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É médica oncologista

O que a ciência já sabe sobre as canetas para emagrecer e o câncer

Estamos diante de uma verdadeira revolução no enfrentamento do câncer associado à obesidade. O maior desafio agora é garantir o acesso

  • Kitia Perciano É médica oncologista
Publicado em 07/05/2025 às 14h46

Durante décadas, o cigarro foi o maior vilão quando falávamos em câncer. Hoje, ele tem um concorrente à altura: a obesidade. O acúmulo progressivo de peso ao longo da vida já é apontado como um dos principais fatores de risco para diversos tipos de câncer — sobretudo os ginecológicos.

Estudos indicam que entre 40% e 50% dos cânceres ginecológicos poderiam ser evitados se a obesidade fosse combatida de forma eficaz. Quanto mais precoce e prolongado for o excesso de peso, maior é o risco. A explicação está no corpo da própria mulher: a gordura funciona como uma “fábrica” de estrogênio, por meio de um processo chamado aromatização, que eleva os níveis do hormônio em sua forma ativa.

Além disso, a obesidade está associada a inflamação crônica de baixo grau, resistência à insulina, aumento de IGF-1 (fator de crescimento semelhante à insulina) e maior produção hepática de SHBG, que aumenta a fração de estrogênio livre — todos fatores relacionados ao estímulo da multiplicação celular e ao aumento do risco de câncer.

A boa notícia é que já existem intervenções comprovadamente eficazes na redução desse risco. A cirurgia bariátrica, por exemplo, está associada a uma redução de até 80% nos casos de câncer de endométrio. E mais recentemente, uma nova classe de medicamentos tem ganhado destaque: os agonistas do receptor de GLP-1, popularmente chamados de “canetinhas” para emagrecer.

Esses medicamentos pertencem a diferentes gerações e vêm evoluindo ao longo dos anos. A primeira geração surgiu em 2014 com a liraglutida, um agonista do receptor GLP-1, disponível comercialmente como Saxenda, para tratamento da obesidade, e Victoza, para diabetes tipo 2. Quando utilizada por aproximadamente oito meses, promove uma perda de peso entre 6% e 8% do peso corporal, o que equivale, em média, a 5 a 6 quilos.

Em 2021, foi lançada a segunda geração com a semaglutida, também um agonista do receptor GLP-1, disponível nos medicamentos Wegovy, Ozempic e Rybelsus — este último em formulação oral, indicada para diabetes tipo 2. Quando utilizada por cerca de dez meses, a semaglutida promove uma perda média de 12 a 13 quilos, o que representa aproximadamente 15% do peso corporal.

Em 2023, uma nova geração chegou com a tirzepatida, representada pelos nomes comerciais Zepbound, indicado para perda de peso em pacientes com IMC acima de 30 ou sobrepeso com comorbidades, e Monjauro, indicado para diabetes tipo 2. Essa medicação atua de forma combinada nos receptores GLP-1 e GIP e, ao longo de 13 meses de uso, tem sido associada a uma perda de até 25% do peso corporal — o que equivale, em média, a 24 a 27 quilos.

Apesar de seus benefícios, os efeitos colaterais mais frequentes incluem náuseas, diarreia, constipação, refluxo, fadiga e, em alguns casos, perda de cabelo. Todos os medicamentos dessa classe são aplicados por injeção semanal, com doses progressivamente ajustadas conforme a tolerância e os resultados do paciente.

A eficácia dessas medicações na prevenção de cânceres relacionados à obesidade já se mostra comparável à da cirurgia bariátrica. Além disso, elas se mostram superiores à dieta isolada, não apenas na redução de peso, mas também na queda de até 50% na mortalidade por todas as causas. Segundo estudo publicado em 2024 na JAMA, a mortalidade geral entre usuários de GLP-1 foi 14% menor do que entre pacientes que realizaram cirurgia bariátrica.

Estamos, portanto, diante de uma verdadeira revolução no enfrentamento do câncer associado à obesidade. O maior desafio agora é garantir o acesso: dietas isoladas, apesar de recomendadas, não têm sido suficientes para a maioria das pessoas. O sofrimento diante do fracasso, os riscos metabólicos e o desenvolvimento de doenças graves — como o câncer — reforçam a urgência de estratégias mais eficazes e humanizadas.

No entanto, é fundamental destacar que o sucesso do tratamento com esses medicamentos depende de um acompanhamento consistente com profissionais de saúde especializados. Isso se deve, entre outros fatores, ao conceito conhecido como "memória do prato".

Mounjaro
Mounjaro . Crédito: Divulgação Eli Lilly

Esse conceito refere-se à adaptação gradual do cérebro a porções menores de alimentos, o que é essencial para a manutenção da perda de peso a longo prazo. Estudos indicam que, ao longo do tempo, o cérebro se acostuma com volumes menores de comida, ajudando a controlar o apetite e a evitar o reganho de peso. Essa adaptação não ocorre de forma automática e requer orientação profissional para ser eficaz.

Além disso, a presença de um médico ou nutricionista durante o tratamento é crucial para monitorar possíveis efeitos colaterais, ajustar dosagens e fornecer suporte psicológico. A mudança de hábitos alimentares e de estilo de vida é um processo complexo que vai além da simples prescrição de medicamentos. Envolve reeducação alimentar, prática regular de atividades físicas e, principalmente, paciência e perseverança.

A ciência avança. E com ela, a esperança de prevenir milhares de casos de câncer através do controle efetivo da obesidade. Mas, para que essa esperança se torne realidade, é imprescindível que o tratamento seja conduzido de forma responsável, com acompanhamento profissional e comprometimento do paciente em adotar um estilo de vida mais saudável.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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