Autor(a) Convidado(a)
É advogado e mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Ambientais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Somos muitos Severinos, iguais em (quase) tudo e na sina

Com enfraquecimento de políticas públicas, aumento do desemprego e da fome, personagem de "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Melo Neto, passa a ser o relato da tragédia comum dos brasileiros

  • Pedro Sampaio Minassa É advogado e mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Ambientais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Publicado em 14/06/2021 às 14h00
Cena da animação
Cena da animação "Morte e Vida Severina", com direção de Afonso Serpa, baseada na obra homônima de João Cabral de Melo Neto. Crédito: Divulgação/ TV Escola / OZI / Fundaj

Em 1955, o poeta modernista João Cabral de Melo Neto trazia em sua obra "Morte e Vida Severina" um retrato dramático e emocionante do Brasil sertanejo, firmando-se como um expoente da literatura regionalista nacional. Hoje acordei com alguns de seus versos sobre a saga de Severino, o personagem retirante que, fugindo das mazelas do sertão nordestino, ruma ao litoral em busca de melhores oportunidades, martelando em minha cabeça. 

No Brasil de 2021, em que a pandemia e seus aliados não cessam de matar, Severino parece renascer qual Fênix, agora em todas as regiões do país, compartilhando, porém, da mesma velha sina: sobreviver às inúmeras adversidades impostas.

A tragédia comum dos nascidos no sertão nordestino, como a fome, a seca, a pobreza e a morte, fez João Cabral de Melo Neto construir o personagem Severino, o qual na verdade não passa de um representante da massa deslocada de retirantes, que faziam legião no interior do Nordeste na luta pela vida. Num cenário de aridez física e metafísica, Severino se lança no caminho não menos árduo de tentar uma nova vida possível, num local onde a natureza contribuísse e o Estado se fizesse mais presente: o litoral.

No século XXI, ainda são muitos os retirantes olvidados, que peregrinam guiados apenas pela esperança de conquistar uma vida um pouco melhor, dia após dia.

Entretanto, o que me fez lembrar a obra do autor foi a vocação que seus versos possuem para traduzir a atualidade brasileira, caracterizada pelo enfraquecimento de políticas públicas em vários setores, o aumento exponencial de desempregados e desalentados, a expansão da fome e da miséria e o vultuoso número diário de mortes, em razão de uma doença para a qual já há vacina. "Morte e Vida Severina" passa a ser, hoje, o relato da tragédia comum dos brasileiros. Se a morte atinge a todos, a fome chega aos lares de muitos e o desemprego devasta a vida de vários, somos todos um pouco Severinos. Estamos em plena “severinização” do Brasil.

Os versos que saltam do século passado como que endereçados para o presente são estes: “E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina.”

Sim, somos Severinos iguais em (quase) tudo na vida, pois a pandemia ainda é mais cruel para alguns grupos sociais do que outros, mas estamos todos morrendo de “morte igual”, a mesma morte das mazelas “severinas”. Estamos morrendo com o rejuvenescimento da pandemia que mata a “velhice antes dos trinta”, estamos morrendo de emboscada antes dos vinte, com extermínios e chacinas predestinadas, como canta Emicida, às peles alvo e não alvas.

Estamos morrendo de fome um pouco por dia, com o retorno ostensivo de um problema que estava em vias de superação nos anos passados; estamos morrendo de fraqueza e de doença, de apatia e de cardiopatia, de pandemia e de necropolítica. Doença essa que faz Severinos em qualquer idade e, sim, começa a atingir gente ainda não nascida. Brasileiros severinos, agora iguais em tudo, sofrendo a mesma sina.

Infelizmente, nem todos conseguem chegar ao litoral do emprego, da segurança alimentar e da vacina, pois o sertão transmuta-se para todo o território nacional, onde o Estado é ausente, onde a ingerência política é presente e onde se escolhe os que merecem viver e morrer dessa gente. Nessa caminhada utópica rumo a um litoral de esperança de vida, não chegaram todos e não chegarão muitos de nós. No meio do caminho para o litoral existem, não uma, mas várias pedras, Drummond, muitas delas intransponíveis.

Para um Severino é difícil seguir a ordem do “fiquem vivos”, quando tudo concorre para a morte. Gostaria que a resiliência nos socorresse, mas nesse tempo de tragédia comum, só nos resta a resistência. Sim, há aqueles que nunca saíram do litoral das oportunidades, mas também eles hoje sofrem com a severinização e a falta de vacinas. A massa de retirantes está enorme, tomou a proporção de uma nação. Nela, somos muitos Severinos. Nela, somos todos retirantes. Dela, somos mais de 480 mil retirados.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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