Direito, vez que – do call center aos tribunais – há claramente um imaginário estamental, recheado de privilégios, incompatível com as pretensões republicanas do Brasil, sobremodo, depois da Constituição de 1988.

Esse é o risco. O limite do projeto republicano do Brasil parece estar na miudeza dessas cotidianidades. Como os “Janjões” – os que adoram contar aos outros com quem eles estão falando – ocupam funções via de regra capazes de influir na vida das pessoas – do contrário, aliás, não faria sentido dizer aos outros o que são ou fazem – a vida pública sempre dá uma emperradinha aqui e ali.
Se a autonomia das instituições também se confunde com a autonomia de seus atores em muitas circunstâncias, nas brechas de leis e regimentos, não é desarrazoado pensar que nessas mesmas instituições públicas – em que há muitos “Janjões” nos corredores – a burocracia, que deveria constranger justamente pela impessoalidade, ganha ares de um pessoalizado balcão de negócios.
Isso explica muita coisa, “senador”?
Sinceramente, a gente acha que sim.
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